Assim como os autores das clássicas marchinhas, os compositores do Carnaval da Bahia fizeram muita gente cantar versos e repetir refrãos, que saíram das ruas e ganharam o país nas últimas décadas. Nos últimos anos, porém, a indústria voltada para o Carnaval na Bahia assistiu a um declínio, tanto comercial, quanto criativamente, com menos execuções nas rádios e com os sucessos recentes não durando mais do que um verão. No entanto a produção continua forte, com diversos compositores fazendo músicas direcionadas para a festa.
No ano passado, em entrevista a um grande jornal baiano, o empresário Joaquim Nery, um dos nomes mais fortes da indústria do Carnaval de Salvador, alegou que a cantada decadência da axé music se devia à falta de novos compositores. “A axé music tem um passado riquíssimo, mas hoje são poucas as pérolas que surgem. Um dos motivos é a diminuição da sustentabilidade, da criatividade. (…) O que aconteceu foi uma diminuição dos compositores. Os poucos que restam estão fazendo música para o sertanejo.”
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Os fatos são outros, no entanto. Os compositores existem e continuam produzindo bastante. Tanto os mais veteranos, que já fizeram sucessos para o Carnaval e de certa forma acabaram boicotados por resistirem a fazer uma música mais apelativa e comercial, quanto os novos. Entre eles, alguns já começam a emplacar na festa, como Russo Passapusso, Roberto Barreto e seus parceiros no BaianaSystem, um sopro de novidade no Carnaval baiano. Eles fazem uma música para dançar, mas com uma preocupação maior com a sonoridade e com a estética. Sem descambar para as fórmulas fáceis e buscando sucesso imediato. Relembrando um período remoto da música baiana ligada à festa, eles ainda trazem nas letras o cotidiano soteropolitano e questionamentos sobre a sociedade atual. Tratando, por exemplo, de especulação imobiliária e de um carnaval mais democrático.
Nova geração
Há vários outros nomes de novas gerações produzindo músicas que poderiam estar sendo cantadas nos trios elétricos, sem cair na armadilha da repetição de clichês, uso ostensivo de vogais ou apelações de baixo calão. Silvio de Carvalho, do grupo Tabuleiro Musiquim é um deles. O compositor diz já ter tentado apresentar suas músicas para as estrelas do carnaval baiano, mas sem sucesso. “Até já tentei fazer coisas mais ordinárias para ver se conseguia abrir algum espaço, mas nunca houve resposta, nem negativa nem positiva. É meio desestimulante você correr atrás e não conseguir ter nada gravado.”
Com um disco lançado e produzindo o segundo trabalho, Silvio segue apostando em músicas que permeiam o universo do Carnaval baiano, em ritmo mais cadenciado e de forma mais poética. Como nas músicas “Seis Dias” (“Não venha falar de dor, amanhã é Carnaval e eu não quero chorar, seis dias só de flor, não existe bom nem mal, são seis dias pra sonhar, o samba vai me levar, até a quarta-feira raiar”), “No Carnaval” (“Nem vem dizer que isso faz mal é carnaval/ Eu quero ver você dançar até cansar fazendo igual/ Vem comigo até o dia amanhecer/ Vem vamos cantando revirar o mundo, enlouquecer”) ou “O Bloco” (“Nada vai parar nosso bloco/ bota fora quem perder o foco/ baixa a corda para quem poder enxergar”).
“Eu acho que essa galera independente vai acabar ocupando os espaços. Eles estão por ai, mas não foram ainda descobertos, ainda não chegaram ao público e a grande mídia ainda não percebeu” – Manno Góes, ex-Jammil
O grupo Suinga, que tem à frente Fox Diego, é outro bom exemplo. A banda faz algo como se o axé music não tivesse virado uma grande indústria, ligando o Carnaval dos anos 70 e 90 e dando continuidade ao que era feito até então. Frevo elétrico, samba-reggae, ijexá, mas com um tempero atual, inserindo até pagode baiano e arrocha na mistura. O resultado traz músicas com um toque de humor e descontração que se encaixam perfeitamente no clima da festa. Entre elas estão “Pepeu no Mar”, “Sorvete de Cajá”, “Deixa Voar”, “Frevo Rasgado II” e “Tonho Mizerê”. Todas poderiam estar na voz de qualquer grande atração da axé music.
