Gravação inédita de João Gilberto vira disco em projeto do Selo Sesc

Cercada de exigências sonoras e cuidados especiais, cada apresentação de João Gilberto parecia um acontecimento inimitável, ocasião única de presenciar a magia do artista que reinventou a música brasileira. Não à toa, tendo em vista que João não mantinha versões fixas das canções de seu repertório, modificando-as pouco a pouco enquanto lapidava incessantemente o som de sua voz e violão, tornando cada show uma experiência singular.

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A partir desta quarta-feira (5), os fãs do artista podem mergulhar em mais um desses acontecimentos, com um registro até então inédito: o álbum duplo Relicário: João Gilberto (Ao vivo no Sesc 1998), disponível gratuitamente na plataforma Sesc Digital.

Remasterizado a partir de uma fita magnética DAT, o disco contém a gravação completa de show feito por João no Sesc Vila Mariana, em 1998, como parte de uma turnê comemorativa de 40 anos da bossa-nova (contados a partir do lançamento de seu disco 78 rpm contendo as faixas Chega de Saudade e Bim Bom, em 1958).

O lançamento marca a estreia do projeto Relicário, do Selo Sesc, que segue a proposta de reverberar a memória audiovisual do Sesc São Paulo por meio da recuperação e divulgação de material do acervo da instituição. Num primeiro momento da iniciativa, serão apresentados áudios de shows históricos realizados em unidades do Sesc entre as décadas de 1970 e 1990.

Com duração de quase duas horas, a apresentação de João Gilberto no Sesc Vila Mariana encerrava uma série de três shows na unidade, que havia sido inaugurada recentemente. Ao todo, 36 faixas compõem o repertório, com destaque para “Rei sem Coroa”, composição de Herivelto Martins e Valdemar Ressurreição popularizada por Francisco Alves, inédita na discografia de João.

Além de estar presente no disco completo publicado no Sesc Digital, a música foi lançada como single antecipadamente nas demais plataformas de streaming, que só receberão o álbum no dia 26 de abril. Inspirada na história do rei Carlos II, que ficou conhecido no Rio de Janeiro após ser obrigado a abdicar do trono durante a Segunda Guerra Mundial e se mudar para o hotel Copacabana Palace, a canção já havia feito parte do repertório de João em outras ocasiões, mas passaria ao largo de seus registros fonográficos.

Mesclando sucessos da bossa-nova com clássicos do samba e choro, a setlist segue as preferências de João Gilberto em grande parte de seus shows, com alguns dos compositores mais gravados por ele, como Tom Jobim, Dorival Caymmi e Ary Barroso, junto a nomes que moldaram a música brasileira na primeira metade do século XX, como Pixinguinha e Wilson Baptista. O repertório também ressalta a reverência de João Gilberto a Orlando Silva, com três canções gravadas pelo intérprete, sua maior inspiração como cantor.

A exigência de João – que fazia questão de acústica e qualidade de som certeiras em seus shows – , somada ao trabalho feito pela equipe do Sesc Vila Mariana, resulta em um registro valioso para visitar a obra de um dos pilares da música brasileira que conhecemos hoje. Fiel à gravação original, o disco capta bem a atmosfera do show, com sonoridade límpida, e até mesmo incluindo ruídos da plateia, que mesmo assim parece totalmente absorta na música, em silêncio atento e reverente durante as canções.

Caminhando para o final do show, o silêncio dá lugar a um coral em músicas como “Chega de Saudade” e “Eu Sei que Vou Te Amar”, quando um João bem-humorado admite gostar da interação do público (“eu adoro esse coral, hein?”) e chega a aceitar pedidos de música da plateia.

Complementando o tratamento sonoro, Relicário: João Gilberto (Ao vivo no Sesc 1998) também ganhou projeto gráfico próprio e capa do artista visual Speto. Nela, foi reproduzido um grafite feito por Speto em edifício na Avenida Senador Queirós, no bairro da Santa Ifigênia, em São Paulo.

Idealizado como uma homenagem após a morte de João, o mural segue um ideal minimalista, análogo à sua música, e representa o artista flutuando sobre a cidade do Rio de Janeiro, onde viveu grande parte de sua vida, silenciando seu violão como quem termina de tocar uma canção, “em alusão ao fim de um ato, à vida chegando ao final.”

Também no dia 05 de abril, o lançamento foi acompanhado por um bate-papo sobre a obra de João Gilberto, com mediação de Roberta Martinelli e participação de José Miguel Wisnik, Renato Braz e Danilo Santos de Miranda. A conversa acontece presencialmente, no mesmo Sesc Vila Mariana onde João se apresentou, e também será registrada em edição especial do programa Som a Pino, da Rádio Eldorado.

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