As cantoras e compositoras que estão renovando a cena musical da Bahia

Não é de hoje que cantoras e compositoras da Bahia se destacam no cenário musical brasileiro. Da MPB ao rock, passando pela axé music e muitos outros gêneros, nomes tão marcantes e diversos quanto Gal Costa, Margareth Menezes, Maria Bethânia e Pitty apontam para uma longa história de artistas baianas que revolucionaram e revolucionam a música nacional.

Da última década pra cá, uma nova geração tem dado continuidade a essa tradição, à medida em que Luedji Luna, Larissa Luz, Josyara, Livia Nery, Xênia França e Jadsa Castro, entre outras, criaram parte significativa do que tem sido feito de mais interessante no país.

Enquanto essas artistas dão continuidade a seus trabalhos autorais, se destacando com obras cada vez mais maduras, outros nomes – por vezes influenciados diretamente por suas antecessoras – começam a despontar no cenário do estado. 

Rachel Reis, Melly, Ana Barroso e Sued Nunes estão entre as artistas que constroem essa nova safra da música baiana. As quatro lançaram seus primeiros álbuns e EPs no último ano, já durante a pandemia de COVID-19, e conseguiram conquistar seu público mesmo sem poder encontrá-lo presencialmente. Com a gradual retomada dos shows e eventos culturais, têm mostrado o quanto essa conexão está firme, com letras na ponta da língua dos fãs e encontros emocionantes com a plateia. 

Junto ao reconhecimento do público, seus trabalhos também chamaram a atenção e angariaram elogios da crítica e da imprensa, levando a citações em matérias destacando promessas da música do estado e à presença em seleções de melhores trabalhos de 2021, a exemplo da lista de melhores álbuns baianos do ano passado pela crítica do estado, feita pelo el Cabong.

No texto de hoje, apresentamos um pouco mais da trajetória e da música dessas artistas que estão renovando o cenário baiano. Antes de seguirmos, no entanto, vale ressaltar que além desses quatro nomes, muitas outras cantoras e compositoras do estado estão produzindo trabalhos interessantes e, como costumam ser, diversos. Para citar alguns nomes, também vale a pena conferir os covers de canções clássicas feitos por Iuna Falcão, a sonoridade ribeirinha de Andrezza Santos, as rimas certeiras de Cronista do Morro, os cantos e rezas de Irma Ferreira e o pagodão pop de Nêssa, entre outros trabalhos.

Rachel Reis

Rachel Reis começou a sua carreira musical em 2016, cantando em barzinhos e festas de sua cidade natal, Feira de Santana. A trajetória como intérprete durou aproximadamente dois anos, até que decidiu focar na sua carreira autoral e na faculdade de Publicidade e Propaganda, que ainda cursa. 

Na sequência vieram as primeiras gravações profissionais, feitas em parceria com o cantor, compositor e produtor pernambucano Barro, em Recife (PE). As composições escolhidas foram “Ventilador” e “Sossego”, que se tornaram seus primeiros singles, lançados ainda no início de 2020. 

Com suas primeiras músicas já disponíveis na internet, a artista passou a procurar produtores com quem fazer seu primeiro EP. Nesse meio tempo, recebeu um convite de Bruno Zambelli e Marcos Cuper para criar uma letra a partir de um beat dos dois. Desse encontro nasceu o single “Saudade”, lançado no mesmo ano, e uma parceria sólida entre o trio, resultando no EP “Encosta” e na faixa-bônus “Maresia”.

A partir do lançamento de “Encosta”, a carreira de Rachel alcançou um outro patamar. Com uma estética classificada por parte da imprensa e do público como repleta de “brasilidade”, o trabalho já apresenta uma sonoridade distinta, fiel à identidade própria da artista e ao mesmo tempo antenada às tendências do pop nacional.

Ao longo das quatro faixas do EP, a voz suave e marcante de Rachel (definida pela cantora baiana Illy como uma “voz de anjo da Bahia”) se une aos beats e à guitarra de Cuper, com referências caribenhas, mesclando MPB e pop a gêneros baianos como arrocha e pagodão.