Silvio de Carvalho, Fox Diego, mas também Luciano Salvador, Vince de Mira, a turma do Bailinho de Quinta, Thiao Kalu, Dão, entre muitos outros. Kalu já mostrou seu dotes carnavalescos na bela “Meu Coração Faz um Carnaval”, uma espécie de marchinha/frevo ponteada com uma guitarra baiana, que já vem prontinha para ganhar um a versão “trieletrizada”. Mais afeito à black music e ritmos de origem afro, o cantor e compositor Dão também já tem composições que poderiam estar contribuindo para mais qualidade na música do Carnaval baiano. É o caso de “Batida do Ilê”, uma ode ao mais antigo bloco afro baiano, que segue o tom dos principais hits da entidade da Liberdade. A letra diz “Ilê África Beleza/ Alteza, som, brilho Astral/ Faz da minha alma pureza/ Nobreza no Carnaval/ É lindo ver o Ilê Aiyê.”
Os blocos afro
Os próprios blocos afro continuam dando atenção a seus compositores através de concursos para escolha das músicas tema. Entre os nomes que vêm se destacando estão Nem Tatuagem e Jorge Garcia, no Muzenza; Marquinho, Aloísio Menezes e Portela, no Cortejo Afro; Lazinho e Narcisinho, no Olodum, além de Marco Poca Olho, original do samba e que ganhou esse ano o festival do Ilê Aiyê, na categoria poesia.
Os blocos continuam revelando novos nomes, mesmo que não da mesma forma que anos atrás, já que o aspecto comercial ante a criatividade artística parece ter seduzido muitos deles. Para Adailton Poesia, autor de sucessos em vários destes blocos, como “O Charme da Liberdade”, com o Ilê Aiyê, e “Deusa do Amor”, com o Olodum, passaram a criar empecilhos para gravar músicas de alguns compositores. “Muitas vezes as diretorias queriam grana só pela citação ao bloco. Teve música minha que não entrou por isso. Muitos blocos afros também passaram a se preocupar mais com o lado comercial e deixaram de valorizar os compositores que apresentam músicas com temática social e histórica.”
“Muitos blocos afros também passaram a se preocupar mais com o lado comercial e deixaram de valorizar os compositores que apresentam músicas com temática social e histórica” – Adailton Poesia, compositor
Poesia acredita que ainda existem bons compositores produzindo, mas muito desistiram e outros passaram a seguir a lógica do momento e das modas passageiras dos últimos tempos. “Todas as músicas de sucesso no Carnaval de seis anos para cá não têm conteúdo e esse tem sido o caminho fácil para muita gente.” Ele critica os grandes artistas, que teriam esquecido dos compositores vindos das quadras dos afros e afoxés. “Há alguns anos, a música dos blocos afro não condiz com o que os artistas querem gravar. Ficou tudo tão comercial que eles pararam de ter preocupação com o contexto social e histórico, passou a não servir mais pra eles.”
A crise no mercado
O maestro e professor de música na UFBA (Universidade Federal da Bahia), Alfredo Moura, um dos responsáveis por delinear a sonoridade da axé music, considera que a Bahia nunca viveu um momento tão saudável no quesito composição como agora. “O que está indo mal é o que os responsáveis por essa indústria do Carnaval escolheram. O que está ruim é a música desses escolhidos. Isso não quer dizer que a música não esteja criativa, de jeito nenhum.” Para ele, os responsáveis pela carreira dos grandes artistas não sabem o que os compositores estão fazendo.
