Uma das artistas baianas mais relevantes dos últimos anos, Luedji Luna lança o sempre desafiante segundo álbum de inéditas da carreira. Carregado de expectativa, o álbum mergulha no amor sob a ótica de uma mulher negra no século 21. A jornalista Juli Rodrigues disseca o mundo apresentado pela cantora e compositora baiana nesse seu novo trabalho.
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Por Julli Rodrigues*
Em seu segundo disco, “Bom Mesmo é Estar Debaixo D’Água”, a cantora e compositora baiana Luedji Luna leva o ouvinte a uma verdadeira imersão nas questões da afetividade da mulher negra em meio às opressões de raça e gênero. Produzido pela própria artista em parceria com o guitarrista queniano Kato Change, o novo álbum, lançado em 14 de outubro, expande a sonoridade do trabalho de estreia, “Um Corpo no Mundo” (2017), e dosa delicadeza e pungência nas mensagens das letras – e poemas – presentes nas 12 faixas. Cinco músicas fazem parte de um álbum visual lançado simultaneamente, dirigido por Joyce Prado, com cenas gravadas no Carnaval de 2020 (veja no final do texto).
Logo de início, vale registrar uma opinião que pode ser controversa: o uso da faixa-título (Luedji Luna/François Muleka) como single de apresentação pode não ter sido a melhor escolha, já que ela, sozinha, não parece dar a real dimensão do que esse trabalho representa. A atmosfera de calmaria sentimental, do amor como um ponto de paz, faz todo sentido dentro do contexto do disco, mas me causou uma impressão errônea quando a ouvi de forma isolada. Leia-se: não chamou tanta atenção. Para mim, pelo menos, pareceu muito mais interessante a narrativa do álbum como um todo, que traz faixas extremamente potentes com diferentes abordagens e vozes sobre amor e solidão da mulher negra.
Ouça o álbum:
Os arranjos mesclam ritmos africanos com uma pegada muito jazzística, que coloca em evidência os pianos elétricos e as linhas de baixo bem marcadas. A base das músicas foi inteiramente gravada no Quênia, com músicos locais, enquanto sopros e cordas foram incluídos no Brasil. Sobre essa rica “cama” sonora, Luedji disseca todas as faces do amor e do desamor em letras próprias e parcerias com outras mulheres negras. Poetas como Conceição Evaristo – uma de suas principais referências – e Tatiana Nascimento marcam presença com suas vozes e textos.
Por sinal, Tatiana é responsável por uma intervenção contundente em “Lençóis” (Luedji Luna/Cidinha da Silva), recitando seu poema “Quase”, que me faz pensar na superficialidade nos relacionamentos como reflexo de almas quebradas: já que não temos tanto a dar, me dê o que você tiver. Nem que seja só um pedacinho. Premissa semelhante à da música “Real Agora”, lançada em 2019 por Bruno Capinan, artista baiano negro e gay: “Um pouco, na solidão da vida, é tanto que talvez eu queira dividir com você”.
A superficialidade e a “liquidez” tendem a ser constantes na vida afetiva de pessoas negras devido ao racismo estrutural. Para as mulheres, a opressão de gênero torna tudo pior. Luedji toca nessa ferida sem medo em “Ain’t I A Woman?” (Ravi Landin/ Luedji Luna) e escancara o problema nos versos “Eu sou a preta que tu come e não assume” e “Por acaso eu não sou uma mulher?”. A rejeição de um homem é ainda mais amarga quando traz junto um componente racista. As faixas anteriores, “Tirania” (Ravi Landin/ Luedji Luna), “Chororô” (François Muleka/ Luedji Luna) e “Ain’t Got No” (James Rado/ Gerome Ragni/ Galt MacDermot), formam com “Ain’t I A Woman” um verdadeiro fio, narrando a trajetória de incerteza nos relacionamentos, a solidão e o não-pertencimento que vai além da afetividade. Se para as mulheres brancas a sensação é de sempre ser “demais para eles” – vide a neozelandesa Lorde em “Liability” -, para as negras o problema está no “não ser suficiente”.
Assista ao Álbum Virtual:
A partir de “Recado” (Luedji Luna/ Dejanira Rainha Santos Melo), sexta faixa do disco, nota-se que há um ponto de virada na narrativa do álbum. O eu-lírico feminino torna-se cada vez mais sujeito de si mesmo, de seu desejo, de sua sexualidade, e aprende a se amar para além do olhar do outro. Ao mesmo tempo, também descobre que pode ser feliz com alguém e se entregar a um encontro completo. O ponto alto desse momento do disco é “Origami” (Goulart Gomes/ Carlos Ribeiro), música solar e sensual, mistura de Ásia e África nos arranjos, com interpretação mais do que sublime de Luedji. Ao lado de “Ain’t Got No”, clássico eternizado por Nina Simone, essa é uma das faixas em que a artista é apenas intérprete – e faz isso muito bem.
Vale pontuar, porém, que mesmo quando há plenitude e felicidade no amor, para a mulher negra sempre fica o retrogosto da incerteza e da insegurança. A todo o momento paira a pergunta no fundo da mente: “Quando serei deixada de novo?”. Um pouco disso pode ser notado em “Erro” (Marissol Mwaba/Luedji Luna).
A água onipresente no disco faz referências às emoções e a Oxum, orixá africano ligado ao amor e a maternidade, como diz o texto de divulgação. Como o próprio álbum proclama em seu título, bom mesmo é estar inteiramente dentro dessa água, não apenas molhar o pé na superfície. Uma das mensagens mais fortes nesse sentido está justamente em “Goteira” (Luedji Luna), última faixa, que versa sobre a incapacidade e indisposição para joguinhos e relações fortuitas. “Aparência não, mas o meu peito é de mulher / qualquer gota de amor afoga / faço um oceano dentro”. Leia-se: respeite meu coração, meus sentimentos, minha subjetividade, porque eu não sou um brinquedo e mereço ser amada.
Em “Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água”, Luedji canta a beleza de estar submersa em um oceano de afeto, o medo de não conseguir respirar e a angústia de sempre ser puxada para a margem do sentimento. Com interpretações corretas, dosando suavidade e visceralidade, e arranjos que chegam a lembrar o jazz fusion setentista, a artista baiana trouxe ao mundo um álbum que tem tudo para ser um dos melhores do ano. A superfície pode até parecer calma, mas quem mergulhar vai perceber que debaixo d’água há som e fúria.
Veja o clipe de ‘Bom Mesmo É Estar Debaixo D’água’:
* Julli Rodrigues é jornalista formada pela UFBA. Atualmente, trabalha na Rádio Metrópole FM como repórter. Apresenta a série mensal “A Música no Tempo” no Especial das Seis da Educadora FM, sobre o contexto da MPB entre os anos 60 e 80, e escreve análises sobre música e áudio no blog Ouvindo Coisas.