Discos: Do samba ao sample, Tangolo Mangos traz novidade para o rock baiano

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Uma das boas bandas a surgirem nos últimos anos na cena baiana, a Tangolo Mangos lança seu primeiro álbum, Garatujas, reforçando seu espírito inquieto e vocação em brincar com gêneros e ideias além do rock. Formada por jovens de uma geração que não se incomoda em transitar à vontade por outros ambientes, a banda lançou um dos melhores trabalhos de 2023. Veja análise em texto de Julli Rodrigues.

*Texto Julli Rodrigues

Fundada em 2017, a banda soteropolitana Tangolo Mangos lançou em dezembro de 2023 o seu primeiro álbum completo, intitulado Garatujas. O novo trabalho vem para consolidar e expandir características da sonoridade do grupo que já estavam presentes desde o primeiro EP, Mangas a Caminho da Feira nº 1, de 2019.

Quem ouviu esse primeiro apanhado de canções notou que, de um lado, já havia a habilidade para aplicar samples de forma certeira e criar climas e “movimentos” nas canções, sempre com fluidez, inserindo variações de ritmo e de atmosfera sem que o ouvinte sinta o “tranco” da mudança. Do outro, a raríssima capacidade de escrever sobre o cotidiano fugindo das construções mais óbvias – e, de quebra, fazer música de protesto e crônicas da realidade social sem cair no discurso vazio e nas frases feitas. Agora, com Garatujas, a banda reforça sua posição como uma das que fazem diferença na cena roqueira soteropolitana, mesclando o gênero com diversas influências.

Apesar do nome, Garatujas é tudo, menos uma coleção de rabiscos disformes. O álbum une algumas gravações caseiras dos arquivos do grupo a um trabalho inédito riquíssimo feito em estúdio, com produção musical e executiva dos próprios integrantes Bruno Fechine (vozes e percussões), Felipe Vaqueiro (vozes e guitarra), João Antônio Dourado (bateria), João Denovaro (vozes e baixo) e Pedro Viana (vozes e guitarra). Rock psicodélico, blues, grunge, heavy metal e stoner se somam a influências do samba e do choro, formando a cama para composições que passeiam entre o sensível, o emotivo, o analítico e o bem-humorado. Esse humor, por sinal, mora nos detalhes e é levemente ácido.

Um dos exemplos está no cartoon rock “Animais Noturnos” (João Denovaro), com a participação da banda sergipana Cidade Dormitório. Calcada na psicodelia e no absurdo, a faixa quase soa como algo que os Mutantes fariam, além de trazer ecos de “Hey Bulldog”, feita pelos Beatles em 1969 para a trilha do filme Yellow Submarine. No trecho final é possível ouvir, por exemplo, uma frase que soa como “Eu odeio o Spotify, você foi muito mau comigo…”.

Assumindo que posso estar errada ou que meus ouvidos me enganaram – já que isso não consta da letra oficial disponível na plataforma – tomo a liberdade de dizer que incluir essa “zoeira” na música foi uma sacada genial. Afinal de contas, há muito se fala das novas questões trazidas pelas plataformas de streaming em relação à arrecadação de recursos para os músicos e produtores, que se veem “obrigados” a disponibilizar suas criações nelas mesmo sabendo que o retorno financeiro é pouco ou nenhum. Nada melhor do que ironizar o Spotify estando (também) no Spotify. Jogar o jogo sem fazer o jogo, dizem.

O humor ainda aparece como um detalhe esperto no samba-choro-rock “Enxaqueca” (João Antônio Dourado), com participação de Natan Drubi no violão 7 cordas, Ruan Skatipunk no berimbau e xoronobanho nos vocais. A certa altura, de forma muito espontânea, xoronobanho faz uma referência à polêmica participação de Mallu Magalhães no programa Encontro, da Rede Globo, em 2017, com a frase “essa é pra quem diz que branco não pode cantar samba”. São brincadeirinhas capazes de tirar um sorriso do ouvinte, além de chamar atenção para a riqueza de texturas e referências que a Tangolo Mangos carrega. É rock com o puro suco de Brasil.

Já que falei de texturas, um dos destaques de Garatujas nesse quesito é “Hélio” (Felipe Vaqueiro), lançada como segundo single do álbum. Assim como “Animais Noturnos”, a faixa investe na psicodelia, mas também em elementos de garage rock, surf music, indie e outros subgêneros do rock. O objetivo é criar os climas perfeitos para contar a delirante história de um elemento da tabela periódica transmutado em uma espécie de “The Fool on the Hill”, para citar outra canção dos Beatles. Ou, como diz o material de divulgação da banda, uma “personificação e narrativização fantasiosa e apocalíptica acerca do elemento químico hélio”.

Nessa faixa, a Tangolo Mangos explora sua habilidade de usar a música como veículo para contar uma história que não necessariamente tem a ver com a realidade, em um trabalho que lembra de leve algumas letras do grupo Rumo, ícone da Vanguarda Paulistana dos anos 80. A jornada desvairada e bem descrita de Hélio lembra a tentativa de suicídio narrada na música “Bem Alto” ou a decepção dos fãs que são informados que seu ídolo não irá recebê-los, em “Esperança Ribeiro”. Uma coisa quase cinematográfica.

Entre algoritmos e sentimentos

Sempre vale lembrar, no entanto, que a Tangolo Mangos sabe contar histórias de todo tipo, das fantasiosas às reais. A habilidade de tratar de problemas sociais e políticos – já observada, por exemplo, na ótima “O Erro de Townshend”, do EP de 2019 – retorna na faixa de abertura de Garatujas, intitulada “Canaã” (Pedro Viana), com a participação de Joca Lobo.

