Se o Jazztrio com a Orkestra Rumpilezz mais uma vez não foi à rua, o grupo fez mais uma grande apresentação no Carnaval de Salvador, mas dessa vez no Pelourinho. Renato Cordeiro esteve lá e conta como foi.
Por Renato Cordeiro*
Há 10 anos, mais precisamente em novembro de 2010, assisti a uma apresentação da Orkestra Rumpilezz como parte do projeto Música no Parque, no Parque da Cidade. Creio que a primeira vez que vi a criação do maestro Letieres Leite foi um mês antes, quando tocou no Teatro Jorge Amado com participação de Ed Motta. Mas lembro muito mais nitidamente daquele concerto ao ar livre, às onze da manhã, e de ver uma demonstração inegável do quanto a música instrumental é capaz de falar de forma tão envolvente com o corpo. As pessoas dançavam a apresentação inteira.
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A Rumpilezz já apontava para uma grandeza, com críticas elogiosas e entusiasmadas. Tinha acabado de vencer o Prêmio da Música Brasileira como Melhor Grupo Instrumental e Revelação do Ano. Mas mesmo em ascensão ainda tocava muito em Salvador, naquele ano de 2010 era um grupo residente do Espaço Xisto Bahia. Eu pensava, “vou atrás desses caras onde forem, porque um dia a Rumpilezz vai acabar e eu vou me arrepender de não ter curtido mais a presença de algo sensacional”. Eu sempre fico com essa neura de que coisas boas acabam logo. Talvez meu “logo” passe mais rápido. Sei lá.
O fato é que, 10 anos depois, a Rumpilezz não acabou. Cresceu em importância, gravou o segundo álbum, A Saga da Travessia, fez concertos dedicados a Caymmi e Moacir Santos, fez pontes com grandes artistas como Gilberto Gil e Lenine. Em paralelo, Letieres Leite cresceu na cena musical brasileira, fazendo arranjos para artistas diversos, de Maria Bethânia a Márcia Castro. É com essa moral que foram chamados a participar do Carnaval do Pelourinho de 2020 e raios me partam que só agora eu cheguei no assunto que era para abrir esse texto.
Estava cobrindo as atrações do Pelourinho pela Educadora FM e os integrantes da Rumpilezz foram chegando. É uma banda estelar. André Becker, João Teoria, Rowney Scott, Luizinho do Jeje… quem tem um mínimo de trânsito na cena instrumental de Salvador fica de cara com essa constelação. E entram percussionistas, sempre trajados de gala e sempre na frente do palco, porque este é o pensamento de Letieres Leite, mostrar a importância da percussão afrobaiana. Gabi Guedes, uma lenda, toma posição, e vejo duas percussionistas, vindas do Rumpilezzinho, Jessica e Alana. A divisão de base da Rumpilezz chegando com sangue no olho.
A Rumpilezz abre com “Kung Fu Beat”, e não é por acaso. O grupo vem de uma recente turnê pela Europa, tocou pela primeira vez em Porto, por exemplo. Na turnê, encontraram o baterista nigeriano Tony Allen, uma lenda do afrobeat, tocou com Fela Kuti, realize isso na sua mente. Tocar Kung Fu Beat foi um começo de show fortíssimo. Falando nisso, a Rumpilezz quase não tocou temas autorais – que eu tenha reparado as músicas próprias foram apenas “Taboão” e “O Samba Nasceu na Bahia”, duas das melhores faixas do primeiro álbum, de 2009. Sempre sinto falta quando não tocam “Aláfia”, mas de boa.
O repertório foi bem especial para a ocasião, mas com escolhas quase sempre distantes do que se poderia esperar como óbvio para o carnaval. Teve “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Morais, e “Aqui e Agora”, de Gilberto Gil, no único momento em que a Orkestra desacelerou, em um convite bonito à contemplação. De resto, o show foi sempre “pra cima”, e era bonito ver o maestro Letieres Leite no palco. Ele tem algumas reservas quanto a ser chamado de “maestro”, talvez por não se considerar um regente convencional. Há certa razão. A impressão é que Letieres Leite rege a orquestra dançando. O corpo dele é que comunica aos músicos, e ainda mais ao público.
O show costurou momentos instrumentais e alguns cantados, com participação destacada do cantor Tito Bahiense, iniciada em uma versão de “Lucro”, sucesso de Russo Passapusso e Mintcho Garrammone que é um dos principais temas do BaianaSystem. Mas o melhor momento de Bahiense foi mesmo na música “Ilê Ayiê”, quando canta o refrão e fez uma bela progressão de notas em “passar por aqui”. Depois, Rowney Scott me revelou que ele cantou as músicas em tons que não são os dele. Uma firmeza que parecia até que era coisa de estúdio, mas tudo no gogó.
Mas o melhor momento do show da Orkestra Rumpilezz, emocionante mesmo, foi um daqueles exemplos do que é você tocar na rua e ter ginga pra acolher como oportunidade o que de outro modo seria uma adversidade.
Depois de executar “Lucro”, a Rumpilezz ia para a terceira música da apresentação quando um pequeno grupo de Filhos de Gandhy circulou tocando ijexá pelo Largo do Pelourinho. Isso não é incomum, grupos percussivos, afro e de afoxé costumam transitar tocando pelo local mesmo quando já existe um show em curso naquele espaço. Letieres pediu à Rumpilezz para suspender o som e orientou o público a dar passagem aos Gandhy. Bateu no peito e apontou o dedo para aqueles homens no chão, como quem diz “vocês são dos meus!”, eu estava em frente ao palco, bem perto dos Gandhy e percebi a satisfação dos caras com aquele tratamento. Mas o gesto de respeito de Letieres, que já fez direção musical do Afoxé Filhos de Gandhy, deu lugar a um gesto de amor, quando o maestro pediu à Rumpilezz e a Tito Bahiense para antecipar aquela que seria a oitava música do repertório, “Baba Alapalá”, casando direitinho com o andamento do ijexá dos Gandhy que ainda circulavam em frente à banda. Chão e palco, por alguns minutos, viraram então uma coisa só.
A gente tem muito sofrimento pela frente neste ano de 2020, mas depois de um show desses, dá pra recarregar alguma fé no que virá.
*Renato Cordeiro é apresentador do programa Multiculura da Rádio Educadora.