Casapronta

Casapronta fala sobre o rock macumba de seu novo trabalho e faz um faixa a faixa

Natural de Feira de Santana, o cantor e compositor Casapronta mostra a mistura de rock, blues e influências da musicalidade afro-religiosa em sua estreia SETE.

“Experiências e observações acerca do universo do candomblé e umbanda, diluídas em poesia, acordes e atabaques”. É assim que Casapronta, alcunha adotada pelo cantor e compositor baiano Pablício Jorge, define seu primeiro álbum solo, SETE. Lançado de forma totalmente independente, o trabalho traz uma mistura de rock, blues e influências da musicalidade afro-religiosa.

Essa definição norteia todo o conceito do álbum, que é construído a partir de uma narrativa organizada através da sequência das músicas. O início trazendo os Exus, um feminino (“Dona Maria”) e outro masculino (“Capa Preta”), seguidos de ritos e costumes (“Mandinga” e “Oferenda”). Segue então com a reverência a uma deusa africana da cultura Bantu / Angola (“Matamba”), para destacar na sequência o Deus cristão sob um ponto de vista regional (“Deus é o Cão”). A última faixa apresenta uma reza, rodeada de ancestralidade, em forma de samba, que abraça todo o trabalho (“Reza”).

Para o artista, essa proposta de tratar de deuses e deusas na perspectiva de uma afrobrasilidade é revolucionário. “É enfrentamento, é bater de frente com o conservadorismo que nos espreita em cada esquina. Com o disco SETE abro as portas de meu terreiro musical e convido o público para mexer o caldeirão cultural, com o dendê fervendo, para queimar a língua dos racistas e nos deixar passar com o nosso Axé”, explica o artista.

Com arranjos simples, diretos e crus, Casapronta recheia as sete faixas com forte presença de guitarras, que dão o tom do trabalho. Para isso convocou um time de nomes importantes do rock independente baiano e nacional. Estão lá, Martin Mendonça (Pitty), Julico (The Baggios), Morotó Slim (ex-Dead Billies e Retrofoguetes), Dudé Casado, Eric Assmar, Bruno Carvalho (MAEV) e Geovani Galloti, cada um deles em uma das faixas. Eles foram responsáveis também pelos arranjos de guitarra. Também convidados especiais no álbum, Dona Dalva do Samba e família fazem as vozes ouvidas na faixa que fecha o disco, “Reza”.

Gravado num estúdio em Cruz das Almas, o trabalho tem também Alan Cerqueira (bateria e percussão) e Rafael Razz (baixo) em todas as faixas, além de Marcelo Flores (teclados), Victor Raizeiro (cavaquinho), Cledinho de Iemanjá (violão), Petry Lordelo (pandeiro e voz), Milena Bastos e Lori Diel (vozes) em algumas das gravações. O disco traz ainda vinhetas das músicas extraídas de festas de Zé Pilintra e Exu Capa Preta, no terreiro de Umbanda Iansã e Oxóssi Oyá Dinguê, em Feira de Santana.

Mesmo com convidados e participações fundamentais, SETE é um daqueles trabalhos de autoria muito marcante, já que Casapronta cria todo o conceito, assim como a escolha pelas misturas de guitarras e atabaques conectados com o mundo da religões de matriz africana, que ele autointitula como “rock macumba”. Ele confirma essa assinatura sendo responsável pelos arranjos e a produção, além da autoria de todas as faixas, exceto “Deus é o Cão” (Duda Brandão). Na parte musical, além de cantar, ele toca violão, gaita e percussão.

Com 26 anos de carreira, Pablício/ Casapronta é uma figura conhecida no meio do rock baiano. Durante 25 anos foi baterista, zabumbeiro e vocalista da banda de blues Clube de Patifes. Nascido em Feira de Santana, criado em Cruz das Almas, tendo morado também em Cachoeira, voltou a morar em Cruz e leva a influência da musicalidade e cultura do Recôncavo baiano em sua música. “Os tambores africanos são base rítmica da música no mundo. No Brasil, os atabaques do candomblé ajudaram a moldar muito de nossa musicalidade. Partindo desse entendimento, tenho buscado cada vez mais incorporar a sonoridade dos atabaques às minhas composições, mesmo em se tratando de rock e blues, que também são músicas afro-diaspóricas”, conclui.

