Nosso texto sobre a nova música pop provocou algumas reações interessantes, como a do escritor Breno Fernandes, que fez uma conexão entre Astor Piazzolla, o tango, o pop e o arrocha baiano.
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Por Breno Fernandes*
Quando se visita Buenos Aires, é difícil escapar ao tango. Ele está à sua espera nos principais pontos turísticos da cidade.
Certas vezes toma a forma dum casal dançante, todo emperiquitado. Noutras é um cantor de terno mambembe e chapéu fedora inclinado à Carlos Gardel. E, se não é uma coisa nem outra, são panfletos anunciando o melhor show de tango da capital argentina.
Um título autoconcedido obviamente.
Com o tempo, é possível que você acabe criando algum interesse pelo gênero. E descubra lugares como:
Notorious (Av. Callao, 966), um clube de jazz onde esporadicamente algum músico que tocou com Piazzolla promove uma noite de tango.
Boliche del Roberto (Rua Bulnes, 331), um boteco onde músicos e cantores boêmios se reúnem todos os dias, por volta da meia-noite, para cantar sucessos da era do rádio.
La Catedral (Rua Sarmiento, 4006), um barracão onde, apesar da estética punk, funciona um salão de dança com direito a aulas de tango.
Em todos esses lugares, ouvi uma narrativa mais ou menos idêntica:
O tango nasceu com os imigrantes que, no início do século 20, chegavam aos milhares em Buenos Aires. Brotou nos espaços boêmios frequentados por essa gente. Nos bairros pobres da zona sul.
A princípio ele foi desprezado pelas camadas médias e pelas elites portenhas. O tango dançado, à época, foi taxado de baixo e de obsceno. Porém jovens abastados ficaram fascinados pelo gênero, e por meio deles o tango encontrou espaço noutras camadas sociais, se transformou num fenômeno da nascente indústria fonográfica argentina e se tornou um elemento de formação para as seguintes gerações de músicos daquele país. Por exemplo, para Astor Piazzolla (1921-1992), o homem que levou o tango para as salas de concerto.
Apesar de falecido há quase três décadas, ainda hoje Piazzolla é chamado de O Futuro do Tango. Assim me disse Lucas de Carlo, bandoneonista da trupe do Boliche del Roberto. Assim falou o maestro Juan Carlos Cirigliano, ex-parceiro de palco de Piazzolla, no show que vi no Notorious em janeiro de 2020.
Confesso que, de início, suas palavras me soaram como um mix de ufanismo e de elitismo. “Quer dizer que o futuro é a linguagem da música clássica? Sei…”.
Então aconteceu de, meses depois, me deparar com um artigo de Luciano Matos a respeito da “nova geração sem medo de ser pop” que há na música brasileira. Artistas de norte a sul do Brasil que são sucesso de crítica usando elementos e gêneros musicais que, décadas atrás, a própria crítica considerava menores.
O que mudou de uma geração para a outra?
Pensando sobre o assunto nos últimos dias, cheguei a duas respostas possíveis. Por um lado, foi a crítica que mudou. Um fenômeno que acompanhei de perto, haja vista que me formei em jornalismo no início do século, quando o que mais se discutia nas disciplinas de jornalismo cultural era a falácia da oposição alta/baixa cultura. Passamos centenas de horas esmiuçando os discursos e as crenças que davam legitimidade a essa distinção.
É claro que à época essa não era uma discussão nova, o que quer dizer que, quando minha geração passou da sala de aula para as redações, nós não fomos os primeiros críticos a usar a imprensa para descreditar as fronteiras entre alta e baixa cultura. Contudo minha geração teve o privilégio de ser a primeira a atuar com crítica cultural para a internet, no princípio das mídias sociais. Suponho que, de algum modo, nossa postura — que alguns chamam de relativismo cultural, embora outros julguem a expressão pejorativa —, nossa postura e participação intensa no ambiente online ajudou os mais jovens, a primeira geração a usar a internet como fonte primordial de informação, a dirimir preconceitos relacionados a músicas antes ditas “do povão” ou “comerciais”. Repetíamos à exaustão que juízos de valor desse tipo dizem mais sobre o papel da arte como fonte status social do que sobre qualidade musical.
Por outro lado, como observa o texto de Luciano Matos, a nova geração de artistas da música brasileira se destaca não só por usar elementos pop antes vistos com maus olhos, mas também por misturar elementos de diferentes gêneros. E para a arte vale a mesma regra que para os seres humanos: quanto mais diversificado for o material genético que lhes dá origem, menores os riscos para a saúde.
Isso eu ouvi uns quinze anos atrás, da boca de uma pessoa da música cuja identidade julgo melhor preservar devido ao teor polêmico da declaração. Numa entrevista sobre a história da música na Bahia, comentando a respeito do axé music, a fonte afirmou que o gênero ganhou forma e força, na década de 80, graças ao encontro de músicos de diferentes estilos: do jazz e da música clássica, da música experimental e da música de terreiro. Mas, nos anos 90, teria havido uma espécie de empobrecimento do axé, na medida em que as composições dos novos artistas tinham como base somente o repertório do próprio axé. Como um país que se fechasse de qualquer contato com o estrangeiro.
Me lembrei dessa declaração ao notar a predominância da mescla, da mistura, da hibridização musical no recorte de artistas da nova geração que Matos faz em seu texto. E aí me lembrei do tango. Melhor dizendo, de Astor Piazzolla. O Futuro do Tango.
Entendi que o comentário que ouvi do maestro e do bandoneonista portenhos não se tratava (apenas) de ufanismo. Muito menos de elitismo. Eles falavam da capacidade ímpar de Piazzolla para mesclar o tango com tantos outros gêneros. Inclusive com a herança da música clássica, como se escuta em As quatro estações portenhas, um encontro entre o barroco e Barracas — o popular bairro buenairense, um dos berços do tango.
Ainda que o tango desfrutasse de imenso prestígio à sua época, Piazzolla pareceu ter compreendido que a transformação do gênero em símbolo nacional não bastaria para garantir de fato sua sobrevivência. Ele precisava se tornar material genético para o novo. Assim o maestro se dedicou a criar uma miríade de possibilidades de mescla, levando o tango a outros gêneros e outros gêneros ao tango. É por isso que, sim, Piazzolla, ainda hoje, representa O Futuro do Tango. E nos mostra o caminho que todo gênero musical que deseja se perpetuar deve seguir.
A mim, que sou leigo em música, me resta prestar atenção ao que a nova geração de artistas brasileiros produz com o pool genético-musical que tem em mãos, seja esse material daqui ou de qualquer outro canto do planeta. Sigo ansioso para descobrir qual futuro se descortina para os gêneros que vi nascer. E, como os desafinados também têm um coração, me sinto à vontade para modestamente sugerir que O Futuro do Arrocha talvez venha a ter muito de Mozart.
*Breno Fernandes é escritor.