Entrevista: Fausto Nilo, o arquiteto de clássicos da música brasileira

Autor de letras de diversos clássicos da música brasileira nas mais variadas vozes, como Gal Costa, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Nara Leão e Maria Bethânia, o cearense Fausto Nilo completou 50 anos de carreira em 2022. Uma trajetória que o coloca como um dos grandes nomes de nossa música, mesmo que distante dos holofotes. Algo, aliás, que ele até prefere.

“Quando fui ser letrista, já sabia que era assim. Confesso até que eu achava um pouco charmoso, pode ser até que ainda ache… Não é masoquismo, não. Tem tanta vantagem nisso.”

Fausto pode não ser uma cara conhecida no panorama artístico nacional. Mas não há brasileiro que não saiba cantar ao menos alguns dos seus versos. Com parcerias que incluem nomes como Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Fagner, Dominguinhos, Chico Buarque, Geraldo Azevedo, Chico César e Zeca Baleiro, ele vê como suas músicas seguem sendo atuais e reverberando por gerações. Pelas suas contas, são mais de 500 composições em mais de mil gravações, que ele está começando a organizar.

Aos 78 anos, o artista pede a valorização do trabalho do compositor, enquanto se divide entre a tarefa de compor pérolas de nossa música, como “Bloco do Prazer”, “Chão da Praça” e “Eu Também Quero Beijar”, e a ocupação como urbanista. Neste longo papo, Fausto fala sobre sua origem, seu método de criação e suas parcerias, além de recordar histórias saborosas sobre alguns dos seus hits e analisar o mercado contemporâneo, ao qual se mostra antenado.

– Como teve início sua trajetória na música?

Eu era ligado ao que se chamava Pessoal do Ceará, que na realidade não era um movimento, ao contrário do que muita gente pensa. Eu demorei muito para entrar. Era chamado para tudo, cada um tinha seu papel, e eu ia ser o arquiteto. Éramos envolvidos com arte e com a política estudantil.

Na época, muitos amigos meus morreram, foram torturados. Eu fiquei no plano do movimento estudantil, fui preso algumas vezes, mas não era propriamente um ativista mais radical. Me formei e, em 1972, fui morar em Brasília para dar aula na Faculdade de Arquitetura da UnB. Um dos jovens que estavam ali nessa época era o Fagner, que era bem mais novo que a gente. A convite do Belchior, ele estava indo para o Rio, iam dividir um apartamento em Copacabana e tentar a vida na música.

Fagner me pediu para fazer umas letras. Eu disse que não era poeta nem letrista, mas tivemos umas conversas até que experimentei fazer uma canção com ele. Ele me escreveu dizendo que nossa primeira canção ia ser gravada pela Marília Medalha, que era “Fim do Mundo”. Fiquei um pouco perturbadinho, porque pensei “se essa deu certo, será que eu sou autor mesmo, letrista?”

Um outro artista do grupo do Ceará, chamado Petrúcio Maia, me escreveu dizendo que eu tinha me revelado um grande letrista e pediu uma letra. Escrevi e mandei para ele uma letra chamada “Dorothy Lamour”, inspirada numa atriz americana dos anos 40, 50. Eu já estava envolvido com pensamentos anti-imperialistas, anti-americano, estava abandonando o cinema americano nessa época que fiz a letra. Aí aproveitei e fiz algo romântico usando a Dorothy Lamour como símbolo.

Essa música não é conhecida no Brasil, mas deu muito resultado em Fortaleza, foi gravada pelo Ednardo no início da carreira. Com essas duas, o Fagner me pediu outra. Fiz “Astro Vagabundo”, que saiu no segundo disco dele. Aí nasceu o meu jeito de fazer letra, e as pessoas perceberam isso.

– Essas primeiras músicas chegaram a fazer sucesso em algum momento?