Em um misto de rock e baião, com delicadeza e naturalidade, a canção traz versos como “E quando chega o São João em Salvador / ninguém sabe dizer se é tiro ou bomba de mil / são crianças brincando ou crianças matando na cidade / ninguém sabe dizer”. Apesar da preocupação com a realidade e o atual estado de coisas, a faixa ressalta a importância de se ter paciência e proteger as amizades. O subtexto político também marca presença em “Eneágono” (Bruno Fechine / Felipe Vaqueiro / João Denovaro), que nasceu como uma faixa instrumental: “Quantos hectares de floresta se transformam em ração? / Pra quem? / Vacas que vivem sem perceber que o pastor é carrasco também”. Já a “blueseira” e existencialista “O Gato Gateia e Você Quer Saber” (Pedro Viana) traz uma reflexão sobre os dilemas e escolhas humanas em busca da felicidade e da verdade.

Outro tema explorado pelos integrantes da Tangolo Mangos na condição de “observadores da realidade” é a vida mediada pelas redes sociais e plataformas digitais diversas. Aqui, abro um parêntese para dizer que na escolha por abordar essa temática, a banda por pouco não cai em um enorme clichê. O domínio dos algoritmos no cotidiano virou assunto no debate público em meados dos anos 2010, sendo impulsionado principalmente por séries como “Black Mirror”, de Charlie Brooker. A essa altura do campeonato, mais de dez anos depois, ainda cabe falar em algoritmos e no “lado sombrio da tecnologia” como se fosse novidade? Não é como se já não soubéssemos que nossos passos são vigiados e registrados para que nosso consumo seja direcionado.

O que salva a banda de ser “mais do mesmo”, porém, é a criatividade na apresentação do assunto, com humor, espontaneidade e precisão, como se percebe em “Algoritmos (Você Me Conhece Tão Bem)” (Felipe Vaqueiro/Pedro Viana). “Tem dias que eu sinto inveja / e gostaria de ter tudo que os outros têm / Mas de tão feio, sentimento tão profano / Não postei pra ninguém”, diz a letra da canção, que ainda é pontuada pela já famosa “voz do Google” sinalizando “interesse em vídeos de macacos vestidos em trajes de gala” e por um sample da audiência de Mark Zuckerberg, CEO da Meta – dona das redes sociais Facebook e Instagram –, no Congresso americano em 2018. Ao final da faixa, é possível ouvir a representante da Califórnia, Anna Eshoo, questionando: “Você está disposto a mudar seu modelo de negócios a fim de proteger a privacidade individual” (tradução livre). Pura sagacidade.

O tema das redes sociais é retomado em “Você Me Conhece Tão Mal” (Bruno Fechine / Felipe Vaqueiro / Flora Dourado / Pedro Viana / Vênus Não É Um Planeta), que traz as participações das produtoras Tecnoplanta e Vênus Não É Um Planeta. Retrabalhando elementos da faixa-irmã “Algoritmos” em uma atmosfera eletrônica a la Tame Impala pós-2015, a música evidencia as belas vozes das convidadas e mira em outro aspecto da vida conectada: a “tiktokização” do dia a dia. Uma pena ser tão curta.

Os afetos e memórias também marcam presença em “Garatujas”, seja através do resgate de gravações caseiras antigas ou por meio de canções que tratam sobre sentimentos, partidas e saudade de forma muito sensível. Fazem parte do primeiro grupo “Dog Dilema pt. 1” (Felipe Vaqueiro), produzida a partir de uma demo de 2019, que ganhou uma continuação em ritmo de samba; e a fenomenal “Glauber Rocha” (Artur Dantas / Caio Santana / Caique Fernandes Malaquias dos Santos / Felipe Vaqueiro / Samuel Carvalhal), nascida de uma brincadeira dos integrantes da banda Fernão Gaivota, que participa da faixa. Trazendo samples de discursos do cineasta baiano, a música traduz perfeitamente a ideia de “beber e celebrar com Glauber Rocha”. Em termos de estrutura – usando um nome próprio como “palavra de ordem” –, “Glauber Rocha” lembra vagamente hits do passado que são tão upbeat quanto ela, a exemplo de “Adelaide (You’ll Be Illin’)”, do grupo Inimigos do Rei, e “Marinara”, de Fausto Fawcett e a Falange Moulin Rouge.

O segundo grupo de canções “afetivas” é formado pelo samba-rock “Poca” (Felipe Vaqueiro), primeiro single do álbum, que evoca a sonoridade do Los Hermanos; e pela progressiva “Roda Gigante ou Rebimboca da Parafuseta Cósmica” (Brian Dumont / Felipe Vaqueiro). Esta última ainda traz registros “crus” do processo criativo dos integrantes do grupo. As duas faixas versam sobre distanciamentos e términos: seja através da dissolução de um laço que já não funciona mais ou da separação geográfica forçada pelas circunstâncias.

 

Em suma, o trabalho da Tangolo Mangos pode ser definido por duas palavras-chaves: riqueza e diversidade. Essas características se apresentam tanto na sonoridade, que transborda de referências, quanto nas letras e na aplicação sagaz de samples que dialogam com suas respectivas faixas. Se os “dinossauros” insistem em questionar a todo momento se ainda existe rock na Bahia ou sentenciam que o gênero musical morreu, a banda dá, do seu jeito, a resposta que eles precisam ouvir: sim, nós temos rock. Mas não do jeito que eles estão acostumados – ainda bem! Com as muito bem traçadas linhas de Garatujas, a Tangolo Mangos mostra que o rock pode emergir, vivo e pulsante, sem renegar o caldeirão cultural que nos forma enquanto Bahia, Nordeste e Brasil.

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Julli Rodrigues é jornalista e pesquisadora musical. Mais detalhes sobre a autora aqui.

Tangolo Mangos - Garatujas
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