Discos: Aiace voa alto em seu segundo álbum

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3.6

Concebido durante o período de restrições imposto pela pandemia de Covid-19, Eu Andava como se Fosse Voar  é o segundo álbum da cantora e compositora soteropolitana Aiace. Destacando a musicalidade afro-baiana, com sonoridades da nova-MPB, o álbum consolida ainda mais a carreira da artista, que tem uma trajetória já longa, tanto solo quanto com o grupo Sertanília. Desde  2018, ela tem circulado fora do país, se apresentando em países da Europa e América Latina. Agora, com seu novo trabalho, ela tem tudo para crescer ainda mais no exterior e conquistar o público em sua própria terra e pelo Brasil. Leia a resenha de Julli Rodrigues sobre Eu Andava como se Fosse Voar .

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* Por Julli Rodrigues

A cantora e compositora baiana Aiace une sertão e cidade, tradição e ousadia, doçura e resistência em seu segundo álbum, Eu Andava Como Se Fosse Voar. Disponível nas plataformas digitais desde o último dia 24 de agosto, o trabalho é produzido pela artista em parceria com Paulo Mutti e Jorge Solovera, e traz participações de nomes como Letieres Leite (in memoriam), Luedji Luna e Karol de Souza. Sua narrativa se estrutura sobre dois pilares básicos ao longo das 11 faixas: o amor, enfocado de forma positiva em quase todos os momentos, e a descoberta da própria força enquanto mulher negra.

Essa divisão temática, por sinal, chega a criar dois “lados” no álbum, algo que pode ser bem interessante caso o trabalho ganhe uma edição em vinil. O primeiro lado é o mais solar e doce, com sonoridades mais voltadas para a nova MPB, o pop e as raízes sertanejas. “Amarelocura”, faixa de abertura – que mais tarde ganha uma “reprise” com a participação de Luedji Luna – é marcada pelo toque do violão e da percussão, com letra que versa sobre a importância do amor. No baião “Quando A Gente Se Vê”, Aiace recebe o sanfoneiro Mestrinho para celebrar a beleza dos encontros, com uma escolha de palavras que evoca uma leve ligação com “Chuva, Suor e Cerveja”, de Caetano Veloso: “A gente se embola na rua (…) A gente se molha na rua”.

Também faz parte desse lado “solar” a riquíssima faixa-título – indiscutivelmente uma das melhores do álbum -, que traz um ar de “sertanejo épico”, muito adequado ao tema da saudade de casa e das raízes. Completando a sequência de canções, dois covers muito adequados à proposta e ao mesmo tempo contrastantes entre si: “Se Você Se For” (Ednei Góes, Zinho e Armandinho), um dos hinos mais conhecidos da Timbalada; e “Jornada do Prazer”, canção menos conhecida da discografia de Gonzaguinha. Enquanto a primeira é aquela música pra cantar junto de forma catártica, a segunda vem mais intimista – e até mesmo sensual.

O segundo “lado” vem com um bloco de canções de resistência, quase todas pautadas pela tomada de consciência de quem se é enquanto mulher negra. Fazem parte desse “lado” as canções mais experimentais. Em “Nobre Mulher”, Aiace recebe uma verdadeira tropa de artistas femininas, formada por Brina Costa, Manuela Rodrigues, Mariana Guimarães, Marissol Mwaba, Natália Matos, Rhaíssa Bittar e Siamese. A letra é marcada pelo discurso feminista e empoderado – “Quebre o silêncio e nasça / Não olhe pra trás / Uma sobe e puxa a outra / Nobre mulher, moça” – em sonoridade afrobeat.

Em “Toda Verdade Guarda Uma Mentira”, a pegada é “sangue no olho”, a começar pela abertura: “Se o amor passar por aqui, finja que eu não estou não”. Sobre um arranjo que transita entre o trap e o rock, Aiace canta versos de mágoa que podem ser interpretados de diversas formas por quem ouve, desde um fim de relacionamento até uma interpretação mais ampla, de viés político e social. Nessa faixa, participam o grupo Maracatu Ventos de Ouro e a rapper Karol de Souza, que vem com a mensagem mais contundente: “Ele mente, ele finge, ele ilude, não liga pra nada / Me fere na alma, espero que aguente lidar com o seu carma”. Quase uma atualização de “Crápula”, de Luiz Tatit.

Na potente “Fluxo e Refluxo”, parceria de Aiace com seu pai, Gileno Félix, o tema é a diáspora africana, bem como o sofrimento presente nas vivências de uma pessoa preta e a declaração de resistência: “Como água me blindo sem medo / Pra que meu povo possa existir / Ser semente é só o começo / Ah, eu quero ver o sistema cair”. Antes de “Fluxo e Refluxo”, porém, há uma espécie de “respiro”, uma canção suave espremida entre as mais tensas: a romântica “Quando As Luzes Se Apagam”, que conta com a participação do maestro Letieres Leite (1959-2021).

Outro momento de “respiro” aparece no final do álbum, com “Ponha Colírio Na Flor”, seu ritmo alegre e seu refrão chiclete. Composta por Gileno Félix para que Aiace pudesse cantar quando mais velha, a canção traz uma mensagem que sintetiza a pegada consciente e atenta da artista em suas canções de resistência: “Por trás dos meus óculos escuros / meus olhos são dois vaga-lumes que veem meu país”. Um bônus de fofura é a presença de uma gravação da voz da própria cantora quando criança, ensaiando cantar a música escrita pelo pai.

O fato é que Aiace equilibra bem suas dualidades no álbum Eu Andava Como Se Fosse Voar, em um conjunto muito coerente dos pontos de vista lírico e sonoro. As canções falam sobre o amor visto por um prisma positivo, sem ignorar seu lado sombrio quando necessário; tratam de temas sociais urgentes e infelizmente atuais com a pungência que lhes cabe, sem esvaziar o discurso nem deixar o clima muito pesado. Não há um erro sequer nos arranjos e na escolha dos gêneros para cada canção: é rock e baião nos momentos exatos. Um disco que certamente merece destaque e audições atentas.

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Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e repórter na Rede Bahia. Produz conteúdo sobre música no Instagram @diletantejulli e no blog Ouvindo Coisas. Mais detalhes podem ser consultados aqui.

Aiace - Eu Andava Como Se Fosse Voar
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