O sentimento é igual até para quem já esteve na indústria de alguma forma. Autor de um dos maiores sucessos dos últimos anos da axé music, “Festa”, lançado por Ivete Sangalo em 2001, o compositor Anderson Cunha acha que a Bahia continua com compositores de mão cheia. “Sempre haverá pessoas criativas capazes de ler o cotidiano, a cidade, as alegrias, aflições e traduzir tudo em música”. Para ele, os compositores seguem produzindo, “mas a fórmula usada para se ter o resultado imediato foi tão utilizada que acabou se catalisando como uma verdade única, mas os compositores estão aí, produzindo enquanto boa parte das pessoas ainda está preocupada em saber por que não somos mais o centro das atenções.”
O cantor e compositor Jarbas Bittencourt diz não ter dúvida que existe um cenário fértil para alimentar essa indústria. “Tem gente que não compõe mais pra Carnaval porque entendeu que é uma via de mão única. Muita gente que emprestou talento pra isso, viu muita gente enriquecer e não usufruiu disso. O pessoal do trio e do axé procurou, gravou muita coisa, ganhou muito dinheiro e não repercutiu. Os blocos afro estão cheios de gente assim.”
“A indústria se tornou poderosa e começou a acreditar que conhecia e saberia o que seria bom ou não.” – Alfredo Moura
Autor de sucessos da axé music como “Mill”, “Acabou” e “Praieiro”, Manno Góes é outro entusiasta das novas gerações. “Eu acho que essa galera independente vai acabar ocupando os espaços, consequentemente os compositores deste universo também. Eles estão por ai, mas não foram ainda descobertos, ainda não chegaram ao grande público e a grande mídia ainda não percebeu”. Terceiro maior arrecadador de direitos autorais da axé music, atrás apenas de Carlinhos Brown e Durval Lélis, o ex-baixista da banda Jammil lembra que a grande mídia hoje talvez não seja tão relevante para os artistas novos. “Não tem axé, rock ou pop rock entre as músicas mais tocadas de 2015, mas isso não significa que esses estilos não existam mais, que não existam mais compositores. Existem, mas estão longe dos grandes holofotes.”
“Donos” do Carnaval
Entre os profissionais envolvidos com música na Bahia é quase unanimidade que o problema principal da queda na qualidade tem relação com o modo como a indústria do Carnaval passou a atuar. Para Alfredo Moura foi a própria indústria do Carnaval, através de empresários e produtores, que passou a selecionar quais seriam os melhores compositores. “A indústria se tornou poderosa e começou a acreditar que conhecia e saberia o que seria bom ou não.”
Importante nome da origem da axé music, o veterano radialista e produtor musical, Cristovão Rodrigues, segue na mesma linha. Segundo ele, os empresários e produtores passaram a se achar “donos” do Carnaval.
“Eles passaram a definir tudo, da escolha dos repertórios a quais músicas deveriam investir. Passaram a ter controle de quase tudo e grande parte desse pessoal não vai às ruas, não vai aos blocos afro e muito menos entende de música.” – Cristovão Rodrigues, produtor
Jarbas Bittencourt lembra que o interesse de empresários e produtores nunca foi pelo desejo de compor e entrar no ramo musical e sim encontrar outra forma de faturar. “Na hora de estabelecer repertório, o direito autoral pesa. O artista e o empresário querem ganhar dinheiro com o que fez sucesso. Ele quer participar disso, então passou a ser também o compositor.” Moura reforça. “Produtores e empresários se intrometeram em composição como autores, co-autores. Fizeram a festa. É só você pegar o É o Tchan para ver como os cantores e empresários começaram a compor e ter domínio dos direitos autorais e controle econômico de tudo.”
Com o distanciamento de quem tem produzido novidades sem se ater a fórmulas fáceis, com uma espécie de bloqueio a compositores fora de seu universo e sem se preocupar com novidades musicais, a tão badalada indústria axé music vai seguir sem conseguir se renovar.
Por Luciano Matos
Matéria Compositores Carnaval Bahia publicada originalmente no UOL