Entrevista

– Como começou seu interesse na música e sua trajetória artística?

“A música entra na minha vida desde criança quando tive contato com discos de vinil na loja que meu pai tinha em Cruz das Almas, a La Som La, primeira loja de discos e fitas da cidade. Ali se abriu o universo da música pra mim, e principalmente o rock n roll, quando conheci Raul Seixas e seu disco ‘Gita”. Fui baterista, zabumbeiro e vocalista de uma banda de blues durante 25 anos. O violão, que pegava emprestado de um amigo, foi o instrumento que me possibilitou conhecer os primeiros acordes e me ousar a compor, mas nada relevante na época. Com o tempo, depois de passar por diversas religiões que minha mãe nos obrigava, eu e meus irmãos, inclusive a umbanda, fui entendendo o meu real lugar nesse universo religioso e cultural. Costumo dizer que vivo um momento musical plural, com um caldeirão de possibilidades, se derramando sobre minha música, e apontando saídas nessa encruzilhada da vida. É a música, simplesmente, a minha verdade, ditando meu fluxo e refluxo. eu, Casapronta há sete anos, não consigo separar a musicalidade afro brasileira, da umbanda e candomblé, da estrutura de minhas composições, e/ou versões que faço, colocando pimenta no dendê. Hoje com 48 anos, quase 49, sou um cara que faz seu rock macumba, que não tem perigo de assustar ninguém, achado aqui no Recôncavo Baiano. O que virá depois? Já está tudo certo lá na frente, tem “gente” cuidando dos caminhos.”

– Como você definiria esse álbum? Existe algum conceito ou algo em comum que una essas músicas?

“O disco SETE é o fechamento de um ciclo e abertura de outro automaticamente. Digo isso, partindo da máxima de, enquanto pesquisador, homem negro, e filho de santo, não saber mais os limites entre as pesquisas e minha música. Trago para dentro do disco SETE minhas experiências e observações acerca do universo do terreiro que frequento, diluídas em poesia, acordes e atabaques. O terreiro está presente de forma marcante nas canções, quando inclui vinhetas extraídas de gravações de áudio das festas dos Exus, Zé Pilintra e Capa Preta. A irreverência, tão comum no rock n roll, se faz presente nesse disco, dadas as participações dos guitarristas convidados, além dos arranjos simples, diretos e crus, como o rock pede muitas vezes. Acredito ter realizado o disco conceito, até porque as canções estão numa sequência que traz uma narrativa que se inicia com os Exus, um feminino (1.Dona Maria) e outro masculino (2.Capa Preta), seguidos de ritos de costumes (3.Mandinga e 4.Oferenda). Dando seguimento com a reverência a uma deusa africana de origem Congo Angola (5.Matamba) e a referência ao Deus cristão (6.Deus é o Cão). O disco SETE finaliza com uma reza, rodeada de ancestralidade, em forma de samba, que abraça todo o trabalho (7.Reza). Costumo dizer que minha África é minha casa, minha África é minha cabeça. Enfim, o disco SETE traduz em sete canções, meu mundo atual, e meu mundo é onde piso, é meu chão. O disco SETE é meu rock macumba.”

– Quais as principais influências rítmicas?

“As influências são o blues e o rock, que me acompanham há muito tempo. Por ser do Recôncavo Baiano, de Cruz das Almas e ter morado em Cachoeira durante cinco anos, o reggae do recôncavo faz parte também de minhas influências. Para além, a musicalidade dos atabaques dos terreiros de umbanda e candomblé tem tido cada vez mais lugar de destaque nos discos e shows do Casapronta. Os tambores africanos são base rítmica da música no mundo, tudo começou com os tambores. E aqui no Brasil os atabaques do candomblé ajudaram a moldar muito de nossa musicalidade. Então, partindo desse entendimento, venho buscando cada vez mais incorporar a permissividade natural dos atabaques às minhas composições, mesmo em se tratando de rock e blues, que também são músicas afro diaspóricas, assim como o samba, São músicas de preto.”

