Chamando atenção há algum tempo no cenário baiano, a cantora e compositora baiana Majur apresenta seu primeiro álbum cheio de inéditas. Ojunifé traz uma mistura de vários ritmos e um trabalho extremamente pessoal, com todas letras e músicas compostas por ela mesmo. Lara Maiato dissecou o trabalho para o el Cabong.
Veja também:
– Discos: Jadsa e sua massa pra biscoito fino.
– Um guia para entender o novo álbum do BaianaSystem faixa a faixa.
– Faixa a faixa: Ana Barroso apresenta seu disco de estreia ‘Cisco no Olho’.
– Discos: O “Galinheiro” de Hiran.
Por Lara Maiato*
“Presente de Deus, anunciou Majur chegou”, é assim que, após pedir licença e permissão para passar, a baiana Majur inicia ‘Agô’, a faixa de abertura do seu recém-lançado disco Ojunifé. Apesar de ser o primeiro álbum oficial da carreira, a cantora já havia cravado seu nome no cenário musical brasileiro, tendo lançado o EP Colorir em 2018 e alguns singles de sucesso, como Andarilho e 20ver, além de colaborações e participações com Emicida e Pabllo Vittar, Caetano Veloso e Hiran. Ojunifé tem produção assinada por Ubunto e Dadi Carvalho e direção musical da própria artista, além de diversas participações especiais.
As canções de Majur já lançadas até agora revelam os lados complexos e múltiplos da artista. Enquanto as letras versam entre empoderamento e cultura afrobrasileira, bem como amor e relações afetivas, através de seus tons e musicalidade, a artista baiana nos conduz numa linha narrativa peculiar entre as mais diversas emoções. Toda essa versatilidade entre letras, melodias, ritmos e gêneros musicais revelados pouco ao pouco ao público ao longo dos últimos três anos são muito bem sintetizados em Ojunifé.
‘Ojunifé’ é uma palavra em Iorubá que significa ‘olhos do amor’. Mas ‘Ojunifé’ é também o nome de batismo de Majur, dado por Xangô e Iemanjá, conforme a própria artista revelou em suas redes sociais. Não à toa, a capa do álbum, dirigida por Bruno Pimentel, traz a referência à força das raízes, dos ancestrais e da cultura africana. Ojunifé, como o nome sugere, é um álbum sobre amor ao mesmo tempo em que é também autobiográfico. Nele, Majur se coloca como protagonista, contando a sua história, a formação da sua identidade, enquanto fala das diversas formas de amor: amor próprio, amor pelas suas origens, pela sua trajetória, amor platônico, amor correspondido… é o amor em suas diversas manifestações. Ao longo das 10 faixas que compõem o disco de estreia, ela vai revelando um pouco da sua trajetória, descobertas, referências e multiplicidade.
Aqueles que desconhecem a trajetória da artista podem se sentir confusos ao ouvir Ojunifé num primeiro momento. Afinal, é um disco afropop, pop, soul, mpb, funk, samba? Cada canção do álbum, na verdade, é tudo isso ao mesmo tempo.
Assim como ‘Africaniei’, a faixa de abertura do EP Colorir, a primeira canção de Ojunifé é um afropop com uma batida percussiva expressiva que fala sobre origem, história, ancestralidade e referências. ‘Africaniei’, no entanto, é sobre a construção da negritude e do afropop, enquanto ‘Agô’ é sobre a história de Majur, já dando o tom biográfico que esse novo álbum adquire. Em ‘Colorir’ a estética afropop é mais evidente na canção ‘Africaniei’, enquanto ‘Naufrago’ (participação de Hiran) e ‘Detalhe’ já flertam com R&B e o pop. As músicas subsequentes do álbum também mantêm essa versatilidade, flertando ora com o soul e R&B, ora com pop e MPB, trazendo o atabaque, a cuíca, sampler e instrumentos de sopro.
