Musicista e produtora, também conhecida por acompanhar grandes nomes da música nacional, como Jards Macalé e Letrux, Navalha Carrera, tem trilhado um caminho singular na cultura musical brasileira, especialmente na criação e proposição de novas sonoridades – com ênfase na guitarra e no sintetizador.
Em 2021, Navalha lançou seu disco autoral “Ondas Consideráveis”, um trabalho que explora paisagens sonoras profundas e desafiadoras, revelando sua habilidade em mesclar influências diversas em um único som que dialoga e produz novas formas de linguagem e entendimento do que é e, mais ainda, do que pode vir a ser a música instrumental na contemporaneidade.
Batemos um papo muito bacana com Navalha sobre linguagem, som, circulação em festivais, cultura alternativa, dentre outros temas.
Por Mariana Kaoos
el Cabong: Você possui uma carreira artística focada na música há mais de vinte anos e, nesse tempo, já atuou em diversas áreas, como na produção de discos de outros artistas, na composição de letras e melodias e na formação de bandas. Em 2021, foi lançado o seu primeiro álbum autoral, o Ondas Consideráveis. Um disco de vertente instrumental, onde você protagonizou todas as etapas de sua construção. Conta um pouco pra gente como se deu esse processo, desde a criação das melodias, até a produção, masterização e divulgação do mesmo.
Navalha Carrera: A ideia de fazer uma banda de uma pessoa só estava na minha cabeça desde muito antes de começar o processo do que viria a se tornar o Ondas Consideráveis. Devo ter composto mais de 20 músicas com esse propósito, mas não finalizei nenhuma delas.
O projeto começou a sair do papel quando eu comprei um sintetizador e uma drum machine, porque pude me emancipar do computador. Ligava o synth, a drum machine, a guitarra, e tentava dar conta de todos ao mesmo tempo. Fiz uma série de jam sessions comigo mesma e aos poucos foram surgindo os temas que foram parar no disco. Então, o que catapultou minha criatividade foi a limitação do quanto eu conseguiria fazer ao vivo sozinha sem o auxílio de um computador.
Durante a pandemia resolvi gravar as músicas. E aí o processo se inverteu, gravei as músicas como tocava ao vivo e criei incrementos para que ficasse com cara de disco. Se fosse tocar esse material ao vivo hoje em dia, provavelmente juntaria uma banda e faria uma nova versão de tudo.
Quando chegou a hora de lançar, bolei um plano junto da produtora Tita Garcia. Como um disco físico era financeiramente inviável (o sonho do vinil), achei que seria uma boa ideia criar um material impresso que representasse o álbum, mas que tivesse valor por conta própria. Criamos então um kit que chamamos de Fóton Consideráveis, com cartões postais, poster e uma zine que eu escrevi trazendo um conceito de ficção científica para as músicas. Tudo com o inevitável QR code. Era uma forma de fazer o disco existir no mundo tátil.
E.C.: Quando falamos em música, falamos também em linguagem. A música possui vontade de potência e abarca em si as ferramentas necessárias para entreter, politizar, harmonizar e questionar a ordem social. No entanto, talvez, por uma educação massificada desde a infância, sempre fomos levados para o consumo de canções acompanhadas de letras. É mais fácil sua adesão, bem como a possibilidade de análises da sua própria forma narrativa e imagética. Qual a linguagem da música instrumental? Como ela fala? E, sobretudo, o que ela diz?
N.C.: Concordo que a música cantada é massificada, mas também precisamos levar em consideração que a voz é o primeiro instrumento. Pode-se dizer com quase certeza de que a música surgiu do canto, e os instrumentos vieram depois. Ouvir alguém cantar gera uma resposta fisiológica no corpo, e existe uma coisa muito forte no ato de cantar junto. Além disso, a popularização do microfone e dos sistemas de som no século XX fez com que a voz pudesse competir de igual para igual com as mais barulhentas bandas, mesmo sem precisar se esgoelar, e isso abriu uma camada para o canto até então inédita. Eu mesma, na composição de linhas de guitarra ou de arranjos para minhas produções tendo a cantar o que está na minha cabeça antes de colocar no instrumento.
Dito isso (risos), acho que a música instrumental tem uma potência narrativa enorme, mesmo sem usar palavras. Eu sempre gostei de compor música instrumental por conta disso. Tento criar sons que sejam mais sensoriais do que descritivos, penso nas minhas composições como lugares mais do que discursos. Dessa forma, o timbre é tão importante quanto a melodia ou a harmonia, por isso fiz questão de eu mesma mixar meu disco. Quando trabalho com vocalistas, tento trazer essa dimensão imagética como cenário para as canções.
E.C.: É possível ocupar a esfera do fronte de batalha social através da canção instrumental? Seu disco autoral foi lançado em 2021, em pleno desmonte do Governo Bolsonaro e no auge da pandemia da Covid-19. O que Ondas Consideráveis disse naquela época e, entendendo o deslocamento e a reinvenção da própria arte, o que ele passa a falar agora?
N.C.: Acredito sim na música instrumental como frente de batalha social. A música instrumental é cheia de significados, mesmo sem o discurso falado. Uma música percussiva, com toques de candomblé, tem um significado muito diferente de um quarteto de cordas.
Uma mistura dos dois elementos numa mesma composição traz ainda um terceiro significado. O que Ondas Consideráveis quer dizer, eu deixo a encargo de quem ouve. Mas enquanto travesti, trago esse significado embutido no paratexto da minha música. Gosto de pensar na minha atuação político-artística como uma expansão do imaginário popular do que é uma travesti. Não acho que a maioria das pessoas associam corpos trans à composição de música instrumental, apesar de figuras como Wendy Carlos. Me sinto expandindo esse leque de possibilidades.
