Mesmo com crise econômica, pandemia e falta de incentivo à cultura, a música feita na Bahia segue fértil com alta produção. Dentro disso, o el Cabong mantém sua proposta de, na medida do possível, acompanhar o cenário contemporâneo com análises dos novos álbuns lançados no estado. Dessa vez trazemos o novo trabalho do músico Jotaerre, Tempestade, o segundo solo. Guitarrista da banda Psirico, o músico vai além do pagode e em 13 faixas absorve outras referências. O álbum traz também como novidade o artista assumindo os vocais em discursos político-sociais com participação de vários convidados. Mais uma vez contamos com resenha da parceira Julli Rodrigues.
Por Julli Rodrigues*
Após investigar as origens da viola do pagodão baiano e experimentar diversas sonoridades, o guitarrista e compositor baiano Jotaerre enfrentou a tempestade e voltou com muito a dizer. O fenômeno climático dá nome ao quarto álbum de estúdio do artista, que sucede o ótimo Kuarentena Sessions V (2020). Nas 13 faixas autorais, Jotaerre, que também é guitarrista da banda Psirico, expande ainda mais o seu universo sonoro e acerta ao trazer o melhor de dois mundos.
De um lado, potentes gritos de protesto contra a violência policial, o desmatamento da Amazônia e o racismo; de outro, verdadeiros hits de pista, capazes de tocar em qualquer paredão sem deixar de dar o recado. Há, ainda, a terceira via, do convite à reflexão sobre tempos tão sombrios de pandemia e crise política. De quebra, a participação de amigos artistas – quase todos conterrâneos do artista, natural de Paulo Afonso – amplifica esse discurso.
O clima good vibes de “Siga Na Paz”, faixa de abertura de Tempestade, até evoca a lembrança de “Expansão da Consciência”, primeira música do álbum anterior. Mas as semelhanças acabam aí: a faixa-título instrumental deste novo trabalho logo vem para indicar que a pegada é outra. Nela, Jotaerre mescla o ar épico das grandes sinfonias ao pagodão que já conhecemos. A mistura parece inusitada, mas essa não é a única novidade sonora que o guitarrista nos traz. Ao contrário do que ocorre nos trabalhos anteriores, Tempestade dá mais espaço ao Jotaerre cantor, que se utiliza de auto-tune e distorções na voz como parte de uma escolha estética. Além disso, gêneros como trap, reggae, reggaeton e até mesmo o metal se misturam nesse caldeirão sonoro, tanto nas canções “festivas” quanto nos hinos de protesto.
Um dos exemplos está em “Maria Bonita (Bandoleira)”, verdadeiro hit de paredão no qual Jotaerre usa elementos do reggaeton para cantar sobre aquela que “faz o chão tremer” quando entra em ação. O trap aparece fortemente em “Oxe é Kush”, que versa sobre a legalização da maconha. Outro destaque da safra de canções mais “festivas” é “Engole meu Oxe”, cujo refrão grudento é uma resposta a alguém que “gastou” com o sotaque baiano do eu-lírico.
Mesmo nas faixas feitas para meter dança, já é possível perceber o fio condutor de Tempestade: o discurso político, de afirmação e resistência aos tempos sombrios. Esse protesto ganha ainda mais espaço em outras composições do álbum, ainda que com palavras duras e climas mais sombrios, como ocorre em “Só fogo pra mim”. Mas vale dizer que o grito tem sua potência amplificada pelas participações especiais dos “amigos”, na definição do próprio artista, entrevistado por esta que vos escreve.
Na construção da faixa “Amazônia”, que une o pagode ao trap e ao metal para protestar contra o desmatamento, Jotaerre conta ter partido de um loop de guitarra feito pelo guitarrista paulo-afonsino Ericson, que toca em bandas como Os Nelsons e Caatinga. “Ele gravou o loop no celular, e desse loop tive uma ideia, fiz um sample, que ficou meio lo-fi”, explicou. Já “Que Tempo Louco”, groove arrastado que trata de violência policial, teve a participação do cantor James Araújo, de Camaçari. “Trabalhamos juntos, eu tive uma banda de pagodão chamada Massabong e ele foi o cantor, então já tinha uma afinidade”, relata Jotaerre.
Uma das faixas mais interessantes do álbum é “Justiça”, que traz uma fórmula praticamente infalível: letra de protesto + melodia agradável + refrão chiclete, daqueles que dá pra imaginar a multidão cantando junto. Nela, Jotaerre recebe os amigos e conterrâneos da banda Caatinga, com os vocais de Van Santos. Há, ainda, a participação do rapper Sujeito Gueto, também conhecido na cena paulo-afonsina, na música “Até Tudo Acabar”. “Ele sempre escreve letras fortes e tem essa característica da escola mais clássica do hip-hop. Escreveu toda a letra em improviso, apenas dei a direção do que a faixa representava e ele fez a rima”, explica o guitarrista.
Finalizando o álbum, “Depois da Tempestade” retoma o ar épico da sua faixa-irmã e cumpre bem o papel de apresentar o sol que surge após o caos. Jotaerre vem com um inspirado solo de guitarra, que chega a lembrar o executado por Pepeu Gomes em “Araruama”, música gravada por Baby Consuelo (do Brasil) em 1985. Dessa vez, o artista se junta a Jadsom, percussionista e colega na formação do Psirico. “Ele participa tocando bacurinha, que é o instrumento que mais o representa, por ser pioneiro desse instrumento no pagodão”, conta o guitarrista, acrescentando: “A gente fecha com essa faixa, que é final, mas tem uma deixa para os próximos”. Fica no ar a pergunta: o que vem, afinal, depois da tempestade?
O fato é que Jotaerre avança de maneira brilhante e segura em Tempestade, aliando inovações musicais – sempre calcadas no pagodão baiano – a um discurso de resistência e ativismo político que é fruto destes tempos sombrios. Trazendo para a música a ideia de não soltar a mão de ninguém, o guitarrista reforça conexões com seus amigos e conterrâneos. O resultado é um álbum potente, que equilibra os momentos de gritar, refletir e também de meter dança, por que não? Afinal de contas, é preciso estar atento, forte e preparado para quando o sol abrir.
* Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e repórter de rádio na Rede Bahia. Escreve
análises sobre música e áudio no blog Ouvindo Coisas.