Filas gigantescas, ingressos esgotados, atraso, quebra de protocolo, desdém às rígidas regras do TCA, as habituais reclamações do microfone, de barulho na plateia, do ventinho. Nada disso importa de fato. Na verdade, tudo isso só integra o pacote do mito que é João Gilberto, talvez o brasileiro vivo mais importante e um dos homens mais fundamentais da arte contemporânea no mundo hoje. Como um ritual, tudo ao redor só reforça o momento em que o baiano de Juazeiro senta em seu banquinho munido apenas de um violão e desfila uma preciosa sequência de lindas canções, a bossa-nova em sua plenitude. É ele e a música, o que realmente importa. Ontem, no Teatro Castro Alves, João Gilberto encerrou de forma esplendorosa série de shows que fez no Brasil em homenagem aos 50 anos da Bossa-nova. Não poderia ser melhor.
Com uma hora e 10 minutos de atraso e um público pacientemente esperando e já ciente que o que importava de fato na celebração era só ele, João mais uma vez fez de um show um momento mágico, sublime. Público, teatro, técnicos, imprensa, produção. Todos estavam ali porque precisavam estar e porque faziam parte do contexto, mas se não estivessem pouco interessava, o ritual era João Gilberto, apenas ele sentado num banquinho com seu violão. Timidamente ele entrou no palco às 22h09, sentou, reclamou do microfone e já lançou “Canto pra esse mundo todo, mas a Bahia é diferente. Eu fico até nervoso” e colocou todo mundo no bolso com “Saudade da Bahia”, de Dorival Caymmi. Era o começo da celebração.
Como numa missa, um ritual religioso, o público permanecia quieto, absorto, como diante de uma entidade, todos respeitavam os caprichos, as exigência do mito João Gilberto, ninguém cantava junto, ninguém conversava, ninguém fazia nada, apenas venerava aquele momento de iluminação. “13 de Ouro”, “Chove Lá Fora”, “Rosa Morena”, “Este Seu Olhar”, “Morena Boca de Ouro”, “Da Cor do Pecado”, “Desafinado”, “Não Vou Pra Casa”, “Corcovado”, “O Pato”, “Ligia”, “Retrato Em Branco e Preto”, uma das mais emocionantes da noite, “Bahia Com H”, “Chega de Saudade”, “Wave”, “Caminhos Cruzados”, “Você Não Sabe Amar”, entre outras. Um total de 33 canções.
A delicadeza com que trata cada música é impressionante. Dedicava canções para amigos, se emocionava com outras, ressaltava como era linda aquela outra e em três oportunidades, como que querendo ressaltar sua beleza, voltava a cantar e tocar a mesma canção. Em “Estate”, música em italiano de Bruno Martino e Bruno Brighetti, voltou a tocá-la traduzindo partes e mostrando como era magnífica. Uma aula, aula de música, de dedicação, de sentimento.
João parece existir para se deleitar com a música, para tocar seu violão, em seu canto, sossegado. Normalmente faz isso em seu apartamento, em longos “ensaios” que muitos tratam como obsessivos e até chatos. Um absurdo. É como os deuses podem se dedicar a encantar os súditos. Tudo apenas para poder desfilar sua genialidade em poucas e cada vez mais raras apresentações que merecem todos os adjetivos superlativos. Maravilhoso. Inesquecível. Incrível. E por ai vai. Deveriam inventar uma classificação específica para ele: “João Gilbertiano” quando algo ultrapassasse o nível humano de excelência e alcançasse um patamar divino. Mais uma vez foi assim, num show disputado e com um público diverso que quase de joelhos se rendia a um mestre em atuação.
Duas horas e vinte minutos de êxtase silencioso, de catarse coletiva. Tirando a sinfonia de tosses do público, que em um momento o fez assumidamente errar “Meditação” e perguntar bem humorado se alguém tinha levado xarope. A tensão que todo show de João tem, dele poder encerrar show no meio, ir embora ou de ficar lamuriando do barulho ou de outra coisa, levava o público a se divertir com as pequenas reclamações. Fazia parte, não poderia deixar de ter, afinal, é João Gilberto, um mito, e ele pode tudo. Bem humorado como estava, não bradou quando pediram para aumentar o som, só ressaltando que numa orquestra a tuba fica lá quieta no meio dos outros instrumentos e ninguém pede para aumentar. Ou quando se divertia com o pedidos de músicas para tocar, inclusive atendendo alguns.
Durante alguns minutos aplaudido de pé, encerrou o show para voltar para um biz de seis músicas, com o público se levantando e se aproximando do altar, venerando João. Como se estivessem naquelas sala de apartamento de Copacabana nos anos 50, sentaram no chão e viam como um mestre consegue hipnotizar 1.500 pessoas e transformar o que seria um show histórico, numa celebração sensível, delicada e magnífica da música brasileira. Assistindo ele tocar é fácil entender porque João Gilberto é venerado em todo planeta. Ele colocou a música brasileira em outro patamar, continua levando o samba, a musicalidade brasileira, para outra esfera, apenas ele, seu violão e um banquinho. A Bahia pôde assistir ontem um de seus filhos mais fantásticos provar que a sensibilidade e a delicadeza está acima de tudo. João fez história e continua fazendo.