Pernambucano de Petrolina, Zé Manoel carrega em seu nome simples a beleza, riqueza e delicadeza de uma música brasileira de acentuada influência afro. Pianista, cantor e compositor do mais alto nível, ele acaba de lançar ‘Do Meu Coração’, um álbum que segue a sonoridade sofisticada que vem engendrando desde o início da carreira. Lançado pela Joia Moderna, com produção do baiano Luisão Pereira, o álbum conceitual fala de raça, violência, dor e política, mas também de amor e cura. A pedido do el Cabong, Zé Manoel comentou cada uma das faixas dessa que é mais uma obra prima feita por ele.
Veja também:
– Luedji Luna, Africania, muito rap e outras novidades em leva de clipes baianos.
Faixa a faixa
História Antiga
“A primeira faixa foi o primeiro single lançado do disco, lançado logo no início da pandemia. Acho que nos dois primeiros meses da pandemia, em junho. O disco tem uma narrativa que começa com “História Antiga”, exatamente porque o refrão fala de um passado recente. A música é ambientada no 2019, mas que representa todo em qualquer ano desde a chegada do povo preto nas Américas até agora, 2020, nesse momento. Fala exatamente sobre essa história que se repete desde sempre, de violência e de tentativa de apagamento da história e do próprio povo preto. Ela se refere tanto a 2019 como um passado recente, como presente e como um passado longínquo. Como todas aquelas coisas muito antigas que a gente ouve incrédulo, de coisas que aconteciam de todas as violências contra o povo preto e que continuam acontecendo da mesma forma, ou em alguns casos de forma maquiada, um pouco mais sutil, mas continua acontecendo as mesmas violências. A narrativa do disco começa aí. Apesar de triste, a música termina com a perspectiva de renascimento, fruto da luta desses povos, abrindo os caminhos para um futuro próximo, que já está sendo construído.”
No Rio das Lembranças
“Essa faixa tem a participação do grupo Bongar, que já tinha contribuído em meu primeiro disco na música “Sol das Lavadeiras”. É um grupo de Olinda, eles são do terreiro da Xambá, um grupo de pesquisa de música. Eles são maravilhosos, incríveis. Eu não sei o quanto na Bahia se conhece, mas eles têm um bom público, no Rio, em São Paulo. Aqui em Recife, todo mundo é louco por eles. Eles são muito incríveis. Eu estava com muita vontade de tê-los nesse disco e eles vieram através dessa faixa que é uma história antiga. É uma parceria minha com Guitinho da Xambá, cantor e idealizador do grupo. A música fala sobre todo esse histórico de violência, mas termina com a perspectiva de um lugar melhor. De futuro. E é um futuro próximo, um futuro que já está sendo construído. “No Rio das Lembranças” leva a gente a visitar nossa ancestralidade a partir da figura das nossas mães e das suas histórias, dos seus medos, de tudo que personifica a figura materna e também o lance da gente herdar esse medos, anseios e toda essa história das nossas famílias e dos nossos antepassados. Na verdade, já é um movimento meio que de cura dessa história antiga e procurar essa raiz da história que nos foi negada. O disco tem esse intuito, sem muita pretensão, obviamente, mas eu busco contar através da música, um pouco, um pedacinho dessa história, que é uma história que a gente está em busca. Está todo mundo tentando contar, pesquisadores, professores, influencers, músicos, bailarinos, enfim, está todo mundo tentando juntar esses cacos do que foi quebrado, do que nos foi negado e a minha contribuição é através da música. Essa faixa simboliza essa busca da ancestralidade dessa história, do lugar, de uma lembrança de um lugar que a gente não conheceu. A música fala sobre isso. Simboliza tanto as lembranças, as histórias das nossas mães e dos nossos antepassados, mas também da África, daquele lugar que a gente sonha, que a gente sente saudade, mas que a gente não conheceu.”
Escuta Beatriz Nascimento
“Aí vem “Escuta Beatriz Nascimento”, que é exatamente trazendo um pouco de contexto histórico para ambientar essa busca. Então vem Beatriz Nascimento (N.E.: Maria Beatriz Nascimento, professora e historiadora sergipana e ativista nos anos 1970, morta precocemente) com uma fala linda que eu já tinha visto no documentário ‘O Negro da Senzala ao Soul’, que é muito foda e tem essa fala dela contundente. Me chamou muita atenção porque ela fala algo muito importante, contundente, mas com uma voz de um jeito muito amoroso. Ela personifica essa figura da mãe, da mãe sábia que está trazendo uma mensagem importante de ser ouvida e simboliza também uma fala importante sobre a essa tentativa, essa negação que a gente teve da história. Ela é tudo, tá tudo interligado e a gente vai desvendando isso.”