Não fizeram sucesso como eu viria a ter depois. Ainda estavam circunscritas ao repertório de Fagner, Ednardo, e eles já tinham público, como uma coisa assim meio alternativa, eram bem jovens na época, mas não era uma coisa de massa nacional.

Com Fagner eu fiz também para esse segundo disco outra chamada “Retrato Marrom”, foi gravada ainda pelo Ney Matogrosso, muito tempo depois. E fui fazendo com eles, aumentou bastante a quantidade de músicas.

Estou completando 50 anos de atividade profissional, sem que eu tenha passado um ano sem gravar. Às vezes menos, principalmente ultimamente, porque tenho minha carreira de urbanista e estou com 78 anos. Então, chega uma hora também que o estilo é o mesmo, mas seus assuntos vão ficando diferentes pela experiência de vida, pela idade, enfim. E você já não tem mais aquele interesse de competir. Essa coisa vai mudando, não só de qualidade, de uma forma positiva, já que você vai ficando mais experiente. Ao mesmo tempo, é bem diferente do começo. O começo é mais aventureiro, mais livre.

Estou completando 50 anos de atividade profissional, sem que eu tenha passado um ano sem gravar.”

– Quantas músicas você já fez? Tem ideia?

Tem uma história que tenho 400, mas não me incomodo com isso não, eu deixo, repetem muito, porque é uma informação de 30 anos atrás. Eu devo ter umas 550 a 600 canções. Agora gravações tem mais de mil.

Existe uma playlist no Spotify que fiz pra me divertir com ela, que tem muita coisa. Inclusive gravações sem crédito. Coisas que eu estou começando a organizar agora, porque estou começando a pedir ajuda de pessoas para ser um autor com sua obra num tempo que existem muitas técnicas de divulgar e aplicar músicas. Mudou muito. Hoje você precisa ser autor e, ao mesmo tempo, ter interesse por cultura tecnológica.

Eu não sou um ás do computador, nem da internet, nem gosto muito de redes sociais, mas estou vendo como ter ajuda de alguém para organizar esse repertório. Se você entrar nessa playlist vai ter umas 800 e tantas gravações. Ali tem tudo, porque tem canções que eu não controlo. Tem algumas que tem 50 gravações e eu não sabia. A editora nunca me mandou pedir autorização, no entanto gravaram. Da Amazônia até Minas Gerais, é onde predominam essas gravações “marginais”.

– E como começou a parceria com Moraes Moreira, um de seus maiores parceiros?

O Acabou Chorare me impressionou muito, pela singularidade de ser um disco de música brasileira com um tratamento instrumental de base brasileira surpreendente. Ao mesmo tempo, eles eram todos muito jovens, eram uma alternativa diferente da música mais tradicional, e tudo isso me encantou. Principalmente as letras de Galvão e a parte melódica de Moraes, aquela parceria pra mim foi uma coisa de muita importância quando ouvi, embora eu trabalhasse com uma linha de produção de canções bem diferente.

Quando eu conheci Moraes, eu estava no Rio de Janeiro, um pouco antes de me mudar (para a cidade). Eu já conhecia Ivan Lins, Chico Buarque, mas eu mesmo não era conhecido, era apenas um parceiro do Fagner. Mas encontrei o Moraes na casa do Afonsinho, o craque (do Botafogo). Moraes estava passando uma temporada no apartamento dele, tinha saído dos Novos Baianos. Um dia eu fui lá com Abel Silva e o Fagner. Houve um momento que eu e Moraes ficamos conversando, falei pra ele que era de Quixeramobim, ele também falou que era do interior, houve uma espécie de código de identificação. Os dois no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo…

Nessa conversa, ficamos os dois isolados dentro da sala muito tempo conversando. Depois nos despedimos. Um tempo depois, por uma ponte feita por uma menina que era ligada em arte e fã da gente. Era louca pelo Moraes e começou a inventar que eu tinha que ser parceiro dele. Ela dizia que eu devia autoriza-la pra trazer uma música de Moraes para eu colocar uma letra. Eu explicava que isso podia acontecer um dia se ele me chamasse. Não tinha cabimento aquilo daquela forma.

