Giovani Cidreira Nebulosa baby

Faixa a faixa: Giovani Cidreira desvenda Nebulosa Baby, um dos melhores discos do ano

Em trabalhos ricos em detalhes e (auto) referências, nada melhor que o próprio artista falar da obra. Giovani Cidreira pensou seu novo trabalho, Nebulosa Baby, detalhadamente, lapidando suas composições e retomando peças soltas em outros discos. Antes de falar de cada uma das faixas do álbum, Giovani explica um pouco do processo conceitual e de criação desse novo trabalho, que não se resume apenas às 13 faixas do álbum, mas também a ideia de uma webserie e de um álbum visual.

Um quebra cabeças com álbuns anteriores
“Eu tive a ideia desse disco, o repertório, o conceito, já faz uns três anos e o pensamento que eu tive era de que eu ia lançar dados e quebra-cabeças, jogar as peças pras pessoas antes dele ser lançado. Foi o que eu fiz quando lancei Mix$take, Mano*Mago com Mahal Pita e Estreite até com Josyara. Eu comecei a utilizar esses esses discos que eu fiz nesses últimos três anos pra começar a contar a história desse disco. Agora se você ouvir o Nebulosa Baby, se você for atento, vai identificar músicas que aparecem na Mix$take , na verdade trechos de músicas, que aparecem agora a música toda. Eu fiz um processo inverso eu fiz remix das músicas do álbum antes dele ser lançado. Esse disco é um espelho. Eu joguei ele no chão e ele se estilhaçou, quebrou todo. Eu joguei essas peças pra vocês o tempo todo. Agora é hora de ver se vocês me acompanham ou se encontram alguma coisa nesse nesse labirinto”.


Processo caseiro
“É também parte de um pensamento de que nenhuma obra se encerra por conta de uma gravação de interpretação seja qual for. É um jeito novo de pensar alguma coisa enquanto artista. Esse disco sonoramente pra mim mostra um aprimoramento dessas experiências que eu vim fazendo com Benke nos últimos três anos. Eu acho que a experiência com o a música eletrônica, os beats que eu comecei a fazer na Mix$take, agora aparecem muito mais abraçados na canção. Eu fiz um processo muito caseiro, na verdade, pra gravar esse disco. Apesar de usar um sampler, é um sampler 404, muito antiguinho e eu comecei a fazer essas gravações em casa quando eu morava em São Paulo, na Casa Vulva onde eu comecei a captar vozes e cordas das pessoas que iam a minha casa. Eu comecei a samplear, Abra combinado com Michael Jackson. Eu comecei a fazer todo esse processo e levei isso aos estúdios da Red Bull Station e aí com Ynaiã, Lucas Martins, Felipe Castro, Cuca Ferreira e Jadsa, fora bem que que produziu, nós concebemos essa coisa toda meio ao vivo”.

A canção como base principal
“É um lance muito louco porque, até eu mesmo, fico às vezes sem lembrar mais o que é orgânico e o que não é ali. Porque o processo já transformou tudo muito cru e muito lofi de certa maneira. Apesar de eu achar que o som tá muito mais redondo, muito mais palpável, e sonoramente muito mais gostoso de se ouvir do que, por exemplo, a Mix$take. Eu acho que algumas músicas também se aproximam. A estrutura, apesar duma influência bem forte de flows do hip-hop, eu acho que ainda continuo mantendo a linha da canção. Não consigo. Roberto Carlos anda comigo e Nana Caymmi toda noite ela fica puxando a minha perna entendeu?”

