Qual o melhor caminho para orquestras públicas? Em meio a polêmica em torno de quem vai administrar a Orquestra Sinfônica da Bahia, o professor Albino Rubim adentra na questão de forma mais profunda sobre as questões que envolvem a disputa. Afinal, que OSBA queremos?
Por Antonio Albino Canelas Rubim*
A atual disputa entre os dois maestros rivais, como “noticiou” a Folha de São Paulo, mais uma vez prisioneira dos aspectos fenomênicos da vida, se tornou um acontecimento nacional. Para além do mundo das aparências, potentes produtoras de ideologia na perspicaz visão de Theodor Adorno, talvez o episódio possa ser melhor desvelado por outros olhares, que façam emergir uma discussão aprofundada e colaborar no desenvolvimento de reflexões mais apuradas no campo das políticas culturais.
A polêmica, a rigor, envolve a utilização do instrumento da publicização no campo da cultura. Ou seja, o estado faz um contrato de gestão, via edital público, para uma instituição prestar serviços na área da cultura. No caso específico em foco: gerir a Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA). Cabe lembrar que, no estado, já existe outra publicização no setor da música de orquestra, responsável pela Neojibá. Trata-se, portanto, da disputa em torno da renovação da publicização da OSBA.
O processo de publicização implica na realização de editais periódicos para sua renovação. Eles precisam trazer parâmetros de acompanhamento para avaliar o desempenho da entidade responsável pela gestão da área publicizada e, também, critérios transparentes de julgamento para permitir a escolha, quando houver mais de uma proposta na disputa do edital, como ocorre agora.
A questão primordial que deveria ser colocada em cena diz respeito a tais critérios e a quem decide acerca das propostas concorrentes. Com relação ao segundo tópico, torna-se vital a existência de processo público transparente, além do acionamento de uma comissão de seleção democrática e composta também por qualificados especialistas, que tenha a competência para avaliar de modo consistente e rigoroso os competidores. A composição da comissão é fundamental para que o processo seja efetivamente democrático e qualificado a fim de atender os interesses culturais da sociedade.
A definição democrática, qualificada e transparente de critérios de avaliação e de seleção são igualmente essenciais para que seja possível prevalecer os interesses da cultura e da sociedade. Dentre os inúmeros critérios a serem definidos, alguns derivam da especificidade da área cultural envolvida, outros devem ter enlace em perspectiva mais ampla, guardando uma sintonia fina com as políticas democráticas e públicas adotadas pelo estado no campo da cultura.
O debate público sobre o tema deve, por conseguinte, priorizar a dimensão política-cultural-estética daquilo que o estado e a sociedade desejam para a OSBA. Os aspectos administrativo-burocráticos, sem dúvida importantes, não podem prevalecer em um debate que é primordialmente político-cultural-estético acerca do que se pretende não só para a OSBA, mas para a música orquestral na Bahia ou até para a cultura no estado. Esse é o debate central a ser travado e tudo mais deve derivar dele no âmbito específico das políticas culturais. Toda discussão que obscurece tal dimensão presta um desserviço à cultura e à democracia cultural na Bahia e no Brasil.
É preciso reconhecer que, para além do mundo aparente dos maestros rivais e dos possíveis narcisos envolvidos, trata-se de uma disputa de concepções diferenciadas de orquestra, de sua gestão, de seus repertórios, de sua relação com o público: enfim de projetos político-culturais-estéticos distintos e divergentes”
Por conseguinte, é preciso reconhecer que, para além do mundo aparente dos maestros rivais e dos possíveis narcisos envolvidos, trata-se de uma disputa de concepções diferenciadas de orquestra, de sua gestão, de seus repertórios, de sua relação com o público: enfim de projetos político-culturais-estéticos distintos e divergentes. Inclusive tais conflitos se expressaram publicamente em várias oportunidades. A discussão da sociedade, da comunidade cultural e mesmo do estado deveria se concentrar nessa dimensão primordial, que subordina todas as outras. Política cultural se faz com a predominância da cultura sempre e nunca de outros dispositivos – importantes, mas sempre subordinados à política democrática e pública da cultura.
Não é possível, nesse pequeno texto, tratar de modo rigoroso os qualificados, mas divergentes e conflitantes, projetos em disputa. Não há dúvida acerca de suas qualidades, mesmo entre os defensores de uma ou de outra alternativa. Assinalar a excelência dos projetos não implica em identificá-los, dado que têm propostas político-culturais-estéticas bastante distintas, como já foi assinalado ao longo do texto.