Até que um dia ela chega em minha casa com uma fita contendo uma música de Moraes e um recado dele, propondo que eu fizesse uma letra. Fiz “Prosando com Maria”, que está no terceiro disco dele (“Alto Falante”, 1978). Ele gostou tanto dessa música que me convidou para fazer mais. Ele ia na minha casa, eu ia na dele. Fizemos seis para esse disco, que teve um excelente resultado, aí viramos parceiros.  Depois, fizemos músicas para o “Lá Vem o Brasil Descendo a Ladeira” (“Coração Nativo”, “Som Moleque” e “Chão da Praça”).

 

eu só me interesso por uma letra que estou fazendo quando ela me revela em outro dia algo que eu não conhecia.”

– Como foi a criação de “Chão da Praça”?

Foi uma parceira muito curiosa. Um dia ele me ligou dizendo que estava indo para a Bahia, para o carnaval. Me perguntou se eu tinha alguma letra pra ele levar. Mas eu tenho um hábito: gosto de letrar músicas, é muito raro eu passar uma letra a alguém. Sempre ouço e brinco que eu ajudo a pessoa a cantar, colocando a letra.

Naquela ocasião, eu disse a ele que era difícil eu fazer música de carnaval, porque minhas músicas eram muito melancólicas. Ele falou que adorava aqueles frevos de bloco de Recife, que aquelas músicas dão vontade de chorar, e que podíamos fazer daquele tipo. Falou ainda para eu não me preocupar, porque na Bahia tocava no trio elétrico até “Bolero de Ravel”. Falei que tinha uma letra e ele disse que tinha uma melodia.

Ele foi imediatamente em minha casa e quando chegou lá aconteceu uma coisa muito engraçada. Fomos logo para a cozinha fazer algo para comer. Dei a letra, ele botou no joelho e ficava com o violão fazendo umas harmonias sem tocar. E ficava dizendo “que loucura, o que é que é isso?”. Eu comecei a ficar preocupado, sem saber o que ele queria dizer com aquilo. Ele disse assim: “Fausto, vou fazer na sua frente para você saber que é verdade. Essa letra que você me deu cabe na minha música”, e cantou “Chão da Praça”. A gente era muito louco, então muitas coisas apareciam dessa forma.

No final, quando a gente terminou ele pediu só pra eu fazer como naqueles filmes da Broadway, que começa uma parte lenta e depois começa a música. Ai fiz a parte inicial: “Olhos negros, crueis, tentadores…” Isso é uma frase de uma música que era cantada pelo Orlando Silva. A gente fez parecido com a melodia, sem ser igual. Ele adorou e daí ficamos a tarde toda cantando e repetindo a música.

Moraes foi muito importante porque eu vinha de um período do âmbito universitário, eu era professor da universidade, larguei tudo, havia um clima muito pesado de ditadura, muitas histórias na noite no bar com informantes, amigos presos, era um clima muito ruim.

Quando eu cheguei ao Rio, eu queria me livrar daquele pesadelo. Encontrei um bocado de maluco que não estava nem aí para esse negócio de ditadura, e tal, e que normalmente meu grupo (no Ceará) ia dizer que eram alienados… Mas hoje eu dou muita importância a isso. Porque me lembro que eu fazia um comentário qualquer de política pro Moraes, e ele passava o baseado pra mim e dizia “é mesmo, cara, que merda. Mas bicho, tu viu o Flamengo domingo?”.

Aquilo foi me contagiando, e devo muito ao Rio e às pessoas de música, porque foi assim que foi melhorando minha vida. De uma tristeza que eu saí de Fortaleza para uma vida carioca mais relaxada, mais bacana. (Com o Moraes), normalmente nossas músicas começavam de uma maneira muito curiosa. Eu começava a falar um assunto qualquer e ele sentia interesse em conversas que eu mantinha com ele, mas pretensamente intelectualizadas. Por exemplo, eu contando a história de Eurídice, da mitologia grega, aí ele fazia uma música e cantava para mim. Com dez minutos tínhamos uma coisa. Era assim que funcionava com ele.

