O ano começou cedo para os festivais brasileiros. Mesmo não recebendo a atenção merecida, a terceira edição do festival Zons, em Aracaju, iniciou bem a temporada 2016. Um público aquém do esperado, uma primorosa produção, um local perfeito e uma boa sequência de shows serviram para mostrar que Sergipe vive um momento musical interessante, mesmo que poucos ainda tenham percebido isso, mesmo por lá. Capitaneados por The Baggios e SandyAlê, o Zons apostou basicamente na cena local, sem grandes headliners, e talvez por isso, e pelo valor do ingresso, não tenha atraído tanta gente. Azar de quem não foi.
Com o fim do Rock SE e do Punka, há tempos Aracaju precisava de um festival para exibir o que vem acontecendo na cidade. Ainda mais vivendo um momento tão pródigo como o atual. Primeiro festival do ano no país, o evento, que aconteceu nos dias 16 e 17 de janeiro, apostou em mesclar diversas linguagens artísticas e atividades, passando por teatro de bonecos, cordel, dança, poesia, capoeira, além de oferecer oficinas, debates, pista de skate, pintura de shapes etc. A performance de música e teatro de Pedro Bomba na Quadrada de Santa Esquecida foi dos melhores momentos. A música, no entanto, foi o fio condutor e o mote para todo o restante acontecer.
A feliz escolha da Reciclaria para sediar o festival já era um trunfo. Um espaço que no dia-dia recicla móveis antigos e é todo montado a base deles, da relação com árvores e plantas e de uma decoração com objetos antigos, que ganhou um plus com a arte cenográfica da equipe do Zons. Entre árvores, instalações e móveis antigos, as atrações se dividiram em dois palcos, numa estrutura simples mas adequada.
Ambiente encantador para receber duas tardes/noites com parte da atual produção da música sergipana. Mesmo abrindo mão de importantes nomes locais, como Coutto Orquestra, Plástico Lunar e Alex Sant’anna, por exemplo, o festival fez um bom apanhado do que vem acontecendo na música no menor estado brasileiro. E o melhor representante dessa cena nacionalmente hoje é o The Baggios, que aproveitou a ocasião para desfilar seu blues rock setentista e estrear uma formação diferente.
A dupla Julio Andrade (guitarra e voz) e Gabriel Carvalho (bateria) iniciou o show com a vigorosa e costumeira sonoridade e com uma recepção de gente grande, com o público cantando junto cada verso. Como alguém já deve ter dito por ai, eles fazem um blues rock carregado de sotaque, como se o rio São Francisco fosse o Mississipi. Uma dupla cada dia mais afiada, que, com riffs certeiros e um punhado de composições matadoras, os consolidam cada vez mais como um dos principais nomes do rock brasileiro da atualidade.
Lá pela metade do show é anunciada a nova formação, com Rafael Ramos (Coutto Orquestra) nos teclados, inserindo harmonias e fazendo também o papel de baixo a la The Doors. O som do grupo dá uma encorpada e mais suingue, enquanto, Julio, fica mais livre para mostrar suas qualidades com a guitarra. A banda aproveitou para apresentar também músicas novas, entre elas “Saruê”, sobre “as almas sebosas que estão perambulando por aqui, e por aí também” e “Sangue e Lama”, inspirada nas tragédias de Mariana e Paris. O guitarrista Saulo Ferreira (Ferraro Trio) foi ainda convidado para dar ainda mais gás ao show. No final a certeza de caminhos interessantes que a banda vai tomar a partir deste show.
Residindo em Salvador e tendo como base uma banda formada por baianos, Sandyalê foi outro nome local que mostrou sua força. Segura no palco, fez uma conexão com sua terra trazendo referências da cultura sergipana, da inclusão de ritmos típicos, passando por citação a importante banda Lacertae, até a versão surpresa de uma música de Agapitu, compositor doidão e espécie de lenda local. A fusão de reggae, dub, MPB, coco e ritmos nordestinos promovida pela cantora mostrou solidez, com a banda, formada por Ian Cardoso (guitarra – Pirombeira) Fabrício Motra e Juliano Oliveira (baixo e teclados – Ifá Afrobeat), além de Dudu Prudente (baterista e diretor artístico), sustentando a trama de ritmos com uma sonoridade coesa e cheia de groove. Com mais maturidade, a cantora apresentou um trabalho com personalidade própria e que demonstra a consolidação de seu universo musical, com um caprichado repertório autoral, mas que se fortalece também em versões, como a da clássica ‘Violeiro’, de Elomar. O show em casa, com uma recepção calorosa do público, mostrou como ela tem se transformado em um nome forte da música sergipana.
E se a diversidade de linguagens permeou os dois dias de festival, os ritmos musicais também não tinham um foco preciso, assim como a idade das atrações. Representando o punk dos anos 80, a banda Karne Krua marcou a presença de uma antiga geração do rock de Sergipe, que já rendeu ótimos nomes. Capitaneada por Silvio Campos, aos 51 anos, a banda, agora completada por garotos, mostrou o típico punk rock harcore com letras de conteúdo politico-social que permanece coerente até hoje, mesmo que a sonoridade por vezes pareça datada. Por outro lado, uma das boas surpresas foi o novato Yves Deluc, um daqueles jovens cabeludos, com enormes óculos, jeito tímido e uma capacidade incrível de criar canções tortas com um violão e um jeito de cantar fora dos padrões.
Entre os convidados de fora do estado estavam a banda pernambucana Feiticeiro Julião, que apresentou um interessante trabalho com experimentações, instrumentos modulados, naipe de sopros, alternando composições próprias com referências a nomes como Walter Franco e Tom Zé. Do Rio Grande do Norte, a Camarones Orquestra Guitarrística fez seu típico show de rock instrumental, dançante e explosivo, com surf music, ska e pop se entrecortando. Fez até chover.
Se teve rock, também teve o reggae bem tramado da banda Ato Libertário, passando pelo forró com doses de melancolia do Gasta Sola. Teve também o trash metal competente da banda [maua] e o rock instrumental cheio de groove do grupo Casa Forte, outra das novas apostas locais. Ainda precisando consolidar melhor as composições e ganhar personalidade, o Casa Forte mostrou bons momentos e um caminho interessante a percorrer, com versões de Berbie Hancock e Jaco Pastorius e músicas inspiradas em Stevie Wonder e Fela Kuti.
Outros ainda muito aquém do satisfatório para um festival do nível apresentado pelo Zons. A ideia do Mi + Julico, unindo o rap do MC Mi, de São Cristovão, com riffs e solos de guitarra de de Julio do Baggios, o Julico, não funcionou tão bem quanto poderia. Mais deslocado ainda e menos condizente foi a apresentação de Sagaz das Atalaias, um rap com bases sem força e um MC ainda inseguro.
Na média o festival recebeu bons shows, mas muitos ainda sem tanto brilho próprio e precisando fortalecer suas propostas. Algo que o tempo e a própria consolidação do festival pode fazer acontecer. Afinal, eventos deste tipo têm sido importantes para afirmar cenas em locais sem tanta tradição, Goiânia e Natal, são bons exemplos. E, se a música autoral que aposta em criatividade sofre em qualquer canto do país, imagine em um estado pequeno e sem tanta visibilidade quanto Sergipe. A cena musical do estado vive um interessante momento e o Zons é hoje um dos caminhos para solidificar isso. Falta o público local abraçar e ele começar a ganhar eco em outras praças. O caminho está sendo reaberto.