Rachel Reis: “a Rachel de dezesseis anos não acreditaria nas coisas que vêm acontecendo agora”

A cantora e compositora feirense Rachel Reis destacou-se no cenário musical baiano com o lançamento de seu EP “Encosta”, em 2021. Feito em parceria com os músicos e produtores Bruno Zambelli e Marcos Cuper, o trabalho une referências de MPB, arrocha e pagodão, entre outros gêneros, e apresenta uma sonoridade própria, ao mesmo tempo ligada às tendências do pop nacional.

Com o lançamento de “Encosta”, Rachel passou a ser considerada uma das revelações da música baiana, chamando a atenção do público, da crítica e da imprensa. Em entrevista ao el Cabong, a artista fala sobre a sua carreira artística, referências, processos criativos e planos para o futuro.

Queria começar a entrevista perguntando de onde vem a sua relação com a música. Já é algo que estava presente desde a sua infância?

Minha mãe era cantora de seresta durante a minha infância e hoje é cantora evangélica. Minha irmã também canta forró, mas eu não tinha muita vontade de seguir esse caminho, porque não me enxergava dessa forma, de me colocar num destaque que você ser uma cantora pede. Eu achava isso muito cansativo e pensava que não tinha o “sauce“, como diz Yan Cloud (risos). Não dava muita importância, mas muitas pessoas que andavam comigo sempre falavam muito que eu devia cantar, que minha voz era legal. Aí teve um momento em que eu acreditei.

Sempre gostei de cantar, mas era besteira, de ficar cantando no quintal, cantando no banheiro. Até que me chamaram para fazer uma participação em um evento em 2016. Eu fui lá, fiz, e nunca mais parei. Passei uns dois anos fazendo barzinho, até 2018. Fazendo barzinho, casamento, aniversário… Chegou um momento em que decidi que queria parar porque queria compor e estudar também. Hoje faço Publicidade e Propaganda e tô nesse corre do autoral.

Isso em Salvador ou em Feira?

Em Feira, ainda moro aqui. Tô tanto em Salvador esses últimos tempos que daqui a pouco tô me mudando, mas minha ideia é finalizar a faculdade e depois ver a possibilidade de morar aí em Salvador. Por enquanto ainda tô por aqui.

Você começou a compor nessa época em que passou a focar no autoral ou já era um hábito que você tinha?

Eu já tinha uns rabiscos. A vida inteira sempre anotei algumas coisinhas, mas nunca levei a sério, nunca achei legal não. Sempre tive vergonha de mostrar, achava terrível. Eu fui realmente pensar em compor alguma coisa que eu cantaria, que queria botar pra jogo, ali em 2019, com as músicas que a gente lançou em 2020.

Essas já são as gravações com Barro, né?

Isso, eu fiz “Ventilador” e “Sossego” e levei pra ele quando a gente começou a conversar. Falei “Poxa, tenho algumas músicas aqui”, e ele me contou que tinha um estúdio em Pernambuco. Me pediu pra ouvir, mostrei “Ventilador”, ele finalizou comigo, botou um trechinho e gostou da música. Acho que ele foi uma das primeiras pessoas pra quem mostrei alguma coisa minha de autoral.

Eu estou de boa, porque eu gosto de fazer e não queria definir um estilo específico pra mim. Geralmente eu sou de bater. Se bateu já foi”

Como vocês entraram em contato e começaram essa parceria?

Foi muito louco, eu estava em uma fase em que queria muito entender como funcionava o mercado, porque não sabia pra onde ir. Já tinha feito algumas pesquisas aqui em Feira, mas continuava na procura, porque queria fazer alguma coisa com alguém que batesse com a sonoridade que eu queria trazer.

Eu já conhecia o trabalho de Barro, ele tinha cantado no Feira Noise uma vez, e teve um momento em que ele me seguiu no Instagram. Não sei se foi erro ou se foi sem querer (risos), mas já chamei ele logo no Direct: “rapaz, e aí pra gente cantar junto?”. Aí ele: “oxe, é assim é?”. Então a gente já começou a conversar. Eu falei que tinha algumas composições, que estava procurando uma forma de gravar, ele me contou que ele tinha acabado de abrir um estúdio, e não deu outra.

Assim que eu tive a chance de sair. Na verdade eu não tive a chance, fui na doida, larguei meu trabalho aqui em Feira (risos), que já estava um inferno. Eu era recepcionista de posto de saúde nessa época e muita coisa tinha acontecido na minha vida que estava me fazendo questionar as minhas decisões, o porquê de estar adiando isso. Aí eu saí do trabalho e consegui viajar pra Pernambuco, fui de ônibus, lá gravei essas duas músicas e depois que lancei em 2020 não quietei mais o facho.