Uma vez, ele me ligou, chamando para eu ir lá terminar uma letra. Estavam ele e o Pepeu. Quando cheguei, eles estavam havia horas tocando e cantando, mas só tinham o refrão, que queriam que fosse uma homenagem àquele coreógrafo francês que tinha estado no (Teatro) Municipal. Era Maurice Béjart. Só tinha “Béjart” no refrão, e eu escrevendo uma letra. Terminou sem eu conseguir botar o “Béjart” no meio.

A gente parou e foi almoçar, demos um intervalo, e pensei que tinha que falar pra eles que “Béjart” era legal, mas ninguém no Brasil ia saber o que era. E a sonoridade tendia a ser entendido como “Beijar”. Aí propus: “Moreira, vamos botar ‘beijar’ mesmo. Ele ficou assim, mas experimentou, Pepeu concordou e mudamos e virou “Eu Também Quero Beijar”, ganhou outro clima. Fizemos outras músicas, e acabei ficando parceiro de Pepeu também, fiz umas quatro músicas (com ele), (como) “Tudo Blue”, que a Baby gravou,“Mil e uma Noites de Amor”… Acabou que com Armandinho fiz também outras, “Vida Boa”, “Zanzibar”. Moraes me agregou a esses parceiros da Bahia, e muita gente pensa que eu sou baiano.

– Essa coisa de você ser baiano é porque você fez alguns dos sucessos do Carnaval baiano, alguns marcos. Alguns dos grandes clássicos de Moraes são parceria com você. Quais vocês destacaria?

Eu gosto de “Coisa Acesa”, “Chão da Praça”, “O Bloco do Prazer”. Essa foi no Carnaval de 1980, 1981. Começou com uma brincadeira: “Não quero oito nem 80”. A gente ria muito, isso podia servir pra tudo. E fizemos a “Coisa Acesa” para passar para Gal, mas Moraes tinha feito uma gravação no estúdio que ficou tão apaixonado que lançou logo. Se não me engano eu tenho umas 35 a 40 músicas com ele. Mas tem muitas que eu adoro.

O “Bloco do Prazer” teve uma coisa muito bacana, que ele me chamou para ir no Carnaval, disse que eu tinha que ver a nossa música na massa. Aí eu fui e quando cheguei na Bahia, fiquei num hotelzinho pertinho do Carnaval. De manhã eu tinha sonhado que estava na Bahia e um trio elétrico passava tocando “Bloco do Prazer”, quando eu acordei era verdade, na frente do hotel estava tocando a música. Eu sai de bermuda, do jeito que estava e fui até a Praça Castro Alves correndo atrás do trio. E era um trio do subúrbio uma caminhonetezinha, toda amassada, velhinha, e umas as pessoas em cima cantando. Muito bacana, Não esqueço nunca. Aí ele passava no trio lá em cima, uma hora me viu e falava comigo.

Num outro ano eu fui de novo e o Armandinho me encontrou e disse que tinha uma música que queria me dar. No avião voltando pro Rio ouvindo aquela música e nessa época em Salvador tinha uma mensagem em todo canto escrito “Zanziblue”. Não sei era de algum lugar, algum bar não sei. Ouvindo a música e na hora que fazia um som eu ouvia algo parecido com esse “Zanziblue”. Mas não encontrava muito sentido para isso, ai guardei os fones, parei de ouvir e dormi. Quando acordei ouvi de novo e ai veio assim na hora: “Zanzibar”, a ilha. Ai eu podia fazer alguma coisa. Essas músicas acho que até hoje tem uma permanência no Carnaval. Acho que fiz umas dez músicas com Armando, Pepeu e Moraes para o Carnaval da Bahia.