– Que mensagem você quer passar com esse álbum?

“A mensagem é, hoje e sempre, a desdemonização do Exu e todo o panteão afro brasileiro. Continuar na luta contra o preconceito e o racismo, cada vez mais evidente no nosso país, principalmente depois de anos sombrios que vivemos recentemente. Parece que as pessoas esqueceram o respeito ao próximo e o direito de liberdade de cada um. Falar de Exu, Pombagira, ter atabaques nas canções com toques de candomblé e umbanda, falar de deuses e deusas na perspectiva de uma afrobrasilidade. é revolucionário, é enfrentamento, é bater de frente com o conservadorismo, que nos espreita em cada esquina. Trazer essa temática em um disco atualmente, só corrobora com uma galera que está imbuída nessa luta diária só cobrando respeito. Parece repetitivo o discurso, né? Mas tem que ser. Tem muita gente que não entendeu, ou não quer entender, se fazendo de rogado, como dizia minha mãe. Racismo, racismo religioso, preconceito e ara, são violências não mais aceitáveis e a gente segue sem sucumbir. Com o disco S E T E abro as portas de meu terreiro musical, e convido o público para mexer o caldeirão cultural, com o dendê fervendo pra queimar a língua do racista, e nos deixar passar com o nosso Axé. Vamos fazer rock, vamos fazer macumba. Rock macumba.”

Faixa a Faixa por Casapronta

1. Dona Maria

“Canção que escrevi em homenagem à Maria Padilha, uma das mais populares pombagiras, da cultura afro-brasileira. É uma mulher à frente do seu tempo, independente, faz o que quer, como deve ser e não aceitar desaforo, nem tampouco violência contra ela. Chegar a ser temida por muitos homens. Tenho um respeito e admiração pela Maria Padilha, principalmente a que incorpora lá no terreiro. Maria Padilha é minha protetora, também. Cada música do disco tem um guitarrista convidado, e em Dona Maria, Bruno Carvalho da banda Meus Amigos Estão Velhos, um querido amigo de longas datas, veio colaborar com muita distorção na canção. Dona Maria abre o disco com força e energia.”

2. Capa Preta

“Outra homenagem, só que agora para o Exu Capa Preta. Essa entidade é uma das mais respeitadas no nosso terreiro de umbanda, que fica no bairro da Baraúna, em Feira de Santana. Seu Capa, como costumamos chamar, já me deu provas de sua proteção e livramento de situações difíceis. Considero o Exu Capa Preta um grande amigo, e todo ano celebramos nossa amizade e agradecimentos, com uma grande festa. Abro a canção com uma das vinhetas que extrai de festas de Zé Pilintra e do Exu Capa Preta, no terreiro que frequento, enquanto fazia as pesquisas acadêmicas na época. A canção Capa Preta veio como uma espécie de blues com muito balanço, e convidei Eric Assmar para compor as guitarras. Eric é um dos caras que carrega a bandeira do blues no Brasil, além de defender o legado do seu saudoso pai, Álvaro Assmar, em memória. Exu é blues.”

3. Mandinga

“Trata-se da história de um cara que relata para o Zé Pilintra, no terreiro, que haviam feito uma mandinga a fim de o amarrarem pelo coração. Foi coisa feita. Seu Zé diz que o que vale é o amor e que amor só existe se for de verdade. A mandinga para o amor pode acontecer de dar certo, mas não é para sempre. Para as guitarras, convidei Morotó Slim, um grande amigo, que sempre foi inspiração e referência pra mim, desde os The Dead Billies. Morotó conseguiu dar a canção a verdadeira cara de rock macumba. Sou honrado em tê-lo no trabalho.”

