O rapper e compositor Gabriel O Pensador parecia ter perdido o tom e a inspiração. Nesta quarta (21), o artista mostrou que ainda tem o que dizer com o lançamento da música e clipe de “Patriota Comunista”. A exemplo do melhor de sua obra, Gabriel combina uma base caprichada e arranjos criativos com uma letra ácida e certeira.
Na música, o rapper aborda os problemas sociais e políticos do Brasil atual e mira na banalização da morte em tempos de pandemia e, claro, no atual presidente Jair Bolsonaro. Tudo embalado por uma base trap, inserção de sopros e citações a clássicos da música brasileira.
A música tem uma atmosfera sombria, com versos cáusticos, e ganha ares ainda mais soturnos no clipe, gravado num cemitério em Uberlândia, Minas Gerais. Entre as imagens, um grupo de políticos aparece brindando sobre as lápides com leques de dinheiro nas mãos. A direção é de Fabio Masson e Victor Barão. Confira:
Na letra, Gabriel conta sobre um pesadelo em que está morto e se encontra com pessoas próximas que morreram recentemente, alguns em decorrência da Covid-19. Cita o próprio pai, os atores Eduardo Galvão e Paulo Gustavo, e ídolos como Aldir Blanc (1946 – 2020) e Moraes Moreira (1947 – 2020). Na letra, aliás, o rapper cita o verso-título de “Lá vem o Brasil descendo a ladeira”, samba de Moraes com Pepeu Gomes. Outra que aparece é “Fita amarela”, de Noel Rosa, executada por sopros e por uma voz em tom fúnebre.
O rapper constrói uma crítica mordaz de como o governo brasileiro não tratou a pandemia de forma humanitária, além de elencar outra injustiças recentes do país, como as mortes da jovem grávida Katlen, dos baianos no Atakarejo e do menino Henry. “Nessa letra, é como se eu pudesse desabafar uma angústia que eu sinto, não apenas com os políticos, mas com a gente. É uma decepção profunda que eu tenho sentido com a nossa sociedade. Então, é um grito de desespero de querer ver se as pessoas podem abrir um pouco mais os olhos”, disse Gabriel O Pensador em coletiva de imprensa.
A produção da faixa é do beatmaker Dree e do irmão de Gabriel, Thiago Mocotó. O single estará no próximo álbum de inéditas do rapper, que ainda não possui previsão de lançamento.
Veja o clipe e a letra:
[Verso 1: Gabriel, o Pensador]
Tá ficando tarde
Acho que era nisso que eu pensava enquanto tentava dormir
Pra ver se pelo menos dormindo eu ainda sonhava
E o sono não queria vir
Pra ver se pelo menos dormindo eu ainda conseguia respirar
Tô ficando sem ar
Acho que era nisso que eu pensava
Enquanto o meu sonho tentava chegar
Tentando desligar minha cabeça
Mas em alguma tela esse filme passava
Era um filme de sangue
Ou seriam as notícias?
Era um filme de gangue
Ou seria uma milícia?
Era um filme de época
Uma velha novela
O terror na favela e o hospital saturado
A criança espancada
Era um trans torturado
Eu fiquei transtornado
Eram cenas horríveis transcendendo níveis jamais tolerados
Já mais tolerados agora por seres humanos já mais insensíveis
Já mais insensíveis do que os alemães
Que tratavam os judeus como gado
Marcados com brasa e no Brasa 80 anos depois o enredo é igual
Medo e maniqueísmo e o ódio é normal
Preconceito é aceito e a morte é banal
Ou você é excomungado ou você é como os bois
Isso aqui sempre foi um curral
Uma bíblia, uma bunda, uma bola
Uma pinga e uma sobra de feijão com arroz
O que mais poderíamos querer?
Uma arma pra cada
Uma bela piada zombando da cara de quem vai morrer?
Será que a minha amiga de Belo Horizonte
Pulou da janela do quinto
Sentindo essa angústia que eu sinto?
Por já não ver nada de belo ao buscar um horizonte
E enxergar vários monstros brindando com cálices de vinho tinto
E a carne mais cara no prato
A carne barata é a dos pretos
Compartilham prantos e prints das fotos dos corpos
Mas nos comentários o texto vem pronto:
“Se morreu no morro e é preto e fodido deve ser bandido, então tudo bem”
Se a Katlen não fosse mulher e gestante
Iam dizer que ela era traficante também
Se a família chora, o poder ignora e o diabo até ri
Agora o meu sono tá vindo e eu também tô sorrindo
Brincando com o menino Henry, acabou chorare
No sonho eu componho com Moraes Moreira
Mas nem lá de cima ele esquece a vergonha
Lá vem o Brasil descendo a ladeira
E os novos baianos que chegam no céu foram executados
Por terem tentado furtar um pedaço de carne num supermercado
Então os seguranças pegaram em flagrante
Primeiro pediram dinheiro
Mas logo mandaram chamar os traficantes do bairro
E mandaram entregar os ladrões de galinha pro coveiro
Chegaram no céu: “E aí Gabriel, você por aqui?”
Fiquei preocupado, será que eu morri?
Mas é só um sonho
Vou ver se aproveito pra dar um abraço em meu pai
Difícil encontrar
Chega gente demais numa fila que nunca termina
Vi uns anjos ali reclamando porque tinha país recusando vacina
Disfarcei minha nacionalidade, eu acho que eu sou patriota
Mas no céu quem puser suas bandeiras acima de tudo
Deus dá cascudo e chama de idiota
Eu acho que eu sou humanista
Mas a humanidade tá punk
Eu peço um papel e uma caneta
Começo uma letra e encontro o Aldir Blanc
Me encanto com um conto do Rubem Fonseca
E canto uma do Roupa Nova
Enquanto num canto Jesus me observa
Com cara de quem desaprova
Eu acho que eu sou comunista
Pois sempre chutei de canhota
Encontrei o Maradona gritando “Argentina!”
Eu acho que ele é patriota
[Ponte: Gabriel, o Pensador]
Sou patriota, sou comunista?
Ou só mais um morto vivendo no inferno
Só mais um sonho morrendo no céu
Mais uma nota no bolso do terno
Sou comunista, sou patriota?
Sou um cacique atacado na oca
Sou uma criança pedindo comida
Sou uma foca aplaudindo uma orca
Sou um cientista pedindo uma esmola
Sou um quilombola virando piada
Sou uma vida que nem vale um dólar
Sou uma preguiça assistindo à queimada
Sou só mais um dos milhões de indivíduos
Tão divididos na morte e na vida
Somos devotos dos santos bandidos
Briga de votos parece torcida
Gritos de mito e de genocida
Almoço grátis com merda no prato
Toda verdade será distorcida
Todo poder pro Capitão do mato
[Refrão: Udi Fagundes]
Quando eu morrer
Não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela