Extremamente exposta, como se estivesse nua no enorme palco do TCA, Alice Caymmi segurou o show praticamente sozinha.
Tudo que se espera de uma cantora de MPB cunhada com o sobrenome Caymmi foi o que não foi visto na apresentação da neta caçula de Dorival no último sábado (2), no Teatro Castro Alves, em Salvador. Nada de banquinho, violão, tradição, doçura demais ou reverência ao passado. Com um vozeirão grave, ousadia e coragem em quebrar várias certezas de nossa música, Alice Caymmi fez um show que mirava o Brasil contemporâneo. Extremamente exposta, como se estivesse nua no enorme palco do TCA, segurou o show praticamente sozinha, com sua voz, performance, mudanças de figurino, modernas projeções audiovisuais e bases eletrônicas.
Com foco no segundo disco, “Rainha dos Raios”, a neta de Dorival fez a pré-estreia nacional do novo show, que tem direção, concepção e roteiro de Paulo Borges, homem do mundo da moda e criador da São Paulo Fashion Week (SPFW). Diferente do que vinha fazendo até então, Alice dispensou o suporte de uma banda, indo na contramão do que costumam fazer as cantoras brasileiras. Se o show não é radicalmente inovador, está muito à frente do que estamos acostumados a ver nos artistas brasileiros, especialmente na MPB. Não apenas por unir linguagens, mas por fazer um espetáculo de arte pop contemporânea de alto nível, que não só se articula com a música, mas ajuda a elevá-la a um outro patamar
Alice não é o padrão do que se espera de uma cantora de MPB: não tem a voz mais bonita, nem singela, o apuro técnico é questionável, e não se coloca como uma mulher intocável. Também não segue a lógica de um ícone pop habitual: não tem o corpo escultural, nem segue o padrão comum de beleza, não é uma grande dançarina e nem usa a sedução como arma. Assim mesmo, ela consegue vestir as duas facetas, se utilizando desses elementos com personalidade, se revelando uma intérprete de mão cheia e com maturidade, mesmo aos 25 anos, e uma estrela pop pronta, ousada, vibrante e irrequieta.
Um TCA lotado presenciou um verdadeiro desfile de multilinguagens, que mesclava música, moda, cinema, tecnologia e design, e resultava num espetáculo grandioso. No palco, o cenário se resumia a duas peças cenográficas, um cavalo de carrossel e um mastro de pole dance, e grandes telões de led, com as projeções criadas por Richard Luiz alternando belas imagens que dialogavam com cada uma das músicas. Bailarinos, inclusive dois convidados do Balé Folclórico da Bahia, apareciam em alguns momentos, como figurantes, dançarinos ou ajudantes nas cinco trocas de figurinos (feitos com exclusividade por Walério Araújo e João Pimenta).
Acompanhada na maioria do tempo apenas pelo músico/produtor Diogo Strausz, que soltava as bases e se revezava entre guitarra e baixo, Alice surgiu em meio a escuridão com um estranho vestido preto. Logo foi cercada de projeções que mostravam um céu povoado de relâmpagos, para abrir com ‘Iansã’, música de Caetano e Gil. Era a própria Rainha dos Raios.
Não é pouca coisa ousar levar ao palco uma música conhecida na voz de Maria Bethânia. A jovem filha de Danilo Caymmi demonstrava não se intimidar. Assim como no disco, a tônica do show era boa parte com esse mesmo enredo, versões de obras de compositores referência da música brasileira ou mesmo de cantoras ícones. De Caetano também apresentou ‘Jasper’ (parceria dele com Arto Lindsay e Peter Sheerer) e ‘Homem’. Deu também uma nova cara a um dos maiores sucessos de Maysa, ‘Meu Mundo Caiu’, e sua contribuição a linda ‘Sargaço Mar’, do avô Dorival Caymmi, pescada de seu primeiro disco. E se não se intimidou em cantar Maysa, Caetano e Caymmi, muito menos em inserir MC Marcinho nessa mistura, numa feliz recriação de ‘Princesa’, acompanhada por passos meio desengonçados, meio infantis. Ou mesmo em versões, uma apenas correta de ‘Paint It Black’, dos Rolling Stones, e outra mais vibrante de ‘Bang Bang (My Baby Shot Me Down)’, famosa com Nancy Sinatra e Cher.
Alguns dos melhores momentos do show, por incrível que pareça, foram das composições mais desconhecidas, seja, na certeira reinvenção de ‘Como Vês’, da banda Tono, que ganha outra força na voz de Alice, seja em ‘Sou Rebelde’ de Manuel Alejandro relido por Paulo Coelho, que se encaixou como luva no universo da cantora. Ou mesmo nas de autoria própria, ‘Antes de Tudo’, meio que uma ária de ópera, ou ‘Meu Recado’, feita em parceira com o rei dos hits Michael Sullivan, que mantém a sua famosa pegada brega.
Mesclar isso tudo com personalidade e manter uma unidade, aliado a todo impacto visual, já era um feito ousado o suficiente para incomodar quem esperava uma tradicional cantora de MPB, talvez como seu tio Dori, que assistia ao show da plateia. Alice revelou-se uma artista ainda mais surpreendente do que se imaginava. Totalmente à vontade em cima do palco, mesmo sem habilidade de bailarina, soltava seus passinhos, acariciava os dançarinos, cantava imóvel numa gaiola de néon, brincava com imagens do telão, circulava pelo imenso palco e cantava de forma brilhante. Parecia dominar tudo à sua volta e saber exatamente o que queria.
O show pecou no momento em que começou um tipo de cabaré francês e seguiu embalado numa sequência forçada de hits que caberiam em uma boate gay decadente. Com luzes coloridas, dançarinos como go-go boys e uma sonoridade meio house, Alice entoou o ‘I Feel Love’, hit de Donna Summer, com interferências de músicas como ‘Joga Fora no Lixo’, de Sandra de Sá. Mesmo que fosse mais uma provocação, não encaixou, o clima kitsch ganhou proporções exageradas e levou o show para um universo totalmente desconectado ao que vinha sendo apresentado. Soou forçado e só não pôs mais a perder, porque o show voltou à atmosfera inicial logo em seguida.
Alice é pop, moderna, não segue padrões e incomoda, andando na linha tênue entre a ousadia e o histriônico, entre a arte e a cafonice, encaixando a tradição das canções brasileiras com o pop e as modernidades tecnológicas. Como uma leoa numa jaula, pronta pra devorar o público à sua frente, andava de um lado pra outro, agressiva e cativante. Em uma entrevista antes do show dizia: “Vou aproveitar que estou em Salvador para falar a verdade. Aqui eu sei que vou ser entendida. Depois de gravar o CD ‘Rainha dos Raios’, descobri que Iansã tinha tomado minha cabeça. Fui numa mãe de santo que disse: ela está contigo”. Um daqueles shows que incomoda, que nos move das convicções, que provoca narizes torcidos e desconforto nas poltronas, que vai mexer com as certezas de muita gente, fazer muitos artistas repensarem seu modo de criação. E não é para isso que deve servir a arte?
Texto Luciano Matos
Fotos de Adenor Gondim (TCA – Divulgação)