Com show antológico de PJ Harvey, Popload Festival promove edição com muito calor, indie rock e música brasileira.
O sol ainda estava a pino, esturricando o concreto e as cabeças de quem encarou chegar cedo para a abertura do Popload Festival. Eram 13 horas e alguma coisa, sol de meio dia no horário de verão, no árido e quase sem sombra Memorial da América Latina, em São Paulo. As quatro bandas que abriram o festival disputavam com o sol e o calor de mais de 30 graus para ver quem ganhava uma acirrada disputa por mais atenção do público. Num misto de eletrônica, pop e rock, a 5ª edição do festival engrenou de verdade quando PJ Harvey apresentou um dos shows mais marcantes que passaram por estas terras nos últimos anos.
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No início foi difícil. O insípido pop-eletrônico do Neon Indian, com pouco groove, apesar dos rebolados do vocalista, e pouca inspiração, tornava a experiência mais complicada. Podem chamar o que eles fazem de chillwave ou hypnagogic pop ou como quiser, mas funcionou muito pouco. Mesmo para alguns fãs que se agitavam com um ou outro hit mais conhecido (só entre eles, é claro). Ou até mesmo nas covers de “Cool Cat”, do Queen, e “Pop Life”, de Prince, que fechou a apresentação. O local ainda vazio indicava que, se pouca gente costuma encarar abertura de festivais no Brasil com banda menos conhecidas e hypadas, o misto de sol, concreto e muito calor afastou ainda mais o público. O festival pode repensar e abrir os trabalhos um pouco mais tarde nas próximas edições.
Brasileiros
Se estava quente para o público, imagine para quem tinha que tocar e cantar o sol batendo diretamente no palco. Foi assim com as duas bandas brasileiras do festival, Ventre e Carne Doce. Gabriel Ventura (voz e guitarra), Hugo Noguchi (baixo) e Larissa Conforto (bateria) pareciam não se importar muito. Rapidamente mostraram o acertado caminho que a Ventre tem tomado. Coesa e muito competente, a banda funciona com os talentos individuais a serviço do conjunto. Como se fossem três peças conectadas e encaixadas para o funcionamento de uma máquina única.
Apresentaram um rock incisivo, forte e intenso, cheio de quebradas e experimentalismos, que passeia entre o desespero e a melancolia. Isso tudo se aparece na sonoridade, nas letras e no discurso certeiro da baterista, que bradou contra preconceitos, contra a decisão de 18 deputados pela proibição do aborto e cobrou responsabilidade dos presentes. “Somos privilegiados”. O show foi curto, mas deu mostras de porque os cariocas caminham para entrar no clube das principais bandas do atual rock nacional.
Já a Carne Doce parte do indie rock para conquista de outros caminhos. Também há um certo experimentalismo, um rock meio torto e uma sonoridade que não é tão fácil de classificar. Aqui a música brasileira aparece mais evidente e há uma estrela que brilha mais na constelação. Enquanto a banda faz a base com sons estranhos, ruídos, guitarras e um certa psicodelia, a vocalista Salma Jô solta sua voz incomum, dança passos desconexos, se solta e rouba a cena.
Indies
Sofrendo ainda mais com o sol e o calor tropical, os londrinos da Daughter tentavam encarar o desafio mostrando seu misto de indie rock, neo folk, indie eletrônico e música ambiente. Entre um pedal que não funcionava, uma tecladista que se dividia entre tocar e proteger as canelas do sol, a banda foi ganhando corpo no decorrer do show. Mostrou superar bem as adversidades. O competente trio de músicos dava a base de sustentação com guitarras, bateria e teclado. Enquanto a simpática, alvíssima e franzina Elena Tonra ditava o tom, com sua bela e emocionante voz. Derreteu os corações indies.
Show histórico
O sol já abrandava e cerca de 8 mil pessoas se ajeitavam confortavelmente, quando sobe ao palco a atração mais esperada do festival. Após 13 anos sem tocar no Brasil, PJ Harvey aparece acompanhada por dez músicos e pronta para repetir o sucesso do show que fez na véspera num teatro da capital paulista.
O ambiente agora era outro. Mais festivo, mais solar e menos propício para a apresentação intensa e sofrida que viria a seguir. O universo pop dos festivais teria que se curvar diante de um espetáculo conceitual, político e profundo. Uma obra de arte ao vivo, uma performance quase teatral, delicada, e que exigia atenção. Todos se curvaram.
Aos 48 anos, magrinha, aparentemente frágil, Polly Jean Harvey se posta poderosa no palco, com controle absoluto do que quer. Ela está ali para falar das dores do mundo, se aprofunda no que ele tem de mais cruel. Sejam guerras, assassinatos, destruição ou estupros, e não faz nenhuma concessão por estar num evento festivo.
Não é um canto de desespero, mas um relato, uma denúncia, um aviso saído das entranhas. Cada música, cada instrumento, cada verso, cada olhar. Tudo em sintonia para mostrar com ironia e sarcasmo o mundo podre à nossa volta.
