
O cantor e compositor Giovani Cidreira mantém sua capacidade criativa e autoral mesmo como intérprete. Em seu novo álbum ‘Carnaval Eu Chego Lá’, ele faz uma releitura da obra do mestre Ederaldo Gentil.
Por Breno Bastos
Três anos depois de lançar Nebulosa Baby, um dos melhores álbuns brasileiros dos últimos tempos, Giovani Cidreira mais uma vez surpreende ao adotar um caminho inédito em seu último trabalho, assumindo pela primeira vez o papel de intérprete em Carnaval Eu Chego Lá, disco que homenageia um dos principais sambistas da Bahia, Ederaldo Gentil.
Sendo um artista cuja marca autoral se destaca enquanto cantor e compositor, Cidreira não deixa de lado essa característica ao mergulhar na obra de outro criador, mas justamente aposta nela para abrir caminhos sonoros e explorar o potencial inventivo das músicas escolhidas.
Ao longo de onze faixas, os sambas de Ederaldo são reapresentados em arranjos que passeiam pelo amplo espectro musical que engloba sua carreira. Ancoradas no universo do samba e da MPB, as versões incorporam traços de gêneros como pop, rap e rock em torno da voz e do violão, incrementados por sopros e pelo movimento das linhas de baixo e da percussividade afro-baiana.
É o caso de “Feira do Rolo”, primeiro single do projeto e faixa que abre o disco. Lançada pela primeira vez por Alcione em 1977, a música ganha roupagem contemporânea e versos do rapper VANDAL, que se somam à ambiência urbana de um cenário de feira remetido pela inserção ritmada de ruídos de moedas, buzinas, vidros e metais.
Recorrente em outras faixas, essa abordagem de apostar em uma linguagem contemporânea para os arranjos parece frisar a atualidade do cancioneiro de Ederaldo, posto em diálogo com as demais referências de Giovani, que cita nomes como Paulinho da Viola, Los Hermanos e Pharrell Williams enquanto influências diretas do trabalho.
Na sequência de “Feira do Rolo”, “Baticum” por sua vez destaca a ancestralidade de ambos os artistas apontando para as origens do samba – e da música popular em geral – nas religiões de matriz africana. Também sustentada pelas percussões, a versão de “Ternos da Lapinha” ambienta a marcha de Ederaldo nas festas de largo de Salvador, entre os sopros das charangas e as levadas da Timbalada, no lado mais festivo do disco.
Com um tom mais direto de crítica social, “Identidade” se vale dos números de identificação do RG e das siglas de programas e benefícios sociais para criticar a distância entre promessas e realidade no cotidiano dos trabalhadores brasileiros. A força da letra é ressaltada pelo andamento lento e pela dramaticidade da voz de Giovani, que culminam com a explosão sonora do final da faixa lembrando “Construção”, de Chico Buarque, outro clássico de contestação política da música brasileira.
Já destacando o canto e o violão de Cidreira, faixas como “Provinciano”, “Rose” e “A Saudade Me Mata” se encaixariam sem problemas em seu próprio arsenal de composições, com o lirismo melancólico e as letras densas que marcam tanto sua poética quanto a de Ederaldo. Nesses momentos, percebe-se não só a razão para a escolha de homenagear o sambista no trabalho, mas também a medida em que sua obra foi responsável por informar a própria criação autoral de Giovani.
Além da relação entre as obras de Cidreira e Ederaldo, outro aspecto valioso do álbum é a participação de convidados especiais. Junto a VANDAL, que oferece suas rimas a “Feira do Rolo”, Céu e Alice e Danilo Caymmi somam suas vozes às versões de “O Samba e Você” e “Rose”, respectivamente. A parceira Josyara, com quem lançou o álbum “Estreite” em 2020, ficou responsável pelo ótimo arranjo de “O Rei”, primeira música de Ederaldo ouvida por Giovani ainda na adolescência.
O aspecto coletivo da criação de “Carnaval Eu Chego Lá” é delineado na faixa “O Ouro e a Madeira”, que abre com uma fala de agradecimento mencionando os amigos e colaboradores envolvidos na realização do trabalho, a exemplo de Renata Gatha, produtora e idealizadora do projeto, e dos produtores musicais Filipe Castro (colaborador desde os tempos da banda de rock Velotroz) e Mahal Pita (com quem Giovani lançou o EP MANO*MAGO, de 2020).
Principal sucesso de Ederaldo, a canção já havia ganhado versões de Beth Carvalho, Timbalada e Zé Manoel, além de recentemente ter ressurgido como sample na faixa “auri sacra fames”, do disco Roteiro pra Aïnouz (vol. 2), do rapper cearense Don L. Com a adição do coro das cantoras Maria das Graças, Dulce Monteiro e Graça Reis, a versão de Giovani se destaca como uma das melhores do disco, e é também nela que notamos de forma explícita o sentido de continuidade do álbum com seus projetos anteriores.
No que pese as diferenças na sonoridade dos dois trabalhos, com maior abertura a um universo orgânico, solar e festivo em Carnaval Eu Chego Lá, é interessante observar que, enquanto Giovani definia Nebulosa Baby como “um retorno à ancestralidade por vias afrofuturistas”, no texto de agradecimento que abre “O Ouro e a Madeira”, suas releituras de Ederaldo são apresentadas como “uma carta do futuro”.
As canções por si só dão conta de estabelecer relações entre os diferentes caminhos explorados ao longo da discografia de Giovani, mas a reiteração desse posicionamento estético é indicativa da continuidade de um discurso e musicalidade que se desenrolam em sua obra, no caso de seus últimos álbuns tomando a questão da ancestralidade e da negritude cada vez mais como temas centrais.
Seis anos depois do músico Luisão Pereira homenagear Ederaldo Gentil com o relançamento de seus discos, a criação de um acervo online e um tributo no Teatro Castro Alves reunindo nomes como BaianaSystem, Larissa Luz, Josyara e Zé Manoel, Carnaval Eu chego Lá é uma feliz contribuição que ressalta a atualidade de sua obra. Saindo poucos meses antes de Onde Eu Cheguei, Está Chegado, álbum póstumo em homenagem a Riachão lançado no começo de 2025, o disco se soma a outras iniciativas que não só afirmam a grandeza dos mestres do samba da Bahia, como sua importância para toda a música do estado.