O resultado são canções dançantes e gostosas de ouvir, que conquistaram grande parte do seu crescente público, já enchendo espaços de shows em suas primeiras apresentações pós-pandemia, com plateias cantando as músicas do início ao fim. O single “Maresia” em especial, lançado como faixa-bônus do EP, ultrapassou as fronteiras da Bahia e chegou a ouvintes ao redor do país, entrando na playlist de Top 50 músicas mais ouvidas do Spotify Brasil e alcançando mais de 1 milhão de streams na plataforma. 

Além do reconhecimento da mídia e do público, Rachel também chamou a atenção de artistas consolidadas no cenário nacional. Ainda em 2021 lançou o single “Me Veja” em parceria com a cantora baiana Illy e em março deste ano vai abrir o show em Salvador da cantora e compositora Céu – uma de suas maiores referências -, que já a elogiou em redes sociais e incluiu “Maresia” em uma playlist feita para o site da rádio francesa FIP. Com o seu primeiro álbum em processo de produção, a artista, que já foi convidada para participar dos festivais Carambola, em Maceió (AL), DoSol, em Natal (RN), e Guaiamum Treloso Rural, em Camaragibe (PE), tem tudo para seguir conquistando ouvintes país afora com a sua criatividade e liberdade artística.

Ouça o EP Encosta:

Ana Barroso

Baiana de Vitória da Conquista, Ana Barroso começou a trajetória como cantora no grupo de chorinho do Sudoeste do estado Brincando de Cordas, aos 15 anos. Depois de dois anos no grupo, seguiu para Jequié, onde cursou licenciatura em Teatro. Durante o curso, seguiu próxima da música e começou a desenvolver uma pesquisa sobre a cultura de longa tradição nordestina, convivendo com mestras e mestres da cultura popular e aproximando-se de gêneros como coco e ciranda.

Há cerca de quatro anos se mudou novamente, dessa vez para Salvador, já com planos de desenvolver sua carreira autoral na música, embora ainda se dedicasse ao teatro na capital. Nesse período gravou suas primeiras composições, “Serana” e “Eu Queria Ficar”, ambas mais próximas das tradições nordestinas que vinha estudando. Também se apresentou em espaços soteropolitanos como a Casa da Mãe e formou o Duo de Cá com o músico Tarcísio Santos. Então, como parte dessa parceria, iniciou o processo de criação do projeto ‘Cisco no Olho’, concebido como um EP.

O trabalho acabou não saindo, mas a artista retomou a ideia quando ganhou o Festival Unimed Sudoeste de Música, em 2020. Essa produção reuniria parte de suas composições feitas ao longo dos últimos 10 anos, com faixas de letra mais densa e emotiva, próximas da MPB e das canções do rádio que marcaram a sua formação musical. Concomitantemente, Ana foi contemplada pela Lei Aldir Blanc com o projeto Repentina, que por sua vez daria espaço à sua obra mais lúdica e dançante, ligada às tradições nordestinas das quais também era muito próxima. 

Durante o processo de produção do trabalho, surgiu a ideia de unir os dois projetos sob o nome de ‘Cisco no Olho’, em um álbum que apresentasse toda a diversidade que compõe o seu escopo artístico. Assim nasceu o primeiro disco, um dos mais bonitos lançados em 2021, que destacou-se no cenário baiano pela sensibilidade, beleza e poética do canto e das letras de Ana junto à instrumentação marcada pelo encontro certeiro de percussão, violão e sopros (Leia aqui um faixa a faixa do álbum). 

Partindo de uma imagem de falsidade, de um cisco que serve de desculpa para esconder os sentimentos por trás de nossas lágrimas, a artista lança, em suas palavras, “uma provocação para a gente acessar e transcender as questões (que nos afligem). Para se permitir sentir.” Ao longo da obra, nos lembra de “Cuidar do Olhar” e encerra pedindo: “Que a gente aprenda a amar, inclusive eu”. Desejo compartilhado por todos nós, que se torna ao menos um pouco mais acessível ao final da escuta do disco, à medida em que, faixa a faixa, a própria Ana nos ensina a fazê-lo.