Letras carregadas de versos mordazes e ácidos. “The Words That Maketh Murder” que diz “Eu vi enxames de moscas por cima de todos / Soldados sentiam-se como pedaços de carne”, deu o tom da exibição. “The Glorious Land”, que diz “Oh, América, oh, Inglaterra/ Oh, qual é o glorioso fruto da nossa terra?/ Seu fruto é crianças deformadas”. Em “The Community of Hope” diz: “Aqui está o caminho da estrada de morte e destruição/(…) Eles vão colocar um Walmart aqui”. Em “All and Everyone” declara que “a morte está em todo lugar”. Em “The Ministry of Defence” decreta: “Isto é como o mundo vai acabar”.
Com sua voz doce, canta como se narrasse as agruras ao nosso redor. Como se cutucasse com uma lâmina afiada aquela ferida que a gente insiste em achar que não está incrustada no nosso corpo. Não é um canto de desespero, mas um relato, uma denúncia, um aviso saído das entranhas. Cada música, cada instrumento, cada verso, cada olhar. Tudo em sintonia para mostrar com ironia e sarcasmo o mundo podre à nossa volta. Ela quase não fala nada. No final das músicas solta pequenos sorrisos de canto de boca e encara o público com um olhar altivo. Quase dizendo “se liguem na merda que estamos fazendo”.
O show é quase todo focado nos dois últimos trabalhos, ‘Let England Shake” (2011) e ‘The Hope Six Demolition Project’ (2016). Foram cinco músicas do primeiro e seis do segundo. Um criticando a Primeira Guerra Mundial e suas consequências. Outro dando seguimento ao discurso, mas expondo muito mais. A morte, a desigualdade e a destruição por vários lugares do mundo, do Afeganistão a Washington.
Parecia improvável, mas todo o público, mesmo quem não conhecia nada da obra de Polly Jean Harvey, se rendeu. Foi intenso e sofrido, mas extraordinário e memorável.
Mas houve ainda espaço para “Shame” (‘Uh Huh Her’ de 2004), “Dear Darkness” e “White Chalk” (‘White Chalk’, de 2007). Além de três de seus discos mais aclamados “50ft Queenie”, de ‘Rid of Me’ (1993) e “Down by the Water” e “To Bring You My Love”, de ‘To Bring You My Love’ (1995), de quando ela despontou em meio ao grunge.
Tudo isso acompanhada por uma atmosfera meio jazzística, meio blues, uma sonoridade simples. Quase como uma fanfarra tocando de forma torta o velório da humanidade. Não há ênfase no rock e destaque para as guitarras, como em outros momentos da carreira. Vestidos de preto, quase todos os músicos se revezam entre instrumentos de percussão e sopro, guitarras, teclados, banjo, violino, baixo.
Sem bateria propriamente dita, as percussões ditam a toada em tom marcial e fúnebre. As vozes masculinas dão o tom de tragédia, num coral sombrio. A própria PJ assume um saxofone em vários momentos, se colocando ao lado ou atrás dos músicos quando não está declamando. A luta aqui não é para ser a diva incólume. Ela quer escancarar os ferimentos da humanidade, sem pedir licença. Parecia improvável, mas todo o público, mesmo quem não conhecia nada da obra de Polly Jean Harvey, se rendeu. Foi intenso e sofrido, mas extraordinário e memorável.
Phoenix diz a que veio
Houve tempo para uma atração surpresa, a inglesa AlunaGeorge, que recebeu a carioca Iza. Juntos apresentaram um pop eletrônico que não fez muita diferença. Ainda mais porque na sequência veio o grupo francês Phoenix, mostrando como mesclar indie rock e batidas eletrônicas e criar um pop caprichado e não perecível.
Com menos de 15 minutos de show, já haviam tocado dois de seus maiores hits, “Lasso” e a sempre certeira “Lisztomania”. Ambas do já clássico álbum ‘Wolfgang Amadeus’. Na sequência, apostaram em músicas do novo disco, ´Ti Amo’, e seu clima club/dance/italo-pop com canções mais leves e despretensiosas. Do WA ainda ouviríamos outras pérolas, como “Girlfriend”, “Armistice”, “Rome” e “1901”.
Os franceses variaram os dois álbuns com vários momentos da carreira, fazendo um passeio por músicas de quase todos os outros discos. “Entertainment”, “Trying to Be Cool / Drakkar Noir” (do ‘Bankrupt!’ – 2013), “Consolation Prizes” ( do ‘It’s Never Been Like That’ – 2006) e “If I Ever Feel Better / Funky Squaredance” (do ‘United’ – 2000). Com ajuda de eficientes efeitos visuais e projeções, a banda mostrou que o foco nos teclados, sintetizadores e timbres que emulam a sonoridade dos anos 80, estão ainda mais presentes. Mas as guitarras indie e o peso na bateria continuam os guiando para caminhos menos óbvios.
Repetindo outras passagens pelo país, com seu vocalista Thomas Mars mais uma vez indo cantar nos braços do público, a banda deixou uma ótima impressão. Fica, no entanto, a sensação que ‘Wolfgang Amadeus’ e seus hits são um primor de música pop acima do restante da obra do grupo. De certa forma um peso difícil de se livrar.
Luciano Matos viajou a convite da TNT, patrocinadora do evento.