Por Mariana Kaoos
O ano era o de 2001 e um rapper paulistano lançava para todo o país o seu primeiro álbum, com a potente e dilacerante faixa O Rap É Compromisso. Naquela época, talvez, Sabotagem não supunha que essa canção se tornaria um hino do rap brasileiro por evidenciar a responsabilidade que este movimento artístico, político e ideológico carrega, principalmente no que tange às suas formas de expressão cultural na produção de narrativas sobre comunidades marginalizadas.
De lá para cá, mais de duas décadas se passaram e, ao que podemos observar, os artistas que compõem o movimento do rap nacional, permanecem carregando a promessa de crescer a cena com seriedade e rigor.
Um desses artistas contemporâneos que contribuem para o gênero musical é o rapper carioca BK. Com três discos gravados, o compositor é considerado um dos mais influentes da sua geração. No último sábado, 19 de outubro, ele esteve presente no Festival Sangue Novo, levando seu show para um público ansioso e animado com sua apresentação. Batemos um papo com ele sobre o rap, o movimento enquanto espaço político e a inserção de artistas desse segmento em grandes festivais. Confira a seguir.
el Cabong: Você é, talvez, o maior nome da nova cena do rap brasileiro. Além de inúmeros prêmios, você já foi identificado como o “futuro do rap” no Brasil. Sabemos, no entanto, que todo grande artista carrega consigo uma bagagem de influências que compõem a sua subjetividade e o inspiram para que o novo possa ser criado. Quem se presentifica como inspiração na sua obra e como você enxerga a importância dos precursores do rap que capinaram espaço para que esse movimento, hoje, possa ser consolidado da forma que é?
B.K.: Tô nesse corre há quase 10 anos e fico feliz de sempre estar celebrando a influência dos grandes mestres do rap, desde os nomes nacionais aos gringos. A história do rap no Brasil é cheia de pioneiros que abriram caminho para que a gente pudesse estar aqui hoje, como Racionais MC’s, Sabotage, Planet Hemp e etc. Esses caras pavimentaram uma estrada que sigo cultivando até hoje, abrindo caminhos também para as gerações seguintes. Me inspiro muito nesse legado, com as vivências que eu trago das ruas, minhas percepções sobre as grandes metrópoles, que são minha escola.
E.C.: Entre as décadas de 80 e 90, o Rap esteve muito coberto por um preconceito social, onde a sociedade e os próprios produtores de cultura entendiam o movimento – e seus respectivos expoentes – como algo de menor valor, ligado à “favela, ao crime e ao tráfico”. Talvez, por isso, não se via a participação do gênero musical em festivais de música no país. Hoje, o cenário é outro e o Rap passou a ser exaltado e convocado para estar presente em grandes festivais mundo afora. Qual a importância de ocupar esses espaços e levar o rap para um público maior? Vale a pena pensar em uma estratégia de popularização do rap? E como ela pode ser efetivada?
B.K.: O rap é a voz das ruas, então é essencial que ela esteja nos grandes festivais, nos palcos que antes nem imaginavam abrir para o nosso som. Acredito que a “estratégia” é seguir ecoando nossos versos por aí, amplificando nossos públicos para uma galera fiel e consciente sobre a realidade do nosso país, das periferias. A ocupação desses espaços maiores é uma baita conquista que vai além da visibilidade, é uma prova de que as pessoas estão ouvindo nossas histórias e lutas. Mas, ao mesmo tempo, a gente precisa tomar cuidado para não diluir a essência, até porque “popularizar” o rap não é torná-lo palatável para todo mundo, é na verdade fazer com que as pessoas entendam e respeitem de onde ele vem. É sobre manter a verdade.
A gente precisa tomar cuidado para não diluir a essência, até porque “popularizar” o rap não é torná-lo palatável para todo mundo, é na verdade fazer com que as pessoas entendam e respeitem de onde ele vem.
E.C.: Historicamente, as composições e melodias promovidas pelo rap nacional centram-se em um recorte de classe, raça e gênero específicos, a saber, as narrativas dos sujeitos periféricos e suas diversas experiências sociais frente às truculências policiais, ao tráfico de drogas, a adesão a religiões – mais recentemente, ao neopentecostalismo – como forma de acolhimento, e assim por diante. São sujeitos que, quando representados em outros gêneros sonoros, tendem a ser evidenciados sob um olhar de exotismo, entendendo esse conceito como aquela aparente proximidade com as classes mais populares, mas que, em essência, evidenciam um distanciamento cada vez maior delas, marcando o lugar da diferença. Qual a importância de dar protagonismo a esses temas com um enfoque real do cotidiano e por que se faz imprescindível falar sobre a luta de classes e a discriminação de raça na música brasileira?
B.K.: Olha, o rap é um espelho da sociedade. Quando eu falo sobre o que acontece nas ruas, não estou romantizando a luta ou o sofrimento, estou trazendo a realidade como ela é. Tem muita gente que não gosta de ouvir, mas é essa a função da arte, provocar, fazer refletir. Se a gente parar de falar sobre essas questões, a luta também para. E o rap sempre foi, e sempre será, sobre a resistência.
E.C.: Sabemos que o campo cultural é também um espaço de disputa de poder, enfrentamento político social e produção de novos sentidos identitários. Qual a potência do Rap na emancipação dos estereótipos e preconceitos tanto dos sujeitos narrados quanto dos artistas que protagonizam o movimento? O que, de fato, o rap quer alcançar na esfera sócio-cultural-política do Brasil?
B.K.: Como falei nas respostas anteriormente, o rap é um instrumento de transformação, pra gente que faz quanto pra quem nos ouve. Quando a gente ocupa espaços que antes eram negados, quando a gente leva nossa arte, nossa cultura, a gente já está quebrando estereótipos. O rap tem o poder de educar, de conscientizar. No Brasil, o rap é muito mais do que música, é uma ferramenta política. O que eu quero é ver todo mundo aplaudindo a nossa potência criativa, a inteligência, a beleza da nossa história.
Tem muita gente que não gosta de ouvir, mas é essa a função da arte, provocar, fazer refletir. Se a gente parar de falar sobre essas questões, a luta também para. E o rap sempre foi, e sempre será, sobre a resistência.
E.C.: Salvador é a maior cidade com população negra fora da África e exalta isso nas suas mais diversas vertentes culturais. No entanto, a verdadeira realidade é que vem ocorrendo um genocídio dessa população por parte da polícia estadual e das facções. Como o rap pode se tornar uma arma de fortalecimento e coragem para que esse grupo possa se reconhecer e lutar por uma equidade social em uma metrópole tão desigual, racista e preconceituosa como Salvador?
B.K.: O rap já é uma ferramenta de fortalecimento e coragem para nós.