Conceito audiovisual
“A web série foi dividida em cinco episódios e cada um contava com o nome de uma música que está no disco. Mas ela não aborda exatamente as músicas e nem só o processo de produção do disco, que também está dentro da websérie. Mas ela também trata de desvendar o que está por traz das músicas. Os lugares, as pessoas que me construíram e que criaram a identidade desse disco. E aí desde São Paulo, Salvador, a Valéria, que é o bairro de periferia onde eu cresci, e o interior da Bahia. Principalmente esses lugares onde guardam muitas potencialidades artísticas intelectuais, na periferia, nos lugares mais afastados de pessoas que estão à frente, estão além, de pessoas até que tiveram um ensino formal secular avançado. Isso se trata também de uma crença num tipo de tecnologia, No qual eu acredito que tá ligada aos ensinamentos ancestrais mesmo. Por exemplo a experiência, o ensinamento com a cura, o o trato com a terra e com as plantas e a intuição. Toda essa coisa espiritual que o sistema ou capital, ou seja lá o que, fez de tal maneira que a gente acreditasse que era uma uma bobagem, que era coisa da nossa cabeça. O racismo também faz muito isso. Quando na verdade é isso que a gente tem que mais cuidar, fazer a manutenção, dessa força que nos mantém vivos. O filme Nebulosa Baby o álbum visual, também aborda exatamente isso só que de um jeito mais lúdico. Porque é um filme de ficção, mas uma ficção documental, porque nós usamos e gravamos imagens de pessoas reais e documentos que se relacionam com essa personagem que durante o filme se comunica e está em busca dessa tal energia , que na verdade são os ensinamentos que a gente tem em casa. Mas no filme ele aparece de uma forma materializada. É uma coisa muito mais louca”.

Entenda faixa a faixa de Nebulosa Baby

Daqui pra frente

“Eu comecei a pensar “disco novo” a partir dessa música quando não existia nada, nem música. A inspiração surgiu numa conversa que tive com minha mãe quando fui visitá-la em Blumenau. Tinha uns dois anos que eu não a via. Ela falava sobre preconceito e como as coisas estavam num processo de endurecimento, falava que família é um lugar onde você se sente bem sendo quem você é independente de suas escolhas. E me lembrou que isso aprendemos em casa e o quanto era inteligente seguir nossa intuição, e esses ensinamentos. Segundo ela, senão fosse essa crença em nós e no nosso passado, ela não teria conseguido nos criar e atravessar tudo sendo mulher, mãe de 3 filhos, negra. Eu tentei chegar numa coisa que desse conta de falar isso, mas não deveria ser bem uma música melodiosa. Me veio à cabeça um harmonia que viraria outra faixa, “Joias”, e a voz seria a de Jup do Bairro, mas eu nem conhecia Jup, só a admirava e absorvia de longe. Essa ideia se perdeu, mas eu nunca esqueci. Meses atrás enquanto finalizávamos a mixagem, Benke me veio com alguns áudios de uma entrevista que ele tinha gravado de Jup pro Coquetel Molotov. Não pensei duas vezes. Tinha essa música instrumental em cima da harmonia da música “Joias”, uma coisa que tocamos ao vivo no estúdio, eu e a banda Ynaiã, Lucas Martins, Filipe Castro, Cuca Ferreira, e Benke. Voltando, nós (Benke e eu) fomos encaixando o áudio de Jup nessa jam. O que ela diz aí tem ligação direta com o que me fez pensar em minha mãe. O nosso poder ancestral, nossa intuição, nossa ligação com a terra ou o sobrenatural. O sistema fez a coisa girar de uma maneira tão esperta que nos fizeram desacreditar dos nossos poderes. Muito louco que nesse áudio Jup fala sobre novas formas de viver, e o caminho é usar nossas habilidades de modo estratégico, trazer os nossos pra escrever a história. O fato de ser Jup dizendo isso, anos depois do papo com minha mãe, deixa claro que realmente modificamos a realidade com nossos sonhos, nossas pequenas premonições. Reconheço que devemos cuidar disso, o mundo é outro, o Brasil tem a oportunidade de mostrar o caminho por ser tão novo e ter na gente tamanha força modificadora. Vamos cuidar disso.”

Sangue Negro

“Essa faixa dá todas as pistas do que você vai ouvir no restante do disco com relação a essa mistura dos beats. Fruto de um processo caseiro que fiz com um sampler 404 em casa, juntando batidas, adicionando outros sons com Benke e as novas influencias à canção com uma estrutura progressiva, que mais se aproxima das que fiz lá no meu primeiro disco, o Japanese Food. O texto traz uma reflexão sobre racismo e inversão de valores, nas perspectiva de quem não aceita mais ser inferiorizado e no fim ser o herói morto todo dia e sabe que tem as ferramentas pra um mundo novo. Tem uma abordagem mais direta, que é uma das características desse álbum também. A letra eu compus em parceria com Filipe Castro. Começamos ela anos atrás em Salvador e finalizamos em São Paulo, na Casa Vulva.”