Na questão do acesso, a internet é um lugar estranho. Ao mesmo tempo que tem lugar para todos, são poucos os que conseguem obter relevância. Toda semana inúmeras músicas são lançadas, mas quantas são ouvidas? Quantas são lembradas?
E.C.: Você já acompanhou Zéu Britto e, atualmente, acompanha Letrux e Jards Macalé. Em paralelo, você também segue com o seu trabalho autoral. Todos esses artistas, incluindo você, estão dentro do bojo que chamamos de cultura alternativa e/ou independente. No que esse termo expande, mas também limita, a atuação de vocês? E como alcançar a nova geração, principalmente aquela que consome música através de redes sociais como o Tik Tok?
N.C.: Eu faço música dita “alternativa” porque é o que me comove. Eu adoraria que o tipo de som que eu faço fosse tão comercialmente viável e tivesse um apelo popular tão abrangente quanto o sertanejo, por exemplo! Infelizmente não é o caso.
Existe uma concepção que considero equivocada de que a música alternativa é mais sofisticada e, por consequência, distante. Acho que o que acontece é que, por gerarmos menos dinheiro, temos menos aversão ao risco. Uma faca de dois gumes, no fim das contas.
Para os ouvintes chegarem no alternativo é preciso ter vontade de sair da zona de conforto, da massificação. Mas uma vez que se chega lá, acho que percebem que a gente não morde.
Na questão do acesso, a internet é um lugar estranho. Ao mesmo tempo que tem lugar para todos, são poucos os que conseguem obter relevância. Toda semana inúmeras músicas são lançadas, mas quantas são ouvidas? Quantas são lembradas? Minha geração viu a internet nascer, num primeiro momento parecia um refúgio para os alternativos, mas rapidamente virou apenas uma nova versão das velhas relações hierárquicas. Não estou dizendo que nada mudou, vivemos num mundo completamente diferente de 30 anos atrás. Mas sinto uma sensação de potencial desperdiçado.
Nesse ambiente, atingir as novas gerações (os principais habitantes do país internet) se torna um enigma, pois os meios mudam o tempo todo. Mas, pessoalmente, não penso muito nisso pois acho que o público 30+ também merece atenção.
E.C.: A cada ano que passa, observamos uma profusão de novos festivais ocorrendo em todo o país. Em seus mais diversos formatos, eles surgem com o objetivo de também apresentar a nova leva de artistas independentes. No entanto, ainda há pouco espaço para a música instrumental nos festivais ou, quando sim, ela vem, majoritariamente, através da apresentação de DJ’s e da discotecagem. O que você acha que está faltando para que grupos instrumentais possam também ocupar os espaços dos festivais e o que cabe aos produtores e aos próprios artistas fazerem para que isso ocorra?
N.C.: Acho que falta às pessoas perceberem que música instrumental também pode ser divertida. Similar ao que falei na pergunta anterior, sobre música alternativa, o instrumental também carrega esse estigma de ser mais sério, mais intelectual. Uma música para se ouvir em casa, tomando um vinho…
Esses dias eu estava na rua em São Paulo e me deparei com um duo chamado Technobalde, que consistia de um baixista tocando riffs distorcidos e um percussionista tocando uma bateria feita de utensílios domésticos. Era super descontraído, divertido e dançante. E tudo isso numa calçada, de maneira improvisada, sem microfones.
Me vem também a cabeça trios como Beach Combers e Atrovenga, que também faziam seus shows na rua. Aqui no Rio, fanfarras como a Orquestra Voadora (da qual ocasionalmente participo) tocam o ano inteiro, não apenas no carnaval. O entretenimento instrumental segue muito vivo nas ruas, e acho que poderiam facilmente fazer o mesmo nos festivais se os curadores estivessem mais atentos e menos avessos ao risco.
Minha presença no palco se tornou não só uma manifestação artística, mas também uma manifestação política.
E.C.: Ainda que a cultura e, mais especificamente, o campo musical, seja um território vasto que tudo abarca, quando falamos de identidade de gênero, o corpo travesti sempre ocupou um lugar de fetiche e exotismo. Como sair desse lugar e produzir novos atravessamentos para essa questão? De que forma esse mesmo corpo pode transitar por outros espaços e quais são eles?
N.C.: A forma de transitar é transitando. Eu senti um bocado de dificuldade no começo da minha transição em entender meu lugar de musicista nesse novo momento. Originalmente, queria me aposentar dos palcos, por não querer exposição e por ter medo de ataques transfóbicos. Felizmente, me senti aceita tanto pelo público quanto pela maioria dos meus colegas de profissão.
Minha presença no palco se tornou não só uma manifestação artística, mas também uma manifestação política. E, nesse sentido, gosto que minha função seja, na grande maioria das vezes, a de acompanhante, e não de centro das atenções. Acho importantíssima a presença de artistas trans no centro dos holofotes, mas acho igualmente importante nossa presença na produção, no acompanhamento instrumental, na técnica. O corpo no holofote (e fora deles) é fetichizado, mas pelo menos nas arte podemos tomar um pouco das rédeas.
E.C.: Você sempre esteve muito ligada no som, no timbre, na mistura de barulho que forma música. Como última pergunta, gostaríamos de saber quais as notas que compõem a artista Navalha Carrera e o que elas traduzem sobre você e o seu trabalho artístico?
N.C.: Como disse antes, não gosto de atribuir significado à música que eu faço. Da mesma forma, não gosto de atribuir significado a mim. Eu existo porque é inevitável, e faço música pelo mesmo motivo. Se isso significa algo, não cabe a mim dizer.