Discos: Rachel Reis apresenta seu pop tropical suingado e nada óbvio

Rachel Reis - Meu Esquema
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4.6

Em seu álbum de estreia, a revelação baiana atende as expectativas e apresenta um álbum recheado de canções pop bem feitas que passeiam por ritmos diversos.

Por Julli Rodrigues*

Amor, festa e desejo, três dos elementos fundamentais da vivência humana. Três elementos já abordados à exaustão nas mais diversas linguagens artísticas, incluindo, é claro, a música. Como John Lennon escreve em “All You Need Is Love”, não há nada que você possa cantar que não possa ser cantado. Mas, em uma realidade na qual esses temas já são tão falados, representados e cantados de todo jeito, sobressai quem encontra uma maneira diferente de trazê-los à cena, com um olhar que foge do óbvio, com boas referências, sem perder a leveza. É o que a cantora e compositora baiana Rachel Reis faz em Meu Esquema, seu álbum de estreia.

Projetada nacionalmente em 2021, com o single “Maresia”, a artista natural de Feira de Santana conquistou milhões de plays nas plataformas digitais e uma indicação ao Prêmio Multishow na categoria Artista Revelação antes mesmo de lançar o primeiro álbum, o que naturalmente elevou as expectativas sobre o que estava por vir.

Em Meu Esquema, Rachel Reis propõe uma sonoridade pop, suingada e tropical que mescla influências da MPB, do reggae, do samba, do ijexá e, é claro, do pagodão e do arrocha, presentes na obra da artista desde os primeiros singles. A produção da maioria das 12 faixas autorais é de Barro e Guilherme Assis. As exceções são “Motinha”, “Pelo” e “Bota Pagodão Ponto Net”, que levam a assinatura dos produtores Zamba e Cuper, artífices da sonoridade do hit “Maresia”. O trabalho também traz a participação especial da cantora Céu na faixa “Brasa” e vem acompanhado de um álbum visual, com um vídeo para cada faixa.

O texto de apresentação de Meu Esquema informa que o álbum traz letras que falam de amor de um modo autêntico. É justamente aí que mora uma das maiores forças do trabalho de estreia de Rachel Reis. A artista consegue aliar o refinamento lírico a um forte poder de comunicação, salpicando referências à MPB canônica aqui e acolá, mas ao mesmo tempo mantendo a clareza de sua mensagem. Mesmo que suas canções tratem de temas absolutamente comuns à experiência humana – a desilusão, a paixão, o desejo de viver um amor intenso, a curtição -, ela encontra um jeito novo de falar sobre esses assuntos e ainda põe o ouvinte para dançar ao som de um balanço irresistível.

Assim, o clássico comando de “descer até o chão” vira pura poesia em “Pelo”, embalada pelo ritmo da arrochadeira – “Descobre comigo como é que faz pra oscilar / pra duvidar que é terra / sentir voar em pleno chão / cinza e frio de brita e cimento / calafrio que dá de cima até embaixo” – e ganha contornos envolventes em “Bota Pagodão Ponto Net”, cujo título faz referência a um quase lendário site de downloads do pagode baiano – “piveta braba / o grave bate na frequência da tua saia / se esse refrão talvez tu não conheça / chega tranquila que eu vou te mostrar”.

Rachel também apresenta um jeito doce e muito peculiar de se declarar à pessoa amada no arrocha “Motinha”, com belíssimas construções como “Meu doce de maracujá / meu girassol ao céu, Valença”. Também vale destaque o originalíssimo apelido “minha manga verde com sal”, essencialmente baiano.

Faz parte da vivência afetiva contemporânea a prática de “curar um amor com outro”, de se divertir com um “contatinho” sem querer nada sério. Em meio a esse jogo, é muito comum que alguma das partes saia iludida, sofra de alguma forma ou ainda se disponha a ser o “estepe” da outra mesmo sabendo que não vai dar em nada. Esses conflitos estão muito presentes em canções do neossertanejo, como “Bebi Liguei”, interpretada por Marília Mendonça (1995-2021); e do forró eletrônico, como “Está Carente”, do grupo Aviões do Forró.

Definitivamente, servir de estepe não é a vibe do eu-lírico das músicas de Rachel Reis, e essa mensagem também é transmitida de forma original. Em “Consolação”, a artista transforma o que poderia ser um simples “eu sei que você só quer me comer e sumir” em um refinadíssimo “não vou ceder meu ombro pra choro / nem levantar minha saia pra servir de abrigo (…) aqui no meu palco particular / ninguém brinca de artista”. Altiva e firme, sem perder a classe.

É dessa mesma forma – altiva e firme – que as canções de Rachel Reis marcam posição em prol da intensidade do sentir, do amar por inteiro. Um dos exemplos é “Brasa”, que conta com a (muito bem-vinda) participação da cantora Céu: “Que culpa tenho eu se tu é morno? / Aquece comigo / ou me vê de longe acontecer enquanto eu me espalho (…) só não tente podar aquilo que não pode entender”. Em “Não Venha Pela Metade”, o recado é ainda mais claro: “Eu me blindo contra amores fracos (…) Sei ser maré mansa e sei ser tempestade / não venha pela metade”. E “amor inteiro” não necessariamente quer dizer “relacionamento sério”, como mostra “Amor Sem Barreira”: “tanto faz se for de passagem e nunca mais / te carrego comigo no meu pensamento”. O que importa para o eu-lírico é que seja intenso e bem vivido.

Essa defesa do mergulho de cabeça no amor chega a lembrar um pouco as composições da pernambucana Duda Beat, que assumem o mesmo posicionamento entre uma sofrência e outra, vide “Bolo de Rolo”, do álbum Sinto Muito (2018). A diferença é que o eu-lírico de Rachel Reis não sofre em momento algum. Ele reflete sobre a vida, se declara, vive intensamente cada sentimento, curte, e se não deu certo, segue em frente. Sempre com “Serenidade”, para citar a faixa que encerra o álbum. Sem tempo para sofrência, irmão.

No fim das contas, é correto dizer que as expectativas criadas em torno do trabalho de estreia de Rachel Reis tinham toda a razão de existir, e o resultado supera todas elas. Com uma produção musical competente, que valoriza a mensagem das letras e cumpre a missão de fazer dançar, a artista abre caminho para uma carreira brilhante e demonstra potencial de conquistar públicos nos mais variados nichos, dos paredões às festas alternativas. O esquema de Rachel é fugir do óbvio, e aí está o seu diferencial.


* Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e repórter de rádio na Rede Bahia. Produz

conteúdo sobre música no Instagram @diletantejulli e no blog Ouvindo Coisas.

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