Nebulosa

“Desigualdade gera solidão e a falta de lugar pode subverter nossa personalidade, nos isolar ainda mais e nos fazer esquecer os motivos, cair em armadilhas. É muito fácil sair dos trilhos, nos falta referência e aprofundamento nas relações. Jadsa, presença fortíssima e indispensável no disco, que divide a autoria da música, trouxe o ar romântico e misterioso. Acho bem a cara do disco, queria que soasse assim minimalista e confusa. O nome é uma forma de expressar essa sensação de que há uma nuvem densa entre nós, dificultando nosso olhar, nossa calma para apreender as coisas. Sampleei as batidas, gravei o 808 em casa. As vozes da introdução são do Obinrin Trio que fizeram parte de convívio intenso na Casa Vulva e influenciaram muito alguns arranjos vocais do disco.

Entrelaçados

“No início de 2018 visitei o produtor Zé Nigro no seu estúdio na Serra da Cantareira. Eu tinha esses acordes (ou foi ele?) e Zé começou a cantar um refrão, nós gravamos em vídeo, levei pra casa e terminei a música. Dias depois Benke surgiu em minha casa e propôs outra roupagem pra ela e até uma letra diferente sem o refrão de Zé. Isso virou “ngm +vai tevertrist” faixa que foi pra Misxtake, agora a música aparece em sua versão original, e pasmem, na faixa estão Dinho Boogarins, que surgiu no estúdio de surpresa e aprendeu a música na hora e Luiza Lian, uma das artistas que mais ouvi nos últimos anos. Essa música traz um conceito presente no disco, é como se as músicas fossem fractais, objetos que em suas partes separadas repetem características do todo, mas cada vez traz uma informação diferente, como cacos de vidro que convidam o público a juntar seus pedaços.”

Oceano Franco

“Assim como “Ngm + vai me vertrist”, “Oceano Franco” foi apresentada na Mixstake e traz de novo a ideia de que nenhuma música se encerra numa gravação. Aqui ela também surge com arranjos diferentes. A banda é acompanhada por Luê que toca as os violinos e Jadsa que está nos vocais. No fim das contas, por uma brincadeira de Benke, que tinha algumas tracks de Vandal com ele, colocamos a voz dele, “Cores, sabores, amores e dores”, os versos de Vandal ganham outro sentido no filme que acompanha o disco. É o melhor compositor da Bahia hoje.”

Caminho do mar

“Gravação demo feita na pré produção do disco. Gosto muito dessa vinheta, escrevi pra um amigo que infelizmente se foi há alguns anos. Sonhei que nos encontrávamos no Rio vermelho a caminho da praia. Quando você perde alguém você entende que a saudade nunca vai passar.”

Saudade de Casa

“Escrevi essa música numa viagem Rj> Sp que fiz ao lado de Josyara, naturalmente, viemos conversando…Longe de casa, a gente até se reconhece mais. Ao descer no metrô a música tava praticamente pronta. Um ano depois ela virou um pequeno hino entre os amigos que estavam longe de suas famílias também. O coro trouxe esse clima caseiro das reuniões que fazíamos na Casa Vulva, uma casa cultural de São Paulo onde morei e conheci muita gente e foi determinante para a construção dessas músicas. Foi como se a gente levasse um pouquinho da nossa rotina pro estúdio.”

Claridades 

“Essa música foi gravada por Liniker e os Caramelows no seu último disco, Guela abaixo. Eu tinha pensado na voz de Liniker enquanto compunha a música e tive a oportunidade de contar pra ela quando nos encontramos sem querer num bar em SP. Me espantei quando ela disse que entraria no disco. Na época eu andava agarrado a Luê, grande cantora e musicista do Pará, ela sempre estava cantando e deu uma interpretação com outro ar, outra música! Fiz esse arranjo com os meus amigos da Maglore, (eles são a banda na faixa) pensando em Luê, ela canta a faixa comigo e toca os violinos.”

