TAXIDERMIA por Liz Dórea

Discos: O futuro na pele desses sons, por TAXIDERMIA

Taxidermia - Vera Cruz Island
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4.6

Depois de dois EPs e alguns singles, o duo baiano TAXIDERMIA lançou Vera Cruz Island, o primeiro álbum cheio, que aprofunda ainda mais as experimentações sonoras que já vinham exercitando. Formado por Jadsa e João Milet Meirelles (Baiana System) há quatro anos, a dupla traz um trabalho ousado e inventivo que ganha aqui uma análise de Pedro Antunes de Paula, nosso mais novo colaborador.

Por Pedro Antunes de Paula

O ato de remontar ou reproduzir um corpo animal com fins de estudo ou exibição é o que chamam taxidermia. Parece que em Vera Cruz Island, estreia em álbum completo, o duo baiano fez da música brasileira um corpo:  ao mesmo tempo que o preserva, o faz esfacelando seus interiores e encontra um futuro sabe-se lá se possível, mas vislumbrado na pele desses sons.

Vera Cruz Island é uma costura de fragmentos, pedaços de temperatura e tempo. O calor das guitarras e palavras rítmicas de Jadsa resgatam Itamar Assumpção e tradições orais com reverência, construindo mantras de porte quase religioso – vide a abertura “PUREZA”: “Sangue / De riqueza / Homem munido de corre / Lindo / De lindeza / Com toda pureza da beleza”. Os beats de João Milet Meirelles alinham muito bem um instrumental distópico, maquínico, a algo simultaneamente humano, porque diz respeito, sobretudo, ao corpo, ao movimento. Perspectiva presente na hipnótica “AUTOBATUQUE”, no transe violentíssimo de “SANGUE FERVENDO” e no tema de “TREMEDEIRA”, em que o corpo é tema central.

O álbum se mune do processo como fio condutor da escuta, estratégia muito características da música que tem o eletrônico/digital como modo de produção. A própria capa ilustra um estúdio e a dupla de frente à Vera Cruz, lugar que a este ponto já é resultado de toda cadeia de ações e mediações artísticas feitas pelo duo, e não mais, necessariamente, um lugar real.

Por isso, a metáfora da costura se faz útil, já que grande parte da cultura digital se pauta pela montagem e remontagem de partes recortadas, retorcidas para daí, algo novo surgir.  A situação-ilha, primeiro apresentada em “3 P.M”, retomada em “CLARÃO AZUL” e ressurgida completamente torcida em “SANGUE FERVENDO”, esclarece muito bem como Vera Cruz é uma construção do lugar através da música, mas também como o aspecto mântrico dos versos ganha potência nos moldes da lógica digital, em que a repetição é um trunfo.

É a nossa grande tecnologia, o repetir. E o TAXIDERMIA me utiliza muito nesse artifício, nessa arte humana”, conta Jadsa no release enviado à imprensa.

No fim das contas, a construção da ilha de Vera Cruz é uma transformação que se atualiza a cada momento em que sua imagem mantra é retomada: “Lua nova às três horas da tarde / Na ilha de Vera Cruz / Na praia de Conceição / O mar invade minha carne”. “SEGREDO DAS FOLHAS” também reforça a construção desse lugar, “Senti que estava deitada nas folhas / Senti o segredo curando dentro”, em que de uma relação íntima entre o natural e o eu-lírico faz surgir a cura. Este mesmo verso é retomado na seguinte “SANGUE ESCURO”, e já deixa esclarecido que as ideias estão livres a ressurgirem quando bem entendem, sem obstáculos entre momentos das faixas.

Por isso a noção de transformação somada à de recortes é fortalecida, já que algumas dessas faixas possuem curta duração (e não são menos potentes por isso), e surgem na mesma medida em que desaparecem, mesmo que com o aviso de que podem voltar a qualquer momento, às avessas. Um extenso fluxo de ideias que vão se encadeando para construir o que, ao fim, torna-se o disco.

Foto por Ayumi Ranzini

Futurista, também, porquê o eletrônico traz consigo esse desejo humano de um corpo perfeito, de um sistema puro, manipulável, que não sucumbe ao apodrecimento de praste orgânico – idealização concreta na técnica da taxidermia, inclusive. Distópico porque o elemento humano está completamente fora dessa equação. Apesar disso, é justamente a partir do eletrônico que Jadsa e João propõem reconstruir um espaço afetivo da memória e um corpo que se vale muito ao contrário de um empalhado.

A vasta lista de participações no trabalho, postura curiosa para um primeiro disco completo, também aponta para um futurismo, neste caso da música brasileira, mas que já é muito presente e muito real. São nomes como Rei Lacoste, Tori, Pedro Bienemann, Iara Rennó, Yan Cloud, Vírus, Vuto, Tuyo e Bruno Berle (em ordem de aparição), que atualizam, à sua maneira, diferentes tradições brasileiras.

Esse futurismo está na consagração de um passado de memória familiar, que invariavelmente dá forma ao corpo que TAXIDERMIA quer reconstruir, mas o transforma, misturando tradição e muita ideia nova que pouca gente pode reconstruir.

https://open.spotify.com/intl-pt/album/4ufLhNC8imTRP9xGALF9Vx?si=3_hgjBfqTvK2DPDULkcduw&nd=1&dlsi=91ddb765e7ba4ea5
Taxidermia - Vera Cruz Island
TAXIDERMIA - Vera Cruz Island
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