Discos: Em clima dance pop, Clarice Falcão se desnuda em ‘Truque’

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3.3

Cantora, compositora, atriz e roteirista, Clarice Falcão acaba de lançar seu novo disco, Truque, que produção de Lucas de Paiva e da própria Clarice. O trabalho vem acompanhado  de um álbum visual com 12 clipes para cada uma das faixas, todos idealizados pelo diretor Lucas Cunha.

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* Por Julli Rodrigues

Em seu quarto álbum da carreira, Truque, a cantora, compositora e atriz Clarice Falcão retoma o movimento sonoro iniciado no antecessor, Tem Conserto (2023), mas traz um novo jeito de se mover ao redor de temas semelhantes. Em comum, os dois trabalhos têm a produção de Lucas de Paiva, que se mostra novamente muito hábil em formatar texturas eletrônicas e ritmos dançantes de acordo com a história que está sendo contada, e a poesia “sincerona”, irônica e bem-humorada de Clarice, que segue usando toda a sua verve para falar de amor, dor e desilusão. No entanto, vale pontuar que se em Tem Conserto o clima era nublado, em Truque o sol volta a aparecer, ainda que entre nuvens. Essa mudança faz toda a diferença no disco, que é também um álbum visual (veja aqui todos os clipes).

As 12 faixas autorais do álbum – sendo uma vinheta e uma repetição da faixa de abertura, funcionando como uma espécie de “poslúdio” – tendem a se estruturar sobre uma sonoridade “de pista”, mas sem repetir a ambiência synthpop do trabalho anterior: agora, o clima é muito mais de disco music setentista, com direito a orquestrações digitais que soam quase orgânicas. O primeiro single divulgado por Clarice, “Chorar Na Boate”, já serviu como um bom cartão de visitas da proposta. Não se engane com os embalos de sábado à noite, porém: a diversidade de gêneros é uma forte marca de Truque.

Um dos exemplos é “Fundo do Poço”, que vem com uma pegada levemente electro pop, comparável aos trabalhos do duo britânico La Roux, e ao mesmo tempo conversa com músicas do álbum anterior, como “Mal Pra Saúde”, guardadas as devidas proporções. A mesma definição se aplica a “Podre” e “Eu Destruo”, que chegam a lembrar os dois primeiros discos da cantora neozelandesa Lorde. Outras canções se situam mais no campo sonoro da balada, como “Dizer Adeus”. Há, ainda, “Ar da Sua Graça”, segundo single do álbum, que quase esbarra na “sofrência” do sertanejo: é perfeitamente possível imaginá-la na voz de um artista do gênero, e sim, isso é um elogio.

Veja clipe de “Ar da Sua Graça”

Do ponto de vista lírico, o álbum Truque traz uma abordagem mais ensolarada sobre alguns temas tratados em Tem Conserto, disco fortemente pautado por questões de saúde mental como ansiedade e depressão – e criado em meio ao diagnóstico de transtorno bipolar da artista. O sofrimento, agora, está mais ligado às desilusões amorosas, e é apresentado com um humor um tanto menos ácido e amargo, passando da autodepreciação para um despretensioso “riso da própria desgraça”, ou um diagnóstico muito sóbrio da própria situação. Um eu-lírico com a terapia em dia, digamos.

Nesse universo, o “Fundo do Poço” é um lugar tranquilo em que a gente se acostuma a estar e se apega tanto que até decora ele bonitinho; a boate é o melhor ambiente pra chorar sem ser notado; o amor faz a gente flutuar mesmo em uma situação (e com uma pessoa) “Podre” e é possível terminar toda essa jornada de ascensão, queda e redenção desejando, ainda que sem muita esperança, acreditar em alguma coisa além de si mesmo (inclusive, aplausos de pé para o arranjo de metais orgânicos feito por Alberto Continentino em “Quero Acreditar”.

Mas é claro que Truque também tem seus momentos sombrios e introspectivos, alguns tratados de forma mais bem-humorada, outros nem tanto. A já citada “Ar da Sua Graça” é um dos exemplos: “Olha em frente / Vê se não dá pra enxergar a gente / Apertando os olhos de repente / Cê também consegue ver / Eu juro que dá pra ver (…) Você não me dá mais o ar da sua graça / e nada tem graça, nada tem jeito”. A faixa-título deixa escapar um pouco de amargura ao tratar do “bolo” que o eu-lírico levou – e, de alguma forma, se relaciona com “Dia D”, do álbum anterior: pode ser lida como o capítulo seguinte da saga da mulher feliz e cheia de expectativas porque finalmente iria dar, agora tendo que lidar com grandes decepções.

Veja clipe de “Truque”

Outras canções expõem os lados mais perigosos da paixão, que vão além do risco de quebrar a cara: diferentes faces da dependência emocional, por exemplo, aparecem em “Eu Destruo” – “Eu costumava ter escrúpulos / Agora se você mandar eu pulo (…) Me diz quem você quer que eu destruo” – e na quase caricata “Dizer Adeus” – “Eu não sei me despedir / Então, por favor, pode  mandar em mim / Eu posso mudar / É só me pedir / Largo quem eu sou / E seremos nós / Eu que abro mão / Eu posso ceder”. E é claro que não poderia faltar aquele momento “me apaixonei pelo que eu inventei de você”, parafraseando Marília Mendonça e Juliano Tchula em “De quem é a culpa”. Essa é a premissa de “Ideia Merda”: “Eu vi em você muito de mim / Só eu que vi / Nem tava lá / Eu que criei / Que ideia merda”.

O fato é que com Truque, Clarice dá continuidade a uma linha de trabalhos cada vez mais interessantes para aqueles que nunca se empolgaram com a música fofinha do seu primeiro álbum, “Monomania”. O amadurecimento artístico e pessoal da cantora e compositora se reflete em um trabalho equilibrado, que inova ao mesmo tempo em que cria pontes com o disco anterior. É uma música pop e ao mesmo tempo fora do óbvio, com identidade própria – e há que se louvar sempre aqueles que conseguem se comunicar com o público sem se dobrar às fórmulas fáceis. Com o perdão do trocadilho previsível, Clarice sabe usar os truques certos para dar seu recado.

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* Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e repórter de rádio na Rede Bahia. Produz conteúdo sobre música no Instagram @diletantejulli e no blog Ouvindo Coisas. Mais detalhes podem ser consultados aqui.

Clarice Falcão - Truque
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