Depois que essas duas músicas foram lançadas você chegou a fazer shows autorais ou a pandemia começou antes disso?

Não deu tempo de fazer nenhum show não. Assim que eu lancei os singles a pandemia explodiu. E aí foi nesse momento que eu parei pra começar o desenvolvimento do EP com os meninos.

E como surgiu a ideia do EP?

Rapaz, eu já gostava muito do trabalho de Zamba (Bruno Zambelli). Tinha visto algumas coisas que ele fez e estava nessa de procurar produtores de novo, pra trazer já uma coisa diferente. Eu gosto de pesquisar muito, e fui atrás dele.

Na época ele estava bem bem ocupado, com projetos do audiovisual também, não só da música, e aí ficou em stand by. Depois ele desenvolveu um beat junto com Marcos Cuper, que eu não conhecia ainda, e falou “poxa, tem uma menina que eu acho que vai combinar muito pra fazer a composição da letra”. Ele mandou pra mim a base do que veio a ser “Saudade” e eu gostei demais. A gente ficou trabalhando nessa música, e o que seria só uma música virou um EP e um álbum visual.

Foi bem despretensioso, a gente não estava nessa de “vamos sentar aqui pra trabalhar, pra produzir, pra lançar, pra fazer acontecer”. Não, a gente tava todo mundo quietão nesse período da pandemia, tanto que a gente só se conheceu pessoalmente no dia da gravação, e aí fomos fazendo. Eu mandando música daqui, eles produzindo de lá, eles me mandando uma base de lá e eu fazendo a composição daqui, sabe? E quando a gente viu o negócio já estava armado.

Então esse projeto desde o início foi um processo mais coletivo, né?

Foi, foi uma coisa de nós três mesmo. A gente botou muito foco nesse projeto. A gente passou o período todo da pandemia matutando nesse EP, pensando juntos nas ideias, na construção dele. Então foi uma coisa muito nossa nesse momento.

Algo que chama atenção nesse trabalho, mesmo sendo o seu primeiro EP, é que ele já tem uma cara sua, algo que faz a gente pensar em você e na sua identidade ao ouvir as músicas. Como foi o processo de criar essa sonoridade?

Logo que a gente desenvolveu “Saudade”, fomos entrando nessa onda de jogar ritmos que a gente escutava desde pequenos, como o arrocha. Mesmo que a gente não seja ouvinte, é uma coisa que está ali na nossa identidade. Minha playlist é bem misturada, eu escuto de tudo, e a gente pensou em colocar coisas que nos influenciaram na música desde pequenos. Você passa em uma esquina em todos os locais da Bahia e tá tocando um arrocha, um pagodão, e a gente acha isso massa, sabe? Queríamos trazer isso pra esse EP.

Em relação à minha sonoridade, às coisas que eu procuro, ainda não sei definir um estilo exato. Eu gosto de fazer coisas que sinto que batem. Quando eu gosto da produção de alguém e vejo que ela combina muito com o que eu faria eu vou lá e me jogo. Ainda não sei definir, mas as pessoas me associam muito com “brasilidades”. Eu sei que isso não é bem um gênero, né? Mas geralmente eu estou em playlists com esse nome, nessa pegada.

Eu não sei me definir ainda, mas também não ligo muito pra isso não. Eu estou de boa, porque eu gosto de fazer e não queria definir um estilo específico pra mim. Geralmente eu sou de bater. Se bateu já foi, entendeu? (risos)

Quando a gente lança uma coisa com estilo diferente do que a gente vem fazendo as pessoas gostam de botar você logo em caixinhas”

Nesse trabalho as letras também dialogam muito entre si. Como você chegou a esse repertório? Algumas composições eram mais antigas e acabaram entrando no EP ou todas foram feitas ao longo da produção? A sua escrita costuma ser mais autobiográfica? 

As letras de “Desatei” e “Maresia” eu já tinha há algum tempo e estava pensando se guardaria pra um álbum, mas acabei decidindo botar logo pra jogo. As pessoas me perguntam às vezes se minhas composições são pra alguém e tal, mas acaba que meu processo de composição é muito aleatório.

Tem gente  que é mais regrada, consegue parar, pensar uma história sua própria, sentar em algum momento do dia e compor, mas eu ainda não tenho essa disciplina. As mensagens também são muito misturadas, não é nada exatamente pra mim. Algumas coisas eu tiro ali da minha vida, mas às vezes eu sou Fifi também, me inspiro na vida de outras pessoas ou até em um filme que eu assisti. “Maresia” inclusive, toda a construção dela e o insight de um arrocha me veio muito com um filme, “Y tu Mamá También”, com Diego Luna. 

