Salvador recebeu no último fim de semana, pela primeira vez, uma etapa do Festival No Ar Coquetel Molotov, que tem origem em Recife e chegou esse ano a sua sétima edição. Durante três dias, o evento serviu para dizer muito sobre Salvador e seu público e levantar a eterna questão sobre a possibilidade de se fazer eventos desse porte na cidade. Com uma divulgação razoável, preços bastante honestos e uma programação apetitosa, cerca de 3.700 pessoas compareceram à estreia do Coquetel Molotov por terras baianas.
O pensamento em certo momento era: “o que as pessoas vão procurar para falar mal?”. Mesmo com um resultado bastante positivo, o esporte preferido do baiano encontrou alguns espaços. Com as duas noites principais focadas na Concha Acústica, o festival recebeu um bom público no sábado (2.283 pessoas, sendo 1.650 pagantes, segundo o borderô oficial), puxado, na maior parte, pela cantora Céu.
Quem abriu a noite foram os baianos da Dubstereo que liderados por dois bons MCs, Russo Passapusso e Fael, mandaram muito bem seu misto de dub, dancehall, reggae, hip hop e até funk carioca, pra uma Concha ainda vazia. Funcionou perfeitamente para esquentar a noite, mostrando porque o dub é um dos estilos que mais tem ganhado força por aqui e que temos mais uma banda para se apresentar em qualquer lugar.
Em seguida o show mais polêmico do festival, com a cantora francesa Soko. mostrando uma imaturidade vista na noite anterior no show do festival em Recife. Aparentemente tímida e talvez amedrontada de se apresentar num local enorme para um público já grande que se aglomerava na Concha, ela sentiu o peso. Com apenas um EP lançado e assumidamente acostumada a tocar em lugares pequenos, para um público que já conhece sua música, como ela mesmo falou durante o show, a francesinha não foi capaz de se adaptar a situação. Pediu silêncio inicialmente de forma um tanto rude, depois, em português, pediu de novo. Atendida em parte, era até bem recebida pelo público que aplaudia ao fim de cada canção de seu folk simples, às vezes interessante, as vezes chato e pseudo-rebelde.
O público, que em sua maior parte parecia ver ali apenas uma versão mais velha de Mallu Magalhães, perdeu a paciência quando Soko insistiu em pedir silêncio e parava a música no meio. Acabou sendo vaiada e terminando o show antes do fim, não sem antes berrar em uma de suas músicas que não queria estar ali ou que todos querem estragar sua vida, sem falar nos gestos obscenos. Parecia aquele guri dono da bola que desce pra brincar e não aceita que façam outra brincadeira que não a dele, então chora e sobe para o colo da mãe.
Aquela velha história, “não sabe brincar não desce pro play”. Pior é que muitos acharam de culpar mais o público e reclamar que aqui só tem mesmo mal educado e que a produção errou em colocar o show ali. Queria saber se fosse num festival como Reading ou outro europeu se ela ia pedir silêncio para o público. Se um artista não consegue se adaptar a um público receptivo e mais festivo, melhor não encará-lo.
Nem deu para se incomodar tanto com o show de imaturidade de Soko. A noite ainda iria acabar com uma apresentação sublime de Céu. Dá para entender porque mesmo fazendo uma música suave, rica em detalhes e que demanda uma atenção especial, o show da cantora paulista funciona tanto numa Concha lotada com um séquito de fãs, quanto num dos festivais europeus que ela tocou esse ano. Céu é talentosa. Não apenas uma boa cantora, mas daquelas que mergulha na música que se propõe apresentar.
Se foge da corrida pelo pódium das divas, enaltece seu lado intérprete, com sua voz doce, com suas danças sutis e um jeito conquistador de se apresentar no palco. A música, brasileira, contemporânea, que abraça reggae, dub, samba, MPB mais tradicional, é o que comanda. Acompanhada de uma ótima banda, com um DJ, um baterista, um baixista e um tecladista e acordeonista, Céu sabe muito bem valorizar um dos principais palcos para quem faz música no país, desfilando músicas de seus dois discos, sem negar os seus sucessos com carisma e um jeitinho peculiar . Showzaço.
Barulho
O festival continuaria no dia seguinte na Concha, reunindo nomes desconhecidos da grande maioria do público. E a expectativa e o assunto durante toda noite era qual seria a presença de público num dos cada vez menos raros shows internacionais em Salvador (1.395 pessoas compareceram à Concha, sendo 863 pagantes). Se os norte-americanos do Dinosaur Jr eram a grande atração, a noite começou bem com um som azeitado dos pernambucanos da Banda de Joseph Tourton. Fazendo uma música instrumental e passeando por influências de rock, jazz e até algo de música brasileira fizeram um bom show, mas que empolgaria mais em um local menor.
Em seguida, foi a vez do Cidadão Instigado mostrar porque é um dos principais nomes da atual música brasileira. Capitaneados pelo já mestre Fernando Catatau, o show foi focado no terceiro álbum, “Uhuuu!” lançado no ano passado. Um desfile de pérolas, que começou com “O Nada”, para já afastar quem gosta de coisas certinhas no lugar e não gosta de estranhezas com a letra “abram as portas das suas casa/ deixem os ladrões entrarem”. Seguiu com “Contando Estrelas”, “Homem Velho”, “Como as Luzes” mostrando uma sonoridade personalíssima, que mescla rock, música brega, psicodelia, experimentações, algo de eletrônica e várias referências pessoais. Catatau e cia conseguem imprimir com através da música um ideário peculiar, apresentando um universo paralelo com uma música rica e estranha e com vocais ainda mais estranhos. Ou você mergulha nele, ou abomina. Se em disco é bom, ao vivo é ainda mais brutal.
