Músico baiano envolvido com diversos projetos e bandas, Ian Cardoso apresenta seu primeiro álbum solo. A motivação do projeto de quarentena, como o próprio instrumentista e compositor classifica o disco, foi a necessidade de escoamento. ‘Devoto Franco’ é mais um disco baiano que ganha análise no el Cabong, seguindo a proposta de acompanhar a rica e fértil produção local. Desta vez contamos com texto do jornalista Marcelo Argôlo.
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Por Marcelo Argôlo*
Quatro artistas dividem um apartamento em São Paulo. Começa a pandemia, a quarentena e o isolamento. O grupo, então, busca modos de manter o equilíbrio, como todos nós, e começa a produzir separadamente e em colaboração. Foi no meio desse movimento dentro de casa que o instrumentista e compositor baiano Ian Cardoso entendeu que estava no processo de gravação de ‘Devoto Franco’, seu primeiro álbum solo lançado em 23 de outubro nas plataformas de streaming. E, claro, as suas companheiras de apartamento Aline Falcão, Camila Costa e Neila Kadhí também entraram na onda. Além delas, o disco traz as participações de Ícaro Sá e Manuela Rodrigues, gravadas remotamente.
Todo feito em casa em um projeto de quarentena, como o próprio Ian define o trabalho, ele traz canções intimistas nas quais o artista se debruça sobre si. É possível perceber um reflexo do contexto que vivemos, pois estamos mais expostos a nós mesmos e, na falta das aglomerações que nos ajudam a fugir das nossas individualidades, temos que encarar nossas questões. O álbum foi a forma que o artista encontrou para passar pelo momento e responder a necessidade de reinvenção que a pandemia trouxe.
“Devoto Franco” foi escolhida como faixa-título do trabalho durante o processo de gravação, depois que o artista percebeu que seria um disco com canções introspectivas. “Eu estou falando de processos pessoais, mas que, claro, se refletem em toda uma realidade e aspectos sociais. Esse devoto é a pessoa que está ali disponível para escutar a si e a franqueza vem da sinceridade que se busca ao fazer isso”, reflete Ian.
“O projeto surgiu mais como uma necessidade de escoamento”, explica. Com o cancelamento dos shows, gravar um disco virou uma possibilidade de se manter produtivo. “Nem era só a pela fonte de renda, era também a questão do trabalho em todo o seu espectro, que contempla também a realização pessoal”, afirma. A construção do álbum, depois da produção em casa, passou pela mobilização de fãs numa campanha de financiamento coletivo, que alcançou a meta completa e possibilitou, além do lançamento do disco, a gravação de dois videoclipes: “Amassadinho” que saiu no final de setembro, e “Molhei Meu Pé“, que chega em breve, mas ainda sem data definida.
Em São Paulo desde 2018, Ian Cardoso traz no novo trabalho uma coleção de canções que perpassa diferentes momentos da sua trajetória, mas com atenção especial à sua vida atualmente. Das 8 faixas, o artista levou na bagagem para a cidade nova apenas a faixa-título, composta em 2011. Todas as outras surgiram por lá e “Amassadinho” e “Cantiga Dispersiva” foram feitas na quarentena já no processo de gravação.
Entre reza, blues, xote e samba-reggae, Ian Cardoso apresenta um disco carregado de poesia, uma marca da sua trajetória como compositor. Quem conheceu o trabalho do grupo Pirombeira, no qual o artista surgiu na cena musical de Salvador no início dos anos 2010, se lembra de versos carregados de significados como “memória triangular”, da canção “Instante Pra Se Lembrar”. O trabalho com as figuras de linguagem também é uma marca de Devoto Franco, em especial na faixa de abertura do álbum, “Cantiga Dispersiva”, que traz versos como “Pois pra que lado se expande o universo? / como notar a curva da palavra? / de onde vem o código e o consumo? / com quantos signos se faz uma viagem? / E, sendo assim, o zero é redondo / algum sentido pra entender polaridade”.
Ian Cardoso: entre a revelação e a coletividade em Devoto Franco
O tom de todo o disco é marcado por essa entrega, tanto na sonoridade, quanto nas letras. É uma característica delineada pelo conceito do trabalho, como afirma o artista: “Devoto Franco pedia uma revelação, não de mim pra fora, mas pra mim mesmo. Pedia esse lugar de disponibilidade pra que eu pudesse dar significado ao que eu estou precisando dizer. É como se pra este momento, pra estas músicas, só eu conseguiria tocar, cantar e fazer chegar como eu pensei. Pode ser que esse sentido já não seja tão pulsante em um outro projeto. Eu tenho um processo artístico fundado no pensamento de banda e acredito que várias mãos operando em torno de um produto é algo muito potente, porque amplia, diversifica, colore, traz uma série de coisa que o projeto pode pedir”.
Mesmo neste primeiro álbum solo, o trabalho teve um aspecto coletivo. Ian explica: “Quando eu olho pra Devoto Franco enxergo nele esse sentido coletivo, porque também não poderia ser viável sem as pessoas com quem eu compartilhava casa; não poderia ser viável sem o aceite de Olívia Pitô, que fez a identidade visual, e de Otávio Carvalho, que fez a mixagem e masterização. Com ambos eu já tinha trabalhado antes também. Ou seja, é como se fosse uma continuidade da linha de tudo que eu tava fazendo.”
Entre a banda de Salvador e o primeiro álbum solo, Ian teve algumas experiências, com destaque para a participação na banda do cantor e compositor baiano Ronei Jorge, com quem gravou o disco ‘Entrevista’, e a colaboração com a também cantora e compositora baiana Lívia Nery, no single “Vulcanidades”. Já na carreira solo, ele produziu o EP ‘Reina’, lançado em 2018 e que contou com a colaboração de Otávio, e o single “No Mar”, de 2019 que teve a arte da capa desenvolvida por Olívia.
As participações reforçam essa continuidade de trabalhos coletivos, mesmo em um projeto marcadamente mais individual. Ian conta com Aline Falcão no piano elétrico em “Efeito”; a percussão de Ícaro Sá, que gravou berimbau, balaio, ganzá, pandeiro, timbau, SPDS e surdo eletrônico na faixa “Presente Pra Mim”; Manuela Rodrigues, que fez as vozes incidentais de “Sou de Água“, uma parceria da dupla; e Neila Kadhí, que gravou as vozes e o coro de “Cantiga Dispersiva” e “Devoto Franco”, além do coro em “Viola Love“, uma parceria de Ian e Camila Costa.
Ouça o álbum “Devoto Franco” de Ian Cardoso:
* Marcelo Argôlo é jornalista, pesquisador e aspirante a crítico musical. Idealizador da Ando: movimento da música de Salvador, atualmente colabora para o S.O.M. e pesquisa o ativismo negro na atual cena de música pop de Salvador no Mestrado em Comunicação na UFRB.