Então as coisas são muito soltas ainda na minha cabeça, inclusive é uma coisa que eu quero mudar. Quer dizer, no período do processo de composição do álbum, eu tive mais disciplina de parar aqui de noite e compor, mas nesse processo do EP ainda foi muito soltinho, eram algumas músicas que eu já tinha aqui ou então “ah, vou compor aqui agora rapidinho”, sabe? Então não teve muita disciplina e as histórias também são todas misturadas, eu me inspiro na minha vida em algumas coisas mas pego da vida de outras pessoas ou alguma coisa que eu gosto, algum filme, e se isso me traz alguma sensação a partir disso eu vou compondo.

Em algumas entrevistas você disse que sentiu certo receio de lançar a faixa “Maresia”, que estava na dúvida se ela ia entrar no projeto ou não. Por quê?

Eu fiquei com um pouco de receio porque sei que quando a gente lança uma coisa com estilo diferente do que a gente vem fazendo as pessoas gostam de botar você logo em caixinhas. “Essa menina aqui é cantora de arrocha, de tal e tal…” E aí eu fiquei preocupada porque logo no princípio a gente trazia referências do arrocha, mas não ia ser um arrocha, arrocha, sabe? Ia ter referências ali mas ia ser um pouco mais misturado. Só que aí a gente foi entrando na onda de fazer e fazer mesmo, entendeu?

Então fiquei com um pouco de receio de como as pessoas iriam receber, se iriam entender meus próximos lançamentos, porque eu sou solta no mundo ainda, não tenho identidade definida. Até que veio um momento em que eu falei “oh, foda-se, vamos lançar” (risos). Aí a gente lançou como faixa bônus do EP e eu paguei a língua, porque todo mundo abraçou, todo mundo que já me escutava antes gostou, eu senti que não teve nenhum tipo de choque com as minhas outras músicas e fiquei feliz porque eu quero cada vez mais misturar mesmo, quero cada vez mais essa liberdade de produção e de composição.

Eu vi alguns vídeos do seu primeiro show, na Ecosquare, e me surpreendi com a casa lotada e o público cantando todas as músicas, não só “Maresia”, que é a mais famosa. Como foi pra você começar a fazer shows autorais nessa retomada de eventos presenciais nos últimos meses? 

Eu falei assim: “que maluquice”. Uma loucura, uma loucura, porque a gente que lançou trabalhos em período de pandemia não espera, né? Eu vi que tinha um alcance legal de números (na internet) mas não imaginei que as pessoas fossem pagar pra estar ali me escutando cantar pessoalmente. Aí quando eu entrei na Eco e vi que tinha um uma galera boa, eu falei assim: “é,  estou aqui entrando num local, isso não tem nada a ver comigo”. Estava lá passeando, tomando meu drink, né? Morrendo de preocupação, com medo de cantar errado, porque eu estava muito nervosa, e a minha ficha só caiu realmente quando eu subi no palco que todo mundo começou a falar comigo e a gritar.

Quando todo mundo começou a cantar as músicas que eu falei “é, menino, tá rolando” e aí foi quando caiu mais a ficha sobre essa coisa do ao vivo. Eu ainda toda me tremendo na base porque eu não tenho costume com palco e nem com pessoas que estão ali, que pagaram para me ouvir. Eu vim de uma experiência de barzinho e eu já estava acostumada com isso de cantar sentada, cantar pra gente que não está me ouvindo cantar, e tudo bem que as pessoas estão ali pra beber, né? Eu já tinha essa construção e agora tenho que aprender a lidar com as pessoas num palco. Isso é um pouco assustador na minha cabeça mas estou tentando desenvolver.

Você sente que desse primeiro show pros próximos já mudou alguma coisa? Eu fui no da Virada Sustentável, na Sala do Coro, e pelo menos enquanto público parecia que você já estava mais tranquila ali no palco.

Eu acho que no show da Sala do Coro eu fiquei bem mais contida, sabia? Acho que foi o formato. As pessoas não podiam levantar por causa da restrições e tudo mais e aí eu acho que me senti um pouco mais contida, apesar do público ter me recebido muito bem de lá mesmo, mandando coraçãozinho, gritando… Mas quando os shows foram com a galera mais próxima de mim eu acho que eu dei uma destravada melhor. Eu ainda estou entendendo como é que é o meu processo no palco, mas eu senti essa diferença.

