Por Alexis Peixoto*
No papel, o Woodstock’ 99 foi vendido com a mesma promessa do festival original de 1969 – três dias de música, paz e amor. E de fato, teve sim muita música, mas em matéria de paz e amor… digamos que deixou bastante a desejar.
Hoje, 23 anos depois, o festival é lembrado como um desastre de proporções colossais, marcado por diversos casos de violência sexual, incêndios e uma série de decisões erradas por parte da organização. É também frequentemente apontado como um ponto de virada cultural que sinalizou a morte definitiva de um dos principais símbolos da contracultura, e o momento em que toda a raiva e a frustração da geração pre-millenial explodiu na cara do sistema, com transmissão via pay-per-view.
Desastre Total: Woodstock ’99, série em três episódios produzida pela Netflix, narra a inacreditável saga de erros do festival por meio de entrevistas com jornalistas, produtores (incluindo Michael Lang, criador do Woodstock original), gente que trabalhou no evento e alguns dos artistas que se apresentaram. Dizer que a tragédia foi anunciada é pouco – da escolha do local à contratação da equipe de segurança, praticamente todas as decisões da organização sinalizavam um desastre iminente.
Basta contar que no segundo dos três dias do festival já não havia mais água potável disponível, os banheiros químicos estavam imprestáveis, e a coleta de lixo havia sido interrompida. Pra piorar, o clima também não ajudava: 37ºC na cabeça e sem um pé de sombra a vista. A partir daí, a frustração do público e as cagadas da organização escalaram numa sequência de eventos que resultou em mais de mil feridos, quatro casos de estupro confirmados (sem contar muitos outros que não foram reportados) e pelo menos três mortes relacionadas aos eventos do festival.
Embalado pelo clima de antecipação da virada do milênio e pela comoção popular em torno do então recente atentado de Columbine, o Woodstock’ 99 tentou se promover como um retorno às raízes contraculturais do Woodstock de 1969, mas acabou deixando um gosto amargo no fim do século que viu nascer a cultura jovem. Foi uma demonstração clara e evidente de que os ideais de liberdade, cooperativismo e paz tão caros às gerações anteriores havia sido cooptado pelas grandes corporações.
O sonho além de ter acabado, foi vendido à preços exorbitantes.
O pesadelo continua
O principal ponto narrativo de Desastre Total é justo esse contraste entre o ideal hippie atribuído ao Woodstock e a ganância corporativa que guiou a edição de 1999. Mas além da postura mercenária dos produtores, o Woodstock’ 99 carrega também o peso de ter sido o evento que entornou o caldo de masculinidade tóxica que vinha cozinhando entre a juventude americana daquela década, e que tem mais do que uma leve semelhança com a mentalidade reacionária da era pós-Trump. Uma discussão complexa, com reflexos nítidos no ambiente cultural de hoje, mas que Desastre Total não parece interessado em aprofundar.
Outro porém é a pouca participação dos artistas que tocaram no festival. Na cena que virou o símbolo nefasto do Woodstock’ 99, Fred Durst do Limp Bizkit canta “Break Stuff” enquanto o público destrói as estruturas do festival diante das câmeras da MTV e de uma equipe de segurança reduzida e despreparada. No doc, a cena é apresentada como o momento-chave que de fato é, recontada em detalhes a partir de imagens da época e do depoimento de jornalistas e membros da equipe de produção. Durst, o personagem central, não é entrevistado. Assim como também não são os Red Hot Chilli Peppers que, vendo o público tocar fogo nas montanhas de lixo espalhadas pela área do festival, decidiram encerrar o set com um cover de “Fire”, de Jimi Hendrix.
E aí a série perde duas boas oportunidades: uma, de incluir testemunhos atuais de quem esteve no olho do furacão (exceção a Fatboy Slim, que dá um depoimento rico e assustador sobre um dos momentos mais tensos do festival); outra, de levantar uma bola (espinhosa) sobre até onde vai a responsabilidade de quem está no palco diante de uma situação dessas.
Apesar dos pesares, Desastre Total é um bom documentário e vale a pena, mas podia priorizar menos a fofoca a la Fyre Festival e sugerir alguma reflexão crítica sobre as repercussões do festival para o ambiente cultural de hoje.
É pra gente pensar: na era do capitalismo sem lubrificante, quais as chances de um Woodstock’ 99 voltar a acontecer? Com as redes sociais na mão, talvez o público hoje pensasse em abrir o celular antes de tocar fogo na torre de som. Muita coisa mudou, mas o clima de agressividade reprimida e a sede das grandes corporações segue igual. Se não estiver pior.
*Publicado originalmente no site O Inimigo