Notre Histoire
“Esta é uma faixa em parceria com Stephane San Juan. Ele fez especialmente pra eu cantar. Ele é filho de argelinos, de argelino com a mãe francesa, se eu não me engano. Ele é francês, baterista, toca no disco, é parceiro de longa data. Stephane fala exatamente assim, quem são os meus ancestrais? Quem são esses familiares, esses primos e parentes africanos que eu não conheci? Onde eles estão? Africanos do leste, do oeste, de onde eles vêm? Essa pergunta que a gente se faz? Que toda pessoa preta e mestiça brasileira se faz. A gente não tem esse histórico, como muitas famílias brancas tem, de saber que o avô, o bisavô, veio de tal país. A gente não teve essa oportunidade de saber. A música fala sobre isso, a letra fala sobre isso e no final eu canto em português, precisamos contar nossa história. Ela segue a narrativa de Beatriz Nascimento.”
Não Negue Ternura
“A quinta faixa fala sobre amor preto e sobre aceitação. Faixa com Luedji Luna, foi escrita com Luedji. A gente escreveu a música em São Paulo, quando eu participei do primeiro show dela no Auditório Ibirapuera. Foi um show bem importante pra ela. Luedji estava despontando. Ela e Cissa Pereira, que era produtora dela na época, bancaram esse show, sabendo que ia dar muito certo e deu muito certo. Foi uma noite muito incrível, casa cheia, os ingressos venderam muito rapidamente. Ela não estava no auge que ela está hoje ainda, mas já apontava pra isso e elas queriam saber qual era o tamanho daquilo que estava acontecendo. E a resposta foi essa: uma casa cheia, incrível e eu fiz uma participação nesse show. Foi um show lindo e a música foi composta na passagem de som. É uma música que fala sobre amor preto e sobre aceitação. “Não Negue Ternura”, o nome da música. A faixa é bem especial.”
Prelúdio pra Iluminar o Rolê
“Depois vem “Prelúdio pra Iluminar o Rolê”, que é uma poesia de Bell Puã. Ela é uma pernambucana, historiadora, poetisa, atriz, uma figura incrível, maravilhosa. Ela foi uma das vencedoras do Slam das Minas há uns três anos e representou o Brasil na França. Tem uns vídeos com a poesia que ela ganhou no Slam, que é muito foda. É outra coisa do disco, que é trazer presente, passado e futuro. O passado através da fala de Beatriz Nascimento, o presente através do disco em si e das falas de todo mundo e Bel representa um pouco esse futuro, que é de uma geração mais jovem e muito foda. Uma geração que já vem com entendimento muito mais abrangente de tudo, coisas que na minha época, imagina, a minha geração teve que construir tudo muito aos pouquinhos. Ela fez e recita essa poesia linda baseada na música seguinte, que trata do mesmo assunto.”
Pra Iluminar o Rolê
“Essa trata desse cuidado, esse medo que a gente tem com as pessoas que a gente ama e que tem suas vulnerabilidades. Pessoas pretas, pessoas LGBTQI, mulheres. No país violento que a gente vive todo mundo convive muito com isso, mas nesses grupos, um pouco mais vulneráveis, essas violências causam muito preocupações a suas famílias e as pessoas que as amam. É um medo muito recorrente de pessoas que se relacionam com pessoas pretas, vide as estatísticas e os jornais pra gente saber que são as mais atingidas. A quantidade de pessoas pretas que morrem de forma violenta no Brasil é muito grande, de jovens pretos, principalmente. A música que fala sobre esse tema. É uma música leve, que trata do amor de uma forma leve, mas está falando sobre um pouco sobre esse receio, sobre esse medo, dos rolês, que essa galera jovem. Principalmente o jovem e a jovem preta, e o LGBTQI, e as mulheres, que causam essa preocupação quando tão dando seus rolês e a música fala sobre isso, “Que Deus proteja o seu rolê”. Você dá liberdade a pessoa, não vai prendê-la, apesar daquela vontade de manter a pessoa sobre os seus cuidados, mas ninguém pode prender ninguém e aí a gente joga aquele pedido pro universo que proteja aquela pessoa enquanto está dando rolê dela. É um pedido de proteção a nossos amores, para que “as ruas tão escuras” não enxerguem suas vulnerabilidades e que retornem vivos e seguros ou vivas e seguras pra casa. O arranjo remonta à sonoridade das canções do grande compositor pernambucano Paulo Diniz.”
Wake My Divine
“Este oitava faixa tem a participação de Gabriela Riley, Gabriela é americana, filha de mãe brasileira e a gente já fez algumas colaborações juntos, coisas que não foram lançadas, que vão sair ainda. Ela tem um disco lindo, produzido por Stephane San Juan. Ela morou no Rio muito tempo, a gente se conheceu no Brasil e ela voltou pros Estados Unidos agora, gravou de lá e mandou a gravação. É uma parceria minha com Gabriela, música minha e letra dela, tem a participação de Letieres Leite também, na flauta, e é uma música que remete às canções de amor pretas da década de 1970 americana. É outra coisa do disco que eu tento contar essa história através também das várias referências de músicas pra todo mundo, a música brasileira, sobretudo, mas assim, tem essa representação da música preta da década de 1970, que eu amo e que todo mundo ama. Canções de amor, enfim. Ela tem essa esse viés de mostrar um pouco essa influência da música preta americana na música brasileira e na música do mundo.”