4. Oferenda

“Uma balada blues, que trata de um daqueles temas mais abordados pelo estilo: o sofrimento com a desilusão amorosa. “Oferenda” é uma canção antiga, que só agora pôde ser gravada. Remete à dor fazendo analogias com o periodo sofrido da escravidão dos negros no Brasil. O refrão que diz, “Não pisa na cabeça de nego, não”, faz analogia aos primeiros calçamentos do Brasil, que eram paralelepípedos em formato circular, que dificultava o andar das pessoas pelas ruas e até o pisar dos animais. Esses paralelepípedos eram chamados de “cabeça de nego”. “Não açoite o lombo desse nego, não”, é outra analogia, só quue agora com castigo em público que sofriam os negros escravizados, ditos rebeldes por discordarem ou desobedecerem seus “senhores”. “Oferenda” é uma canção cheia de simbolismos, inclusive com a passagem que diz “não despreze essa oferenda que é meu coração”. A oferenda é o agradecimento à divindade, e o coração, símbolo do amor, quando doado é uma verdadeira oferenda.”

5. Matamba

“Sempre quis fazer uma homenagem pra essa energia da natureza, essa energia feminina, que de certo modo me rege, também. Matamba é um Nkisi na cultura Bantu, e corresponde a Iansã na cultura Iorubá. No panteão afrobrasileiro é uma energia que está ligada às mudanças, pela força dos seus ventos e tempestades, que movem tudo do lugar, para reorganizar. Matamba é uma mãe protetora e enérgica. Convidei para compor as guitarras, um dos grandes guitarristas do Brasil, lá de Sergipe, que é o Julico da banda The Baggios. “Matamba’ é outra balada blues, e precisava de um cara que somasse com a canção, fazendo o simples e dialogando com os instrumentos, e Julico entregou tudo. Grato por ele ter vindo para essa aventura. “Matamba” tem uma vinheta de abertura captada numa festa do terreiro, quando da chegada da mesma na festa.”

6. Deus é o cão

“Essa é uma provocação, admito. “Deus é o cão” é uma composição de um grande amigo de Feira de Santana, de quem sempre gravo composições. Duda Brandão é o cara, Duda Brandão é rock. No interior quando alguém era destaque em alguma coisa, fazia aquilo extremamente bem, era superior aos demais, era retado, vamos dizer assim, todo mundo dizia: “É o cão”. Daí a analogia com Deus, esse ser poderoso, onipresente, onisciente e onipotente, segundo a Bíblia, né? A frase, “Quem pode mais é Deus”, é parte de um ponto cantado nos ritos de umbanda, mostrando a influência direta da cultura cristã sobre a cultura afro-brasileira, e isso não tem como ser negado. Deus é o cão, Deus é virado no “mói de coentro”, Deus é quem está pra resolver inúmeros e infinitos problemas do mundo. Só que um dia a conta pode chegar, será que Deus aguenta? Finalizo “Deus é o cão” com outra vinheta extraída de uma das festas do terreiro, cujo texto tem total ligação com a canção.”

7. Reza

“Essa é minha celebração. É o fechamento perfeito do disco. Termina tudo em samba, samba de roda, samba de terreiro. “Reza” foi escrita em 2016, em Cachoeira, depois de passar por um infortúnio e tê-lo resolvido. Queria uma reza que fosse minha. Acredito que cada um deva ter a sua reza, daquelas que vem de dentro, bem lá do fundo de nós, com imensa verdade. “Reza” é um agradecimento e ao mesmo tempo pedido de proteção. Três gerações do samba de roda de Cachoeira compõem o coro na música: Dona Dalva, sua filha Dona Ana; e a neta, Any. Ganhei bênçãos que foram registradas e colocadas na música. Tudo muito lindo e emocionante. Tem uma galera boa participando dessa canção, também: Geovani Gallotti na guitarra, Victor Raizeiro no cavaquinho, Clebinho de Iemanjá no vilão, Alan Cerqueira nos atabaque e Petry Lordelo no pandeiro. Viva ao Samba de Roda de Dona Dalva de Cachoeira, viva às religiões de matriz africana, viva a liberdade de você acender a vela pra quem quiser, pra Jesus ou pra Seu Zé. Viva ao S E T E.”

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