Ouça o álbum Cisco no Olho:

Melly

A cantora e compositora soteropolitana Melly, de 20 anos, fez as suas primeiras produções de forma independente, estreando sua carreira autoral ainda em 2018 com o single “My Love” e lançando mais algumas faixas ao longo dos próximos anos, entre versões ao vivo e gravações de estúdio. Esses primeiros trabalhos já destacam a sua voz potente e referências de black music, mesclando R&B e soul a elementos de rap, trap e música brasileira. 

Com o passar do tempo, uniu essas influências, criando estilo e identidade artística próprios, marcados também pela aproximação com elementos e vertentes da música baiana. Com o single “Soul” e principalmente em seu EP “Azul”, ambos feitos em parceria com o produtor e DJ Manigga e lançados em 2021, essa nova sonoridade se consolida, resultando no que Melly cunhou carinhosamente de “R&Bahia” em entrevista ao podcast Pop Negro BA. Com as quatro faixas do EP, “Azul”, “Luv”, “Feriado” e “Barril”, Melly chamou a atenção do público, da crítica e do meio artístico baiano e nacional, logo sendo reconhecida como uma revelação da música do estado.

Assim como Rachel Reis, fez shows lotados na retomada pós-pandemia, com fãs cantando suas músicas do início ao fim, incluindo uma apresentação na edição de 2021 do festival Afropunk Bahia e participações em shows de Afrocidade e Hiran. Além disso, nos últimos meses o reconhecimento de seu trabalho levou à realização de uma parceria com Saulo, no single “Então Volta”, e à sua inclusão no projeto Proteja os Seus Sonhos, que gerou a faixa “Feels”, em parceria com Lukinhas. Com previsão de lançamento do seu primeiro álbum de estúdio ainda em 2022, a artista ainda deve dar muito o que falar e ouvir nos próximos anos.

Ouça o EP Azul:

Sued Nunes

Sued Nunes Festival de Música Educadora FM

Natural de Sapeaçu, no recôncavo baiano, Sued Nunes começou a tocar violão ainda aos 7 anos de idade, e com o passar do tempo estreou nos palcos com apresentações em bares, festas e outros eventos. Em 2018 mudou-se para a cidade de Cachoeira para cursar História na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), onde seguiu desenvolvendo sua carreira autoral e outros projetos artísticos, participando de eventos como a Festa Literária de Cachoeira (Flica).

A poeta, cantora e compositora lançou o seu primeiro trabalho autoral, o single e clipe da canção “Velejo”, em 2019. No segundo semestre de 2020, foi premiada no I Festival Mugunzá de Música Baiana, o que lhe rendeu o gerenciamento de carreira feito pela Mugunzá Records, organizadora do festival, e a produção do seu primeiro álbum de estúdio, “Travessia”, além de um EP e de um clipe previstos para ser lançados em breve.

Em “Travessia”, Sued, que elenca nomes como Margareth Menezes, Lazzo Matumbi, Márcia Short, Cortejo Afro, Olodum e Baiana System entre as suas referências, apresenta uma identidade artística sólida, unindo diversas influências da música negra brasileira e especialmente baiana. Suas composições mesclam elementos de funk, soul e samba de roda, entre outros gêneros, em faixas com letras que versam sobre as suas vivências e ancestralidade enquanto mulher negra do recôncavo.

Com ênfase no símbolo e na sonoridade dos tambores da música de matriz africana, a artista apresenta um trabalho orientado pela percussão, que dialoga com a voz de Sued e com os instrumentos que a acompanham ao longo do álbum. Em publicação anunciando o seu lançamento a artista apresenta o que esse trabalho representa para ela:

“Minha voz tambor pro mundo num álbum que reúne e trança o passado, presente e futuro no tempo ancestral. É sobre mim, minhas histórias no Recôncavo Baiano, o que aprendi no quintal de mainha e minha vó, é sobre perceber e estar em Travessia.”

Com essa obra, passou a ser reconhecida como um dos talentos da música baiana contemporânea pela crítica e pelo público, assegurando, entre outras conquistas, o prêmio de Melhor Canção com Letra na 19ª edição do Festival de Música Educadora FM e chegando a mais de um milhão de plays no Spotify com a canção “Povoada”. Sued, que nessa mesma faixa afirma que “é uma mas não anda só”, deve seguir tocando e agregando cada vez mais pessoas com a sua Travessia.

Ouça o álbum Travessia:

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