– Essas músicas são muito pedidas ainda. Queria que você falasse de “Zanzibar”.

Tem uma história boa de “Zanzibar”. Eu tenho uma mania, um toque, que foi ficando pior com o tempo. Eu termino uma letra e não consigo mais entregar pro parceiro. Fico dando uma olhada no outro dia, dá uma semana eu olho de novo. Fico implicando com uma palavra ou uma frase. Aquilo me angustia, eu tenho que resolver. Mas eu dei “Zanzibar” pra eles, porque A Cor do Som estava gravando.

O tempo do estúdio estava se esgotando e eu dizia sempre: “Armando, eu não dei ainda porque tem uma frase que estou lutando com ela e tal”. E ele me pediu assim mesmo que eles faziam base, podia botar até voz e deixava aquele pedacinho faltando. Um dia ele me ligou a noite e prometi que no outro dia tinha a frase. Ai eu ia andando no Jardim Botânico, tinha um boteco, tipo pé sujo, e ia andando cantando, até chegar na parte que falta pra ver se de repente sai. Na hora que passei na frente desse bar um sujeito saiu de dentro, deu uma cusparada na calçada, tipo tomou uma cachaça e quase cospe em mim. Ai volta, entra no bar e diz “aliás”, e continua a conversa com os outros.

O cara falou na métrica e no tom da música. Ai eu disse, “Morreu, é ‘Aliás’”. Liguei no orelhão e Armando perguntou “e ai, qual a palavra?”. Eu disse “aliás”. Ele não acreditou, meio que tampou o telefone e disse pros outros: “ele tá dizendo que é aliás”. Mas de uma maneira meio assustado, sem acreditar. Eu disse para confiar, que era aquilo mesmo. Quando deu de noite ligaram contentisíssimos, com a música toda gravada, pronta, botaram pra eu ouvir. E é na hora que o coro da multidão vai mais junto nesse momento do “aliás”.

– Pelo que você está dizendo, você pega uma ideia do parceiro e vai desenvolvendo em cima dela… É assim que funciona para você?

É, porque eu não sou um poeta da poesia silenciosa, nem nunca quis ser. Eu tinha um trauma com poesia, porque esqueci uma poesia do Olavo Bilac numa praça lá na minha terra. A professora me encarregou, decorei a poesia, mas na hora H enganchou, eu era muito tímido, e saí arrasado por isso.

Me distanciei um pouco de poesia, mas aí, quando entrei na universidade, encontrei um grande amigo que me mostrou João Cabral de Melo Neto. Fiquei louco. E fui ler poesias americanas, inglesas, francesas, dei uma geral. Um cara chamado Apollinaire (Guillaume Apollinaire) me impressionou muito. Um poeta francês do começo do século XX.

O Apollinaire dizia que poesia surrealista é pleonasmo e poesia não é um relatório, não é uma descrição de algo verossímil e comum. Dizia que você tem que trabalhar o processo e que esse processo transpareça e deixe que o leitor ou ouvinte compreenda tudo. Depois fui lendo os filósofos… Tudo aquilo para mim foi importante porque eu me identifiquei.

Eu me lembro que fiz uma música com Robertinho de Recife chamada “O Elefante”. Essa música foi um sucesso. Uma moça do jornal O Globo foi me entrevistar. Ela dizia assim: “Fausto, o que quer dizer essa letra?”. Ai eu dizia: “Ela não quer dizer, a maneira que ela diz é essa que você conhece”. “Sim, mas é uma letra difícil de ser compreendida”. Aí eu falei assim: “Você gosta?”. “Amo! Ouço dez vezes por dia”. Eu disse: “É isso que ela quer dizer, é isso que você ama”.

Agora eu só posso dizer daquela maneira, se eu disser de outra é inferior ao que encontrei para descrever isso que não tem nome. Então, eu não sou um letrista que escrevo e guardo, que poderia fazer uma poesia silenciosa. Mas não tenho pretensão a isso, não tenho vontade de fazer um livro de poesias.