Canto pra Subir
“A música número nove, “Canto pra subir” é uma canção inspirada naquela frase de uma música que ficou muito conhecida na voz de Nina Simone, mas que depois eu descobri que, na verdade, é de Charles Aznavour (N.E.: cantor e compositor francês). A frase literal não é essa, mas é mais ou menos assim: “você precisa aprender a se levantar da mesa quando o amor não estiver mais sendo servido”. E a música fala sobre isso. O “Canto pra Subir” é sobre o momento que você percebe que não tem mais amor e que você decide sair daquilo e faz um canto pra subir, pra se encantar, vai deixar aquela relação, aquela coisa num lugar especial guardado e não vai deixar que aquilo se degrade. Vai sair num momento certo. “Canto pra Subir” é uma despedida de um lugar onde não tem mais amor e onde você não deve estar mais ali e percebeu que está na hora de seguir em frente. É também uma homenagem às canções populares, com motivos eruditos, cantados pelo saudoso grupo Cantores de Ébano. O arranjo é do bandolinista e arranjador pernambucano Rafael Marques e executado pelo multiinstrumentista pernambucano Alexandre Rodrigues.”
Escuta Letieres Leite
“Logo em seguida vem “Escuta Letieres Leite”. A gente pegou um áudio de uma conversa minha com Letieres no whats app, onde ele fala umas coisas muito legais e muito importantes de história da música brasileira. Que ele fala que toda música brasileira é afro-brasileira. Inclusive é engraçado porque isso é o título da entrevista que saiu no el Cabong (leia aqui), que é exatamente essa e é a primeira frase que ele fala nesse áudio. Que é um áudio que ele mandou despretensiosamente falando sobre isso. Ele fala sobre a raiz da música sertaneja, sertaneja de feita no sertão, do baião, da música de Luiz Gonzaga, de Jackson do Pandeiro, levando até a bossa nova feita em Copacabana. Ele fala que toda raiz dessa música é afro-brasileira e é muito foda isso, porque tem músicas que a gente se convencionou a não falar sobre e fica o dito pelo não dito. E o dito pelo não dito no Brasil é que é de autoria da cultura branca. Ele vem botando os pingos nos is, é muito importante exatamente porque eu estou no disco justamente tentando reconstruir essa narrativa. Como eu falei, obviamente, acrescentando aí um pequeno estrofe nessa história que está sendo construído por muitas mãos, por pessoas que estão estudando e fazendo arte para dar visibilidade a essa história que está sendo construída.”
Adupé Obaluaê
“E o disco finaliza com “Adupé Obaluaê”, que é um canto de cura. Exatamente finalizando esse processo do disco que começa ali com a dor e termina com a cura. Essa música simboliza muitas coisas no disco. Ao mesmo tempo que é esse canto de cura, pra todos esses traumas e todas essas feridas das pessoas pretas e indígenas que vivem num país racista e violento como o nosso, é também um canto de cura também pra gente que está passando por uma pandemia. A letra da música foi feita durante a pandemia. Eu sonhei com esse refrão, se eu não me engano no final do ano passado ou início desse ano, “Adupé Obaluaê”, que é “obrigado Obaluaê” (N.E.: Orixá da saúde e da cura). Ela simboliza muita coisa. Foi um refrão e uma música muito importante no processo de feitura do disco, porque foi ao mesmo tempo em que Luisão (N.E.: Luisão Pereira, produtor do disco) também estava fazendo o processo de tratamento dele do câncer e a música sinalizava que tudo ia dar certo. Era ao mesmo tempo um pedido de cura e um agradecimento por algo que já deu certo. Como vem dando certo. Ele vem se recuperando muito bem, graças a Deus, e a gente voltou a trabalhar no disco logo que ele voltou pra casa. Foi um processo muito difícil pra ele, eu acompanhei mais ou menos de perto, porque tinha o distanciamento, eu morando em São Paulo, ele em Salvador, mas eu estava sempre ali presente. Acompanhei esse período muito difícil da vida dele e a música esteve ali presente durante todo esse processo. É uma música um pouco encantada pra gente, mais por isso e ainda porque foi uma música que surgiu no sonho. Está lá como minha autoria, mas na verdade meio que veio do Encantado. Ela foi lançada como single, com clipe de Gil Alves, um multiartista baiano que fez lindamente um vídeo dança, com direção também de Wendel Assis. Gil é um cara incrível da Bahia, que já está envolvido com coisas legais e muito importantes, mas eu espero que cada vez mais o Brasil se abra para pessoas pretas incríveis como ele. Salvador está exportando muito, o tempo todo gente incrível, fazendo coisas incríveis, e que o Brasil, esse país racista que a gente vive, se abra pra receber melhor as pessoas e dar mais espaço e mais visibilidade pra o que essas pessoas tão produzindo.