Com esse trabalho você também chamou a atenção de outros artistas ao redor do Brasil. Uma das pessoas com quem você já criou uma relação foi Illy, com a faixa “Me Veja”, que vocês lançaram juntas. Como aconteceu essa parceria?

Eu já conhecia o trabalho de Illy desde 2017, 2015… Ela sempre foi uma pessoa com quem eu queria cantar, fazer alguma coisa junto. Às vezes eu digo assim, “porra, a Rachel de dezesseis anos não acreditaria nas coisas que vem acontecendo agora”.

Jorginho, que é meu assessor, me apresentou a ela. Ela é esposa dele inclusive. Eu tinha essa música guardada que parece que foi feita pra esse momento, porque eu nunca quis lançar, nunca pensei em trabalhar ela anteriormente, mas eu sentia que estava guardada pra alguma coisa assim. E aí deu certinho. Combinou muito com a voz dela. E ela é muito gente boa, sabe? Muito aberta, muito tranquila. Bateu certinho comigo.

Também tem outra parceria que não sei se vai acontecer mesmo ou não, mas Céu postou uma foto falando sobre um próximo feat e você comentou um emoji ali… O pessoal ficou comentando que era com Rachel Reis, e você já vai abrir o show dela aqui em Salvador. E aí, vai rolar?

Será? (risos) Não sei… Eu quero muito que role alguma coisa com Céu, mas não vou contar, tu não posta isso não (risos). Eu só acredito se rolar, eu sou muito fanzona dela sabe, tenho desejado muito que aconteça, “tamo” aí na torcida pra ver se acontece alguma coisa. Ela é fodona demais. A mulher é ocupadona. Eu fico com receio, né? Apesar dela sempre me tratar super bem.

“Tô” na torcida também (risos).  

Com essa retomada dos shows presenciais e com os trabalhos que vocês lançaram tem se falado muito de certa forma de uma nova cena com nomes como você, Melly, Sued Nunes, Iuna Falcão, entre outras artistas. Algumas matérias, a exemplo daquela da Vogue, têm destacado o trabalho de vocês. Nos últimos anos muitas cantoras e compositoras já conquistaram um espaço com suas músicas, como Luedji Luna, Xênia França, Josyara… E agora vocês também têm aparecido mais com seus trabalhos. Como você enxerga essa nova cena de artistas da Bahia?

Eu sou apaixonada por Josyara. Ela é muito gente boa. No período que eu precisei ir pra Salvador estava rolando muita coisa e todas as vezes que eu me batia com Josyara era aquela aquela festa. Ela é muito gente fina.

Eu vejo que tem formado uma cena com as meninas e eu fico feliz de de fazer parte disso, principalmente porque eu gosto muito delas e de quando me associam a elas. Eu sou apaixonada por Sued. Quando eu vi aquela matéria que saiu na Vogue eu estava inclusive conversando com ela no WhatsApp, aí mandei pras duas (Sued Nunes e Melly).

Eu fico muito feliz com isso, porque eu realmente gosto da voz delas. Eu percebo que na música, na cena, rola um pouco de forçação de barra. Você não curte muito o trabalho de alguém, uma pessoa não curte muito seu trabalho, mas pra manter uma aparência você finge que curte o trabalho dela na internet, talvez pra fazer parte de uma panela.

Mas com as meninas que surgiram dessa nova cena – não sei se já posso chamar de uma nova cena mas as pessoas sempre botam a gente numa nova cena – eu fico feliz porque eu gosto de verdade do trabalho e da pessoa delas, sabe? Fora o fato de serem meninas negras, de nós três sermos meninas negras na Bahia. Eu torço muito pra todo crescimento que a gente tem porque viemos de um cenário de música baiana em que, até poucos anos atrás, as pessoas que ganhavam espaço na mídia nacional ou que ganhavam mais abertura e inclusive títulos de reis, de rainhas da música baiana sempre foram pessoas brancas. Então eu fico feliz quando vejo essa abertura e o crescimento delas também.

Pra fechar a entrevista queria perguntar quais são os seus próximos planos. As composições do álbum já estão todas prontas?

As composições já estão todas adiantadas, a produção também. Tá tudo bem adiantadinho, já fui pra Salvador esses dias pra fazer umas fotos com Flora pra divulgação do álbum. Falta gravar algumas músicas, mas eu já fiz algumas em Salvador com Barro e Guilherme Assis, que estão produzindo. Fiz umas fotos também, uns visualizers… Eu estou indo pra São Paulo semana que vem pra gravar um material. Ainda não tem data específica, mas a ideia é que ele saia esse ano, talvez no segundo semestre. Essas datas dependem de como fluir, se a gente já vai estar com o material todo amarradinho nesse período.

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