Descobri que fazer letra de canções é fazer poesia com o laboratório de massa num país como o Brasil. Eu fiz isso tudo com muita consciência. No começo, era assim: “será que o povo vai entender essa loucura que estou falando aqui?” E descobri a capacidade do povo de viajar em poesia não convencional.

É claro que uma canção simples pode ser belíssima, e às vezes é muito difícil de fazer também. Tem uns códigos. Por exemplo, uma música mais tradicionalzinha, popular, se ela tem uma segunda parte, você pode ter feito a maior poesia do mundo, mas se, naquela hora, não aproveitar aquilo da maneira que o início de uma segunda parte em canções está a lhe exigir, pode ser o maior fracasso. Tem esses macetes, que os grandes autores populares usam, como o Roberto (Carlos) e o Erasmo (Carlos), aquelas músicas todas são muito bonitas, e todo mundo gosta. É claro que elas são simples, eles não se meteram com surrealismos. Mas uma vez ou outra tem. “… E Que tudo mais vá pro inferno”, ele (Roberto) não gosta mais de cantar, mas é genial.

Então, eu só me interesso por uma letra que estou fazendo quando ela me revela em outro dia algo que eu não conhecia. Ai penso: “O que eu passei agora, eu acho que o público vai passar”.

Descobri que fazer letra de canções é fazer poesia com o laboratório de massa num país como o Brasil.”

– Como vê a produção musical hoje? Acha que as letras estão muito literais?

Eu não tenho segurança de dizer para você se é melhor ou pior, é muito difícil fazer esse tipo de avaliação, mas é uma tendência visível e audível. É como se o autor quisesse catequizar alguém com uma opinião, coisas que normalmente as músicas de protesto tendem a fazer. Eu não vou dizer que as músicas que eu faço não tenham uma visão política, elas têm.

“Pão e Poesia”, que é uma música minha e de Moraes que eu adoro, um samba, que ela até hoje pode ser ouvida como uma coisa que você percebe falar sobre a cidade, sobre o meio ambiente. Agora, eu tenho que fazer isso de uma maneira que seja boa de cantar. E que aquele que não está interessado nessa mensagem que está por trás também se divirta cantando. Eu gosto quando arredonda tudo.

Mas uma coisa que acho muito positiva são essas músicas que nasceram nas favelas, e que estão crescendo, de garotos da periferia ou do morro, que normalmente são letras políticas, com uma visão atual. O rap eu acho legal. Eu, pessoalmente, preciso de melodia, tenho dificuldade (de entrar no universo do rap), mas me interesso e quero ouvir. O que noto que não tem mais é uma coisa que na minha geração tinha muito: é você se juntar para ouvir junto uma música e conversar sobre ela.

Autor de letras de diversos clássicos da música brasileira, Fausto NIlo segue compondo e atuando como arquiteto em Fortaleza

Eu noto que os jovens às vezes ouvem um pedaço e passam para outra música. A obra não precisa se completar. São formas diferentes, mas eu tenho respeito. O que não chego a ter preconceito, mas o que não gosto muito de ouvir é o gênero popularesco. “Não sei o que do motel, do seu celular”. Não é censura com nada. Já falei coisas em letras de música que não era habitual que se falasse. Mas é como se houvesse um propósito sociológico dirigido a um grupo que foi estudado e são sensíveis aquelas palavras. Umas música de um romantismo consumista. Não gosto muito, não tenho muita identificação.

Sempre distingui uma canção popular quando ela tem um valor, que pode ser até de um autor desses, não tem problema nenhum. Eu não deixo de curtir se ela me comunicar, se ela tem uma melodia, um ritmo e uma prosódia, e as palavras que ela tem. Acho também que música popular é popular, por isso que o desafio é grande, porque eu tenho uma formação, digamos, superior, que não é como no tempo do rádio, que a maioria das pessoas tinha uma origem mais simples.

