Baiana de Vitória da Conquista, a cantora, compositora e atriz Ana Barroso lançou um dos discos mais bonitos de 2021, Cisco no Olho. Em seu álbum de estreia, ela faz um passeio por diversas escolas da música brasileira, trazendo referências tradicionais da música nordestina popular e influência das cantoras do rádio e da MPB mais clássica.
É esse trabalho que ela descortina aqui no el Cabong, explicando faixa a faixa cada elemento presente em sua obra. A sensibilidade e a libertação dos sentimentos dão a tônica do álbum, desde seu título até a sonoridade. “Quero dizer pra gente tirar o cisco e chorar. O choro alivia, reorganiza. É preciso ganhar algum tipo de impulso para recomeçar todos os dias”, explica.
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Gravado em Salvador, em fevereiro e março de 2021, Cisco no Olho tem produção musical de Sebastian Notini, que já trabalhou com nomes como Virgínia Rodrigues, Luedji Luna, Tiganá Santana e Lazzo Matumbi. O músico e produtor assina também a gravação e mixagem, além de tocar percussão no disco. Os arranjos são de outra fera, o músico Felipe Guedes, que também já tocou com meio mundo de artistas na Bahia. Além deles, o álbum conta com Joana Queiroz (Clarone e Clarinetes), Leandro Tigrão (Flauta e Flautim) e Babuca Grimaldi (Violão).
O disco foi mais um lançamento que teve apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultural do Ministério do Turismo, Governo Federal.
Ouça o disco abaixo e leia sobre cada faixa com as palavras da própria Ana Barroso:
1. Nowhere Woman
“Essa canção fala sobre o não-lugar de mulheres que assim como eu transitam e se reinventam. É sobre outras sensações também, encontros cibernéticos, tempo e mística. É uma canção modal, gosto muito do que ela virou com a instrumentação proposta por Seba, com a beleza do violão latino e criativo de Babuca e os arranjos de Felipe Guedes. Quando ouço, lembro de Luli e Lucina, de Milton e tão mais.”
2. VAI RODAR
“É um levante contra a atual gestão do governo federal, num duelo imaginário entre o presidente e a força da figura do boi bumbá, ressaltando o povo e a cultura popular como potências revolucionárias. É um samba de coco muito bem embolado com essa turma competente que me acompanhou em todo o disco. Na atitude e nona aumentada (#9), posso até dizer que é um samba-coco-rock’n’roll (risos). Quando relembro a coragem e contribuição sensível de mulheres como Chiquinha Gonzaga, Marinês, Elza e Marias Bonitas, homenageadas na canção, vejo uma vontade audaciosa por um acerto de contas com o Brasil. Essa é também a canção para a qual fizemos um videoclipe caseiro colaborativo que vai ao ar no dia 18 desse mês.”
3. GOTEJO
“Gotejo é dessas canções que não se repetem, porque também não se repetirá essa história. Ela nasceu após o desfecho de um relacionamento abusivo que vivi aos 18 anos, em 2011. É uma balada de poesia densa que expõe recortes do que eu senti naquela situação. Tem um caminho sonoro lindo arranjado por Felipe Guedes, com sopros e violão, que me lembra o clima das gravações de Elis e Tom. É a música mais antiga e mais bonita do disco.”
4. SERENATA PRA MEU PASSARIM
“Choro que virou bolero, apego que virou liberdade, voz e saudade sendo assimilados também na leva das canções feitas 10 anos atrás. Serenata tem uma sonoridade mais tradicional que às vezes lembra fado, outras vezes música de rádio. É uma história narrada, outra ressaca de amor terminado, mas dessa vez com mais ternura e compreensão. Sendo bem pretensiosa, a sensação é que eu poderia ter ouvido essa canção na voz de Dalva, Elizeth Cardoso ou Amália Rodrigues.”
5. CISCO NO OLHO
“Cisco tem cheiro de bossa nova. É a faixa que intitula o disco e também conta com o clarone e clarinete da grande Joana Queiroz. Estou de dedos cruzados pra que um dia seja trilha de algum filme charmoso (risos). Acho uma composição de harmonia e melodia com uma beleza atraente. A vassourinha que Seba usa do início ao fim também constrói essa sensação. É outra das canções que improviso ao final brincando com o clarinete. É trilha sonora pra amar e pensar sobre o amor.”
6. CUIDAR DO OLHAR
“Em princípio seria à capela, depois comentei com Seba sobre a possibilidade de badalos de sinos de boi ao longe, então ele topou e eu mesma toquei seus brinquedos sonoros enquanto ele registrava. Estava queixosa da vida no momento em que compus “Cuidar do Olhar”, e durante a composição, minha filha, Lira, despontou em minha frente com um sorriso imenso nos olhos e tudo que eu escrevi a partir de então foram boas miragens. É a tentativa de um olhar mais grato e esperançoso sobre a vida, apesar de tudo.”
7. CAPITÁ
“Capitá é o lugar que vim parar quando firmei o desejo de investir em minha carreira musical. Apesar de ser sempre uma peleja a saga retirante do artista independente, nesse baião eu utilizo da festa pra embalar os sonhos. Não tem frio nem fome nem sono que esmoreça a vontade em seguir cantando o nosso interior concreto e simbólico. Nessas minhas canções que eu utilizo da cultura de longa tradição nordestina, sempre brinco com trava-língua, muito da referência de Jacinto Silva e Jackson do Pandeiro. A flauta do grandioso Tigrão e o triângulo de Seba relembram os pifes de reis, nosso nostálgico forró e os festejos juninos.”
8. CACTO
“Fiz cacto em 2012 pra uma peça nunca estreada. É a história de um cacto que não abraça porque tem espinho. Essa embala todas as idades, meus alunos adoram. Hoje em dia cacto é planta pop, mas sempre foi corriqueira nos cenários de sertão; resistente por natureza; erva de exu. A música é um coco bem brasuca, me lembra chorinho e chega firme com pandeiro, violão, clarinete, clarone e flauta. É outro convite a olharmos menos pra nossos espinhos, pra nossos ciscos nos olhos.”
9. INCLUSIVE EU
“Cantar acompanhada apenas pelos sopros foi um desafio maravilhoso. Gosto de perceber na condução dessa melodia como amadureci musicalmente. Foi uma música que compus sem instrumento harmônico e Guedes se virou com o arranjo. Eu adorei! A letra é uma costura saudosa entre meu último relacionamento e o ato de compor. “Tão lindo lembrar da introdução” é como quem relembra o início de algum riff marcante de uma canção memorável, bem como o começo de uma história amorosa, embalada por esse tipo de paixão urgente. É onde revelo não saber explicar as entrelinhas do viver porque estamos todos sendo e aprendendo ao mesmo tempo. Inclusive eu.”