Por falar em brutal, bastou alguns minutos do começo da montagem de palco da atração seguinte para notar a agrestia que estava por vir. Em minutos, uma montanha de amplificadores, com seis gigantescos marshal’s montados na posição do guitarrista, estava pronta para a porrada. Quem iria tocar ali era a banda norte-americana Dinosaur Jr, um ícone do indie rock, com o guitarrista J Mascis na linha de frente. Sem muito alarde ele entrou no palco com suas longas madeixas prateadas e do alto de seus 45 anos. Sem falar muito com o público, nem coma própria banda, sem precisar também ser rude, ele deu início a um das mais absurdas e barulhentas apresentações que a Concha e Salvador já viram. Dizem que lá do alto, do Campo Grande ouvia-se o barulho vindo da guitarra, distorções em alto volume, quase estridente de tão aguda, criando um muro de ruídos que só dava refresco com os solinhos que entravam em momentos.
Mascis era um dos tripés que formava um daqueles power trio turbinados, fazendo barulho como poucos, com uma qualidade especial, enquanto o vocal, mergulhado nos ruídos da guitarra-baixo-bateria, mostrava uma voz meio desafinada e desleixada. Um estilo que tornou a banda célebre no mundinho indie nos anos 80 e 90, que desagradou quem não conhecia e arrebatou quem cresceu ouvindo aquele muro de guitarras sujas. Ao lado de J Mascisl estava outra lenda indie, Low Barlow, também do Sebadoh, responsável pelo baixo, alguns vocais e pelo contato com o público, abrindo até para pedidos de músicas no bis. No repertório, o grupo desfilou músicas de várias fases, começando com a sequência “Thumb”, de 1991, “Been There All the Time”, de 2007, “Imagination Blind”, 2009, seguindo com músicas dos discos mais recentes e clássicos como o hit “Feel the Pain” e “Freak Scene”. No bis rolou a ótima versão de “Just Like Heaven”, do The Cure, e “Repulsion”, a pedidos, para terminar já com as luzes acesas. Só faltou “Start Chopin “, que eles não tocam há anos. Seria pedir demais. O fato é que o normal naquela uma hora e meia de show era ver a Concha de queixo caído, para o bem e para o mal.
Uma grande aquisição para Salvador
Por mais que muitos procurassem defeitos, o saldo do Coquetel Molotov foi muito positivo. Trazer artistas internacionais e mesclar com importantes nomes da música nacional é fundamental e o festival soube dosar bem o line up, menor que em Recife, mas muito bom para uma primeira edição. Um evento que se permanecer – e a produção pretende continuar e ampliar a etapa soteropolitana, incluindo mais shows e debates, como é no Recife -, tem tudo para ganhar força e se tornar uma tradição na cultura pop na cidade. Importante até para os produtores locais tomarem mais coragem, acreditarem que é possível trazer artistas internacionais de menor porte, mesmo que através de editais, leis de incentivo federais e estaduais, e realizarem eventos de qualidade com estrutura e maior dimensão.
Uma pena que o espaço da Concha não favorece para dar o ambiente que os festivais costumam ter, incluindo, além dos shows, a troca de informações, a circulação das pessoas e o contato com produtores, artistas etc. A Concha é excepcional para shows e não foi diferente no Coquetel Molotov, com tudo funcionando muito bem, mas uma casa para 2 mil pessoas seria o ideal para um evento como esse. Até para que as cerca de 1800 pessoas em média por dia não tivessem a sensação de vazio. Os números, aliás, não deveram muito a Recife, que já se acostumou com a proposta do festival há sete anos e teve mais atrações por dia. As críticas ao pouco público são infundadas. A questão é avaliar se 1.400 pessoas para ver Dinosaur Jr, Cidadão Instigado e A Banda de Joseph Tourton é pouco, em Salvador, no Recife, em SãoPaulo ou em Nova York.
Abertura do Festival na Zauber
Acontecendo em paralelo ao festival em Recife, na capital baiana o Coquetel teve início na Zauber com os shows da banda local Radiola e dos paulistas da Guizado para um público aquém do que a noite merecia. Não estava vazio, mas a concorrência com vários show interessantes na noite fez com que muita gente perdesse uma das boas pedidas do festival. A Radiola abriu a noite com um show competente e, com Nancy Viegas integrada ao grupo, ganhou uma tonalidade diferente. Mesmo ainda na maior parte do tempo soar como duas bandas diferentes no mesmo palco, uma com o repertório antigo da banda e outro com o de Nancy, por sinal, muito mais consistente, a junção promete render. As músicas novas já trazem uma sonoridade que mescla as idéias da Radiola, sem dúvida uma boa banda, com as de Nancy.
Mesmo boa parte do público indo mais para a Zauber por conhecer a Radiola, o principal show da noite era dos paulistas da Guizado. Começando bem tarde, como é praxe na casa, o grupo mostrou um repertório focado no recém-lançado segundo disco, “Calavera”, que funciona bastante ao vivo. Guizado mantém as experimentações sonoras e o flerte com o jazz fusion, vistos no primeiro trabalho, porém agora traz mais canções, mais melodias e vocais em algumas das músicas, melhor, sem abrir mão de um apuro na parte instrumental e nos arranjos. Pelo contrário, o foco permanece e ao vivo funciona muito bem, com uma banda afiadíssima mandando um trabalho de responsa baseado no trompete de Gui Mendonça, que usa até pedais e efeitos, inclusive um wa-wa, para conseguir sonoridades mais ricas com o instrumento. Mesmo não se focando nas letras e com um vocal limitado, funcionou bem e agradou quem aguentou ficar até o fim. Tomara que a banda volte em breve.
// Fotos de João Milet Meirelles//
// Vídeo: grungerick //