Atualmente, boa parte da população utiliza alguma plataforma de streaming para ouvir música. Mas quase ninguém parou para pensar como e quanto os artistas ganham desses serviços. O músico e pesquisador Pedro Filho mergulhou no tema e mostra como para bandas e artistas o negócio não fecha.
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Por Pedro Filho Amorim*
Hoje uma pessoa conhecida minha, inteligente, politizada, alguém que eu realmente respeito, compartilhou o link do seu primeiro podcast. Eu queria muito escutar, mas não posso, porque o podcast está hospedado no Spotify (de agora em diante referido como “essa plataforma”, para evitar alimentar as menções: parece mesquinharia mas o negócio é sério, se liguem…).
Desde que eu ouvi falar dessa plataforma eu jamais quis ter uma conta lá, por uma série de motivos, alguns pessoais, como por exemplo meu gosto por músicas raras e estranhas que muitas vezes não vão ser encontradas lá, e outros mais importantes e mais graves, como o fato de essa plataforma ser um dos maiores currais de extrativismo artístico existentes no momento.
Isso não é drama (mimimi, como adoram dizer) e, se você que está lendo isso é usuário frequente da plataforma, não se sinta acuado por mais um argumento moralista de internet: esse texto não pretende botar a culpa na vítima e nem “cancelar” os usuários da plataforma. Apenas, como músico, eu me sinto quase que na obrigação de tocar em alguns pontos que precisam pelo menos estar explícitos para quem utiliza o serviço, seja como ouvinte ou como gerador de conteúdo.
“O valor pago pela plataforma por cada visualização é absurdamente baixo: 0,0032 dólares por visualização. Sim, uma fração de um centavo de dólar. Uma faixa visualizada 1000 vezes renderá a fortuna de US$ 3,20 (R$ 17,21, em agosto de 2020)”
Pra começar, a política de remuneração de artistas da plataforma se assemelha muito a uma prática que muitos músicos conhecem bem: em vez de pagar o justo, oferecem “visibilidade”. Muitas pessoas, de fato, hospedam seus conteúdos na plataforma por causa da imensa comunidade de usuários, o que é um grande dilema que nos acompanha na relação com qualquer mega empresa, como Amazon e Facebook, por exemplo: o alcance dessas empresas é resultado de um marketing potente, o que faz com que cada vez mais pessoas “precisem” estar conectadas para serem vistas. É compreensível, então, que a maioria dos músicos profissionais ou aspirantes (sobretudo artistas que pretendem alcançar alguma popularidade) sequer questione se deve ou não colocar seus trabalhos na plataforma.
Em cifras, o valor pago pela plataforma por cada visualização é absurdamente baixo: 0,0032 dólares por visualização. Sim, uma fração de um centavo de dólar. Uma faixa visualizada 1000 vezes renderá a fortuna de US$ 3,20 (R$ 17,21, em agosto de 2020). Só pra ter uma ideia, os artistas mais tocados na plataforma (em dados atuais) têm cerca de 60 milhões de visualizações mensais, o que daria, para esses artistas, um total de 192 mil dólares. Nada mal, né? Mas QUEM consegue ter essa quantidade de visualizações?
Pesquisando um pouco sobre a performance financeira da plataforma, descobri que (para os padrões monstruosos dos gigantes do mercado, entenda-se) ela não vinha sendo muito lucrativa até recentemente, mas algumas inovações — uma das quais seria uma negociação para pagar royalties mais baixos e diminuir o pagamento por faixa visualizada — fizeram com que no último ano a empresa tivesse um lucro operacional de cerca de 60,4 milhões de dólares (trinta vezes maior do que a previsão da própria empresa). Não sou especialista (longe de mim!) nesses assuntos financeiros, mas é muito importante entender que essas flutuações não são comparáveis àquele dinheirinho que você junta pra comprar um computador novo: o valor avaliado da empresa no fim do ano passado era de cerca de 40 BILHÕES de dólares.
Recentemente o CEO dessa plataforma, Daniel Ek, considerado o “nome mais poderoso do mundo da música”, com patrimônio avaliado em 1,6 bilhões de dólares (e, sim: esse excesso de números têm a intenção de ser obsceno), fez uma declaração polêmica respondendo às reclamações de músicos sobre os preços ínfimos pagos pela empresa. Segundo ele haveria “uma falácia narrativa[…], combinada com o fato de que, obviamente, alguns artistas que costumavam se sair bem no passado podem não se sair bem nesta paisagem futura, onde você não pode gravar música uma vez a cada três ou quatro anos e pensar que isso vai ser suficiente”. Na mesma entrevista também é mencionado o papel dos podcasts no aumento do valor de mercado da empresa no último ano, saindo de 29 bilhões no início de 2020, para 50 bilhões no momento da publicação (30 de julho de 2020).
Muitos músicos reagiram às declarações de Ek e, mesmo antes dessa polêmica, artistas famosa(o)s já vinham tretando com as políticas do “explorifai” (vou usar agora esse apelido, pra diminuir o eufemismo) como Taylor Swift, que retirou todo seu catálogo de lá e Björk, que anunciou que seu próximo álbum não seria lançado na plataforma. Agora, vejamos: se não é bom negócio pra artistas com carreiras consolidadas e muito alcance mundial disponibilizar sua obra nessa plataforma, pra quem seria? Adivinhou, né?
