Vênus Não é um Planeta é mais um nome da nova geração da música soteropolitana que corre por fora dos gêneros e ritmos em evidência na cidade. Com origem no pelo gospel e erudito, cantando em grupos e tocando trompa na Orquestra Sinfônica por 10 anos, passagem como cantora, violonista e tecladista em banda de indie rock, a artista agora finca Timbres sinestésicos, letras imersivas, batidas dançantes e melancólicas são as características sua bandeira em outro ambiente. Dreampop, com influências do bumblebee gum music, synthpop, indie rock e afins, é assim que ela se apresenta. Nossa colabora Julli Rodrigues traz suas impressões sobre o EP Iridescente.
No jogo de RPG Earthbound, lançado em 1994 para o console Super Nintendo, existe um local chamado Moonside. É uma espécie de “mundo invertido” baseado em Fourside, a maior cidade do jogo, trazendo prédios em cores neon e criaturas tão psicodélicas quanto um relógio das pinturas de Salvador Dalí. Em Moonside, sempre é noite, e há beleza na estranheza.
Essa referência não é por acaso: ouvir Iridescente, primeiro EP solo da artista soteropolitana Vênus Não É Um Planeta, é como caminhar pelas ruas de Moonside até chegar a uma festa. Ou talvez visitar a “Twilight Zone” citada pela cantora e compositora May East em uma de suas canções, um lugar entre a luz e a sombra onde “nada é proibido, tudo é possível, é só imaginar”. No trabalho produzido por Faustino Beats, Vênus transporta o ouvinte para terras distantes, deixando-o na corda-bamba entre sair para dançar e refletir sobre sua própria jornada.
Vênus já tem uma longa trajetória no meio musical independente da capital baiana. Fez parte da banda Cartel Strip Club, colaborou com os projetos SOFTPORN e MAPA e participou do primeiro álbum da banda Tangolo Mangos, “Garatujas”, lançado em 2023. Sua proposta é trazer uma ambiência dreamy, com “harmonias vocais doces e disruptivas”, como ela própria define.
Assim, Iridescente é uma obra do gênero dreampop, cujo título nasce da relação de Vênus com a água e da percepção deste elemento enquanto um prisma que difrata as sete cores da luz. Com seis faixas, o EP traz os singles “Versão de Teste” e “RV At Night”, já apresentados anteriormente. E é justamente com esta última faixa que a artista abre os trabalhos, pegando o ouvinte pela mão para uma viagem sinestésica. O arranjo da canção guarda semelhanças com “Imaculada”, última música do álbum homônimo da cantora e compositora carioca Alice Caymmi, lançado em 2022.
Ao longo do EP, é possível identificar diversas possíveis referências. Dá para sentir um gostinho do projeto musical australiano Tame Impala em “RV At Night (Sugar Dream and Luv)”, versão embrionária da faixa de abertura, que foi produzida pela própria Vênus. A canção é quase irmã de “Eventually” e “Yes I’m Changing”, do álbum “Currents” (2015). Já “Versão de Teste”, primeiro single de Iridescente, é uma prima distante da sonoridade melancólica trip-hop dos britânicos do Portishead. Caso não existissem as levadas de reggae e beats de afro pop e synth pop, a música teria alguma semelhança com “Roads”, do álbum Dummy (1994).
Como se pode perceber em “Versão de Teste”, momentos dançantes e reflexivos se alternam em Iridescente, por vezes na mesma faixa. Já outras músicas representam apenas um desses extremos. É o caso da pulsante “Novavidanova”, que se tivesse guitarras distorcidas, poderia soar como algo que a veterana Rebeca Matta gravaria. A canção revela a beleza do timbre de Vênus e é pautada pela urgência de viver, de sair para dançar, de ganhar o mundo. Olhar para fora.
Já “Sussurro dos Santos (Sniffing In The Sky)”, faixa seguinte, é a sua completa antítese, enquanto a curta “O Vazio do Ego” puxa o ouvinte para olhar para dentro de sua própria agonia oculta. Quase como duas músicas da trilha de Earthbound, jogo citado no início deste texto: “The Place” e “Giygas Intro”. Talvez a videogame music seja uma influência oculta…
O único ponto problemático de Iridescente está na mixagem de algumas das faixas. Em “Sussurro dos Santos (Sniffing In The Sky)” e “Versão de Teste”, o volume da voz de Vênus parece mais baixo do que o resto do arranjo, o que pode causar incômodo aos ouvintes mais atentos, ainda que tenha sido algo intencional.
O saldo geral, no entanto, é positivo: trata-se de um EP muito redondo e coerente em seu conceito, com sonoridade comparável a trabalhos como o álbum Fenda (2019), da multiartista paulistana Papisa. Também é possível ligar Iridescente a Pequenos Grandes Universos EP de Andréa Martins e Rana Tosto, lançado em 2022. Para alguém que “nunca soube muito bem para onde ir”, como diz a letra de “Versão de Teste”, Vênus se sai muito bem, traçando um caminho de sonho, som, luz e sombra. Não é um planeta: é, de fato, uma experiência.
* Julli Rodrigues é jornalista e pesquisadora musical. Mais detalhes sobre a autora aqui.