Nesses anos, a Bahia ganhou muito com a rica coexistência dos dois projetos musicais. Eles, em conjunto com a orquestra da UFBA e de outras propostas de música orquestral, dão grandiosidade à vida cultural e musical baiana, antes tão castigada pelo desinteresse de governos federais e/ou estaduais. A música de orquestra se desenvolveu na Bahia de modo significativo com tal coexistência, mesmo eventualmente conflituosa.
Independente de adentrar de modo mais profundo no debate acerca dos projetos distintos existentes, cabe fazer algumas considerações acerca da correlação do tema com as políticas culturais, pois a utilização democrática e qualificada do dispositivo da publicização depende umbilicalmente da conexão estabelecida entre a área cultural publicizada e as políticas públicas de cultura democráticas. Sem tal sintonia, a publicização apresenta o risco de fragmentar toda intervenção político-cultural do estado, tornando-a um imenso mosaico desconexo, que, ao invés de estimular a cultura, atordoa sua vida e seu desenvolvimento.
Políticas públicas de cultura são orientações abrangentes e amplas de como deve acontecer a atuação do estado democrático no campo em questão. Para que existam políticas culturais, a cultura deve ser encarada com finalidade da política e não como meio instrumental da política. Nessa perspectiva, para que isso ocorra, o debate, cabe insistir, deve se centrar primordialmente na sua dimensão político-cultural-estética.
Muitas políticas culturais são hoje adotadas no mundo, no Brasil e na Bahia. O estado, por exemplo, foi um excepcional exemplo de inventivas políticas de territorialização cultural. Não é possível trabalhar as muitas políticas culturais no âmbito do texto. Mas recorrer a algumas delas, em especial àquelas com vigência na Bahia, certamente interessa e pode iluminar uma discussão mais substantiva do tema das orquestras.
A diversidade cultural emerge como uma delas. A convenção da diversidade cultural foi aprovada em Paris, no ano de 2005, pela quase unanimidade dos países presentes. Apenas dois votaram contra. O Brasil, com Gilberto Gil, atuou firmemente pela convenção. Dois dos documentos político-culturais mais relevantes da Bahia, a Lei Orgânica da Cultura, esboçada na gestão de Márcio Meirelles e aprovada em 2011, e o Plano Estadual de Cultura (2014) acolhem a diversidade cultural como componente vital das políticas culturais na Bahia. Assim, não parece sem sentido recorrer à política da diversidade cultural para revisitar a discussão da OSBA sob um ponto de vista diferenciado. Ou seja, a proposta aqui é que a publicização deve considerar entre seus critérios de análise, como dado fundamental, as políticas públicas de cultura vigentes, a exemplo da diversidade cultural.
Cabe perguntar qual alternativa atende mais o interesse do estado e da sociedade, por exemplo, com base na política de diversidade cultural, acolhida em suas políticas culturais.
Desse modo, cabe perguntar qual alternativa atende mais o interesse do estado e da sociedade, por exemplo, com base na política de diversidade cultural, acolhida em suas políticas culturais. O volume de recursos envolvidos na música orquestral é volumoso na Bahia, ainda que sempre aquém das necessidades. Sua envergadura é fácil de ser avaliada se comparamos o total de recursos destinados anualmente à OSBA e à Neojibá com aqueles investidos em outras áreas culturais, via Fundo de Cultura ou FazCultura, ou presentes nos orçamentos anuais dos mais importantes órgãos da própria Secretaria de Cultura, tais como: IPAC, FUNCEB, Fundação Pedro Calmon e Centro de Culturas Populares e Identitárias (CCPI).
Em termos de diversidade da cultura, da música, da música orquestral, qual seria a melhor alternativa para a Bahia sob a perspectiva da diversidade cultural? A opção por uma das alternativas com a exclusão do outro projeto musical divergente? Ou a convivência do diverso, deles dois funcionando e concorrendo para engrandecer a cultura na/da Bahia com a manutenção das propostas político-culturais-estéticas distintas e até mesmo conflitantes? Tais questões são vitais para um aberto e amplo debate sobre a OSBA e as políticas culturais na Bahia. A monocultura sempre foi inimiga feroz da diversidade cultural.
* Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult) e professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia. É ex-secretário de Cultura do Estado da Bahia (2011-2014).