Mas, então, qual é a alternativa? Vender fita cassete de mão em mão? (bons tempos, mas isso é outro papo…). Na verdade, a ideia de que é inevitável se render a essa plataforma é fatalista e ingênua, pra dizer o mínimo. Pra começar, o explorifai (espero que esse nome pegue) é a maior e mais lucrativa das plataformas de streaming, mas não é a única, vide o Deezer que segue sendo a segunda em mau pagamento para artistas (US$ 0,00436, segundo dados recentes), fora outras gigantes como Apple Music e Google Play. É evidente que essas gigantes vão ser imbatíveis no quesito “visibilidade” e qualquer artista com uma carreira razoavelmente estruturada considera necessário subir sua obra “nas plataformas”, como já se diz genericamente. Mesmo artistas que, pelos motivos aqui expostos, tenham angústias em relação a isso, podem se sentir num dilema entre disponibilizar sua obra nessas plataformas ou ser inexistente para um mundo de usuários que quase só acessa música nesses canais.
No fim, essa problemática redunda, como muitas outras, num problema de criação de cultura. Não é nada absurdo entender porque as pessoas consomem conteúdos artísticos e culturais de gigantes empresariais predadores, afinal, todo o investimento desses gigantes é em estratégias de marketing para capturar esse público, ou melhor: todos os públicos. Mas num momento histórico em que é frequente o questionamento de posturas politicamente nocivas, em diversos setores da sociedade (e especificamente na minha bolha, formada por pessoas do meio das artes e muitas atuantes no meio acadêmico, que prezam por sua sensibilidade e senso crítico) é impressionante que um tópico como esse siga sendo relativamente invisível, ou melhor, inaudível.
Há sim alternativas para os artistas, e o melhor exemplo é o Bandcamp. Numa comparação com a nossa malvada favorita (estou diversificando os eufemismos e consegui até agora mencionar o nome da dita só UMA vez), o Bandcamp apresenta algumas vantagens para produtores de conteúdo, como por exemplo a possibilidade de determinar seu próprio preço por streaming (ou disponibilizar gratuitamente, se quiser) e ser remunerado de forma proporcionalmente justa por isso. No próprio site do Bandcamp a política de preços está explicada dessa forma: “As contas dos artistas são gratuitas. Ganhamos dinheiro através de nossa participação nas vendas, que é de 15% para o digital, 10% para comércio [de produtos como camisetas, etc]. Também oferecemos o Bandcamp Pro (nosso nível premium para artistas), e o Bandcamp para Selos, ambos por uma taxa mensal”. Uma outra vantagem, que serve de incentivo para a carreira de muitos artistas, é que, ainda segundo informações do Bandcamp, “a participação na receita digital cai de 15% para 10% assim que você atinge US$ 5.000 em vendas (e permanece lá, desde que você tenha feito pelo menos US$ 5.000 nos últimos 12 meses)”.
Há quem diga que o Bandcamp é uma plataforma apenas para músicos “alternativos” e muitos usuários vão reclamar de não conseguir achar seus artistas favoritos como, sei lá, Beyoncé ou Chico Buarque ou muitos outros. Isso é parcialmente verdade (os discos de Björk, já citada aqui, por exemplo, estão no Bandcamp) mas isso também reflete uma cultura de consumo. Não se trata aqui de fazer um merchandising gratuito (quem dera fosse pago, não é minha filha?) e sim de demonstrar que é possível sim publicar conteúdo musical e ser tratado com dignidade por uma plataforma relativamente grande (na página inicial do Bandcamp, hoje, enquanto escrevo este texto, está estampada a informação: “Os fãs pagaram aos artistas $562 milhões usando Bandcamp, e $15,7 milhões só nos últimos 30 dias”). Para além disso, muitos músicos vivem sem depender dessa renda, mas no momento de animação suspensa da pandemia, ela pode fazer muita diferença.
Por fim, há inúmeros canais de hospedagem de conteúdo na internet que são gratuitos (até certo ponto, com possibilidade de upgrades pagos) e relativamente bem conhecidos para quem esteja iniciando uma carreira de músico ou autor de podcast ou qualquer conteúdo sonoro. Entre os mais conhecidos estão o Soundcloud e o Mixcloud, mas há muitos outros. Meu incômodo com o Spotify (pra não deixar dúvida no fim, chamei pelo nome!) se intensificou depois de ver como pensa o mangangão-mor da companhia e de ter noção mais real do nível de exploração.
“Há inúmeros canais de hospedagem de conteúdo na internet que são gratuitos (até certo ponto, com possibilidade de upgrades pagos) e relativamente bem conhecidos para quem esteja iniciando uma carreira de músico ou autor de podcast ou qualquer conteúdo sonoro.”
Fica aqui a dica e o apelo a quem tenha lido até aqui: que tentem diversificar suas perspectivas, tanto para conhecer músicas diferentes (os catálogos do Bandcamp, do Soundcloud, do Mixcloud, pra ficar nesses, são imensos e eu já encontrei coisas incríveis lá) quanto para ajudar a realmente valorizar o trabalho de artistas e produtores de conteúdo em áudio que, como eu, se recusem a trabalhar nas fazendas de streaming do explorifai e similares. Vejam bem: não estou dizendo que cancelem suas contas lá (artistas ou ouvintes) para ter a consciência limpa; eu não acho válidos esses argumentos culpabilizantes porque sei que a vida não tá fácil e tudo que a pessoa quer às vezes é ouvir aquela playlist com as melhores do pagode romântico dos anos 90, que já tá salva e o algoritmo ainda sugere outras e porque sabemos que essa demanda é fisgada pelo marketing das empresas. Claro! Mas se quiser também dar um rolé por ambientes diferentes, vale a pena em vários sentidos e ajuda a diminuir essa lógica de exploração que, pra alguns de nós que trabalhamos com isso, é realmente nociva e deprimente.
* Pedro Filho Amorim é músico, pesquisador e integrante do grupo Funfun Dúdú.
Texto publicado originalmente aqui