Pode me Odiar

“Pensando no conceito fractal e de que nenhuma obra se encerra numa gravação, resolvi trazer “Pode me odiar”, agora em sua versão mais cancional por assim dizer. Temos os vocais lindíssimos das Oninrin Trio e essa voz de ouro 18 quilates de Alice Caymmi, que por sinal, não participaria das gravações até aquela madrugada, quando ela me mandou uma mensagem dizendo que poderia ir. Mandei a letra pra ela toda errada kkk, ela chegou no outro dia e gravou tudo num take só. Diva é diva, né? Fico muito feliz com esses encontros, Alice é uma referência forte em todas as ideias que tenho desde 2017.”

Luzes da Cidade 

“Certa feita, Luê estava lá em casa, a Casa Vulva, e eu pedi pra ela cantasse um vocalize e tocasse um violino. Gravei direito do microfone externo do sampler 404, as batidas fui roubando de Michael Jackson e do Abra, misturando tudo. Esse sampler usamos na faixa “Seu cigano Flow”, da Mixstake, uma brincadeira que Benke fez com os primeiros versos da musica “Seu siga no flow foi bom”. Um ano depois levei o material pro estúdio e gravei ao vivo, Luê regravou as cordas e Lucas Martins fez o baixo synth. Enquanto tocava essa música eu ouvia muito o Patrya india iracema disco de Ava Rocha, e uma música em especial, “Esferas”, composição de Ava que está no Água batizada, de Negro Leo. Isso me inspirou pra colocar a melodia na letra, parceria com a poeta Clarysse Lyra. Ava foi sempre uma pessoa muito generosa e sempre trouxe palavras carinhosas e sábias e direções pra mim. Naquela altura convivíamos muito ali na Casa Vulva e, claro, não perderia a oportunidade de convida-la. Minha segunda música preferida no disco (risos). “

Joias

“Sempre que eu estava num ambiente qualquer, podia ser na casa de um amigo, num jantar, numa reunião, e rolava um papo sobre as dificuldades vividas por cada um, eu, naturalmente, falava do lugar de onde vim, onde cresci, e a esmagadora maioria se espantava, (ainda se espanta) quando eu dizia que era de Valéria, um bairro muito pobre e periférico de Salvador, conhecido até pela crescente violência. Mas o espanto não passava só pelo fato deu estar ali vivo vindo de onde vim, o que mais me tocava era o deles não entenderem como que eu tendo essa música, ligada de certa maneira à tradição de grandes compositores brasileiros, que faz essa coisa pop experimental, e blablabla, como eu poderia sair desse lugar? Como se as pessoas da periferia não pudessem fazer parte da criação de obras artísticas, dedutivamente, que nem deveriam entender a minha música. Comecei a pensar mesmo como eu seria visto se eu não puxasse a viola do saco e cantasse, ou não estivesse nos trajes adequados, será que eles me receberiam bem? Provavelmente não. O preconceito se antecipa e por isso é importante sim ter os recursos, fazer uso deles, mas sem esquecer nosso real valor. Foi Filipe Castro que me disse pra escrever algo como uma resposta a esse “descolamento” entre a minha figura e o lugar de onde vim, e fosse mais direta do que de costume e tivesse relação mais escancarada com algum gênero musical popular. E que fosse um grito de guerra e uma oração, um pedido pra todo mundo ter acesso às coisas mais prazerosas, loucas e especiais da vida.”

Saudade de Josy

“Josyara é uma força da natureza e não teria outro jeito senão dar um solo pra ela. Eu sabia o quanto ela gostava dessa música “Saudade de Casa”, ela estava presente durante sua feitura, chamei ela pra ir no estúdio sem contar muito… ‘toca aí do seu jeito, Josy’, primeiro take foi pro disco. Eu choro. Sempre sinto sua falta.”

Anos incríveis

“Uma observação sobre nosso tempo, sobre nossas relações de modo geral. É quando você para e pensa, o que vai ser de nós? quem vai lembrar de nós? Existe futuro?”

Para quem gosta de música sem preconceitos.

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