Desse modo, Majur se coloca como uma cantora versátil e que, como parte de uma nova safra da música brasileira, não quer se restringir a um gênero musical ou a determinados temas. Embora Majur já tenha comentado que não precisa bater na tecla sobre ser uma cantora LGBTQIA+, afinal ser lida como uma mulher trans negra já a coloca numa posição de militância, ‘Ojunifé’, como um álbum biográfico, perpassa por esse caminho de auto-descobrimento, aceitação e preconceito. A segunda canção do álbum, ‘Flua’ é como uma mistura de desabafo de quem não vai e não deve aceitar os estereótipos de uma sociedade dicotômica: “Há quem diga que eu nasci pra engraxar sapato / Fazer baixaria e descer do salto / Meu bem, suas regras não definem não”.
A terceira música traz outra participação do álbum. ‘Ogunté’, cantada por Majur e a também baiana Luedji Luna, traz o afropop ao cerne novamente entoando referências a religiões de matrizes africanas. A escolha de Luedji para dividir essa música, como Majur afirma na série ‘#OjuniféFaixaAFaixa’ foi pela sinergia musical das duas, além da relação com o Candomblé e com Iemanjá.
Numa versão um pouco diferente do que já tinha feito até agora, ‘Enciéndeme’ remete a uma sensualidade e sexualidade. Mesmo nessa canção que é sobre paixão e a relação com o outro, ainda fica explícito o papel protagonista que a cantora e compositora se coloca: “Crê que é dono e eu corro perigo / Só que de mim você não vai escapar”. Essa que é quarta faixa do álbum traz um mix de pop, tecnobrega e funk e é a primeira composição da cantora com trechos em espanhol.
Seguindo a linha narrativa do amor, ‘Aquário’ revela a importância do amor próprio para se desvencilhar de um relacionamento abusivo, narrativa essa que segue na também presente na 6ª faixa, ‘Rainha de Copas’, que conta com a participação de Liniker. De acordo com entrevistas de Majur, a cantora paulista é uma grande referência, já que foi a partir de Liniker que Majur percebeu que ela também caberia nesse espaço, ampliando a representatividade a pessoas não-binárias e/ou transexuais, além de discussões sobre identidade.
É com essa certeza de ser quem é e de não aceitar se subjugar ou submeter às regras dos outros que chega ‘Seja O Que Quiser’. A sétima faixa do álbum, que é um R&B, deixa evidente a característica das músicas pop com letras curtas e repetidas diversas vezes, mas que nesta canção, bem como nas demais que compõem em ‘Ojunifé’ soa como um grito de auto afirmação e empoderamento, quase que como um mantra a ser repetido a fim de ser internalizado.
‘Última Dança’ já traz uma perspectiva de um amor correspondido, de modo que o amor ao outro só seja possível depois da descoberta do auto amor e da auto aceitação. E a partir do samba ‘Nostalgia do Amor’, que começa com uma introdução que lembra os Novos Baianos, trazendo a sensação da nostalgia antes mesmo da música começar, Ojunifé traz a ideia de um relacionamento um tanto quanto platônico, em que há um medo de se entregar ao outro e a esse sentimento tão potente.
Por fim ‘De Novo’, a décima e última faixa, traz o lado sombrio e de sofrimento que vem acompanhado ao ato de amar. Porém, a dor não é maior do que o benefício da experiência vivida. E aqui também é possível ver uma metáfora não ao amor ao outro, mas à própria experiência de Majur, que percebeu aos 4 anos que estava num corpo em que ela não se reconhecia, mas o processo de transicionar e se reconhecer como mulher começou há cerca de um ano.
Sendo um disco sobre amor e sobre si mesma, é possível perceber que todas experiências vividas foram o que tornaram Majur, Majur, e como ela mesmo diz, nada disso teria sido possível sem amor, por isso “Se nos transpassasse mil vidas / Memórias vividas / Mas se eu pudesse escolher / Te amaria / Te amaria de novo”.
Assim, embora tente fugir de rótulos, Majur não perde de vista a sua importância social, musical e política na música brasileira, trazendo seu posicionamento como parte do seu trabalho, mas tendo a si mesma como protagonista das suas histórias, canções, identidade e musicalidade. ‘Ojunifé’ é Majur e Majur chegou – para ficar!
* Lara Maiato é jornalista e produtora de conteúdo. Já produziu o Especial das Seis da Rádio Educadora e o festival Proms & Proms Extra da BBC.