Eu passei pela universidade e é natural que no conjunto de minha obra se reflita que eu tive isso, mas ao mesmo tempo eu vim da rua. Então eu tento fazer que uma coisa com outra produza uma terceira situação. Sempre foi assim o meu interesse. Agora é arriscado, porque você pode acabar escrevendo uma coisa que não faz sentido nenhum pra ninguém em nenhuma circunstância. Mas é o risco.

Uma coisa que acho muito positiva são essas músicas que nasceram nas favelas, e que estão crescendo, de garotos da periferia ou do morro, que normalmente são letras políticas, com uma visão atual. O rap eu acho legal. Eu, pessoalmente, preciso de melodia, tenho dificuldade (de entrar no universo do rap), mas me interesso e quero ouvir.”

– Você tem alguma música que você criou uma expectativa e não bateu?

Eu poderia dizer que 70% daquelas que acreditei que ia dar resultado, ocorreram. Só que eu fiz muitas que eram lado B, mas fazia e gosto delas também. No dia que eu terminei “Pão e Poesia” com Moraes, eu pensei “essa música é do caralho”. A Simone gravou. “Retrovisor”, uma música que eu fiz com o Fagner.

Elas terminam de um jeito que eu ouço como se não fossem mais minhas, eu gosto disso. Não é mais minha, ela já recebeu outros condimentos no ar do caminho dela. Eu gosto muito também que ela reflita a pessoa que eu sou. Ou seja, eu passei pela universidade, eu estudei história da arte, fui obrigado porque sou arquiteto, gostei de estudar poesia, algumas coisas e tal, agora, eu sempre gosto da mistura de coisas mais sofisticadas com coisas bem comuns.

Às vezes, um lugar comum no meio de uma base toda mais inovadora produz uma terceira situação muito interessante. Eu sempre me colocava isso, se eu não conseguisse eu deixava de lado porque não via muito sentido.

– Você é um compositor muito importante da música brasileira, mas como você enxerga o reconhecimento do compositor no Brasil, inclusive econômico, dessa dificuldade com o direito autoral. Como vê isso atualmente?

Na época do alto-falante e da revista “Cruzeiro” foi quando eu fiquei sabendo que os dois grandes autores de tango no Brasil, e de alguns sambas-canções que são clássicos, eram o Herivelto Martins e o Davi Nasser, um jornalista. Passei a admirar aqueles nomes, sonoramente. Mas não via a cara deles. E o rádio dizia “Ouvimos de Evaldo Gouveia e Jair Amorim…” e falava o nome da música. Isso também acabou.

Com o LP, (os créditos passaram) a constar na contracapa, junto com o título da música. Quando fui ser letrista, eu já sabia que era assim. Eu confesso até que eu achava um pouco charmoso, pode ser até que eu ainda ache. Não é masoquismo, não. Tem tanta vantagem nisso. Aqui em Fortaleza não. Os conterrâneos têm orgulho da pessoa, acho que todo lugar tem isso. Acho bom ser autor e ser um nome, acho legal.

Já vi muitas cenas de parceiros, famosos com sua imagem, que diria ser de sofrimento: a popularidade passa a ser uma coisa ruim até. Agora, o direito autoral é outra coisa. No tempo do disco, a gente ganhava mais. As plataformas não estão nos pagando o que deveriam pagar. Uma pessoa que tem cerca de mil gravações numa plataforma dessas, era para ter um resultado melhor.

E, no meu caso, ainda tem um detalhe: eu uso um dispositivo que faz um mapa com todas as suas músicas que tocaram no Brasil. Cheguei à conclusão que uma parcela do meu repertório é permanente. Claro que não está nas paradas, mas toca na rádio. As de carnaval, de São João… tenho várias com Dominguinhos e com outros colegas, tocam muito. Tem muitas delas que são permanentes. Mas o que recebemos das plataformas ainda é muito insignificante, na minha opinião.

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