Maior e mais importante festival independente brasileiro, o Abril Pro Rock tem uma de suas edições mais frágeis, com pouca presença de público e sem grandes shows.
por Luciano Matos*
Próximo de comemorar 1/4 de século, o já tradicional festival Abril Pro Rock deu mostras de cansaço em sua edição 2016, nos últimos dias 29 e 30 de maio, no Recife. Claramente, o festival está tentando encontrar um novo caminho e sair do formato que se encontra. A proposta deste ano, no entanto, não pareceu ser a melhor solução. Além do público não ter comparecido como se esperava em nenhum dos dois dias do evento, os shows foram aquém do que o APR apresentou em outros anos e do que já significou para a música brasileira. Ainda um dos principais festivais do país, o Abril Pro Rock mantém sua relevância, mas corre o risco de ficar preso em um formato que não tem funcionado mais.
Veja também:
– Maio da música: reabertura da Concha, Festival de Jazz e muitos shows em Salvador.
O festival tem pagado também o preço da escassez de grandes novidades na atual cena pernambucana. Embora possua grandes nomes lançando importantes discos, eles ainda se concentram na geração proveniente ou herdeira do Mangue Beat (Nação Zumbi, Otto, Siba, Karina Buhr, Eddie entre outros). A geração atual já apresentou vários nomes, mas nenhum ainda ganhou destaque junto a um público maior ou conseguiu emplacar grandes trabalhos. O festival sentiu a falta dessa renovação, com artistas mais consistentes. Entre as atrações pernambucanas na edição deste ano, nenhum dos nomes chamou muita atenção, apesar de alguns demonstrarem certo potencial. Algo que foge do alcance do evento, mas que o afeta diretamente.
Este ano, mais uma vez, o APR focou em dois dias de evento, com uma abertura simples com show do cearense Daniel Groove fechando uma série de apresentações prévias no chamado APR Club. Apenas munido de violão, com simpatia e uma voz em cima, mostrou-se um bom herdeiro e fiel seguidor da música romântica brasileira.
Depois de muitos anos, o APR teve a grade de um dos dias apenas com atrações inéditas no festival. Essa primeira noite também foi marcada pela volta da diversidade que chegou a ser uma marca do festival, com nenhum estilo ou ritmo prevalecendo. Uma interessante variedade de sonoridades em harmonia, indo do rock indie a ritmos mais tradicionais do Nordeste. Foi uma clara aposta na nova música brasileira contemporânea e também em outros públicos que tem ganhado espaço, seja o mais jovem que nem conhecia direito o festival e que tem acesso a seus ídolos pela internet, seja o LGBT. O reflexo era visível na diversidade de tipos vistos na plateia, mas foi incapaz de encher o Baile Perfumado. A casa, nova sede do festival (pelo menos no primeiro dia), foi um acerto, funcionando bem e dando uma dimensão mais real para o APR.
Na abertura, o jovem cantor Pierre Tenório, de Belo Jardim, no Sertão de Pernambuco, mostrou bom potencial, com um visual andrógino, discurso político e uma sonoridade baseada na música brasileira .Embora ainda tenha uma presença de palco limitada, conseguiu aproveitar bem o espaço que lhe foi dado. A Bandavoou, uma das novidades da capital Recife, mostrou referências diversas da música brasileira, indo desde o som dos mineiros do Clube da Esquina, passando por samba, pop, reggae, rock e ritmos nordestinos. Com dois vocalistas cantando juntos, teclado e sopros dando o clima, algumas músicas soando mais como poemas recitados com acompanhamento e o público cantando parte das músicas, a banda também mostrou mais potencial do que um resultado pronto. As composições são até interessantes, mas o grupo ainda não alcançou uma sonoridade própria, trafegando por vários caminhos e em busca de uma identidade.
Também vindo do interior do estado, o grupo Em Canto e Poesia, de São José do Egito, no Agreste, calcou seu show em um misto de sonoridades regionais nordestinas e poesia popular. Remeteu diretamente a Cordel do Fogo Encantado, sem a mesma sagacidade e potência. Das bandas locais foi a mais desenvolta no palco e com personalidade bem definida, e ritmos tradicionais a base de percussão dando o tom. Mesmo sendo a proposta do grupo, para um festival, as várias recitações poéticas pareceram exageradas, comprometendo o ritmo do show e a força de algumas composições.
A apresentação do cantor e compositor Graxa talvez tenha sido a que melhor tenha representado o momento da cena pernambucana. Tratado como um dos grandes nomes da atualidade, ele mostrou um show cansativo, sustentado por um rock desleixado, com guitarras sujas, carregado de ironia e de referências, mas que não se sustentou. Embora o show tenha tido momentos interessantes, como a versão para “Síndrome do Pânico”, da Júpiter Maçã, a banda ainda parece irregular demais para sustentar o título de nome da vez na música pernambucana.
E, se o festival apostou em novidades locais e preferiu não dar espaço para os velhos conhecidos, entre os convidados de fora do estado a aposta foi alternar nomes bastante desconhecidos e outros já consolidados da música brasileira. No primeiro time, o gaúcho Jéf fez um show sem brilho, com canções comuns de um pop rock corretinho e inofensivo que não conseguiram segurar o público. Do Paraná, Os Transtornados do Ritmo Antigo mostrou alguma criatividade com sua mistura de ritmos a base de violino, contrabaixo acústico, banjo, bandola portuguesa e trompete, mas não suficiente para marcar a noite.
A aposta do festival e esperança do público é que os três nomes de maior peso segurassem a noite e fizessem shows marcantes. Irregulares e sem apresentações incendiárias, nem Alice Caymmi, nem Filipe Catto e nem Tiê deram conta. Herdeira de um sobrenome de peso, Alice Caymmi tem pleno domínio de palco e muitas certezas no que faz. Talvez esteja justamente ai seu pecado. Enquanto apostou nas músicas de seu disco “Rainha dos Raios”, acertou no alvo, com interpretações acima da média e canções mais bem acabadas que funcionaram ao vivo. Porém, quando apostou em reinventar o óbvio, errou a mão, e o que é estilo e personalidade, se transforma em clichês.
“Joga Fora”, de Sandra de Sá, “Me Dê Motivo”, de Tim Maia, “Always on my Mind”, de Elvis Presley, ficaram completamente desconectadas do restante do show. Sem falar numa versão de “Black Dog”, do Led Zeppelin, que ficou ainda mais forçada com a cantora lendo a letra. Alice tem uma grande voz, sabe preencher muito bem os espaços, dançando, fazendo caras e bocas, se jogando no chão, trocando de roupa e não se furtando a encarar o público com sua personalidade. Durante todo o show, porém, Alice trafega em uma linha tênue entre a ousadia e o constrangimento, arriscando colocar tudo a perder a todo momento. Ela parece não se importar em pender pra um dos lados, segue sem abalar. Talvez falte uma direção artística que dê um rumo mais coeso ao show.
O gaúcho Filipe Catto mostrou que o novo formato de seu show, decorrente do disco “Tomada”, deu mais vida e punch para seu modo requintado de cantar. Mais encorpado com uma boa banda, o show funcionou e mostrou um cantor crescente, no palco, sabendo se aproveitar da voz e da performance. Enquanto uma enorme fila de fãs se formava para falar com Catto, a cantora Tiê embalava as últimas almas sobreviventes a oito horas de festival. Era pouco para uma música folk/mpb, sem momentos mais vibrantes, sustentar. Muito pouco para fechar um dia que já foi dos mais importantes da nova música brasileira contemporânea.
Noite de peso – No segundo dia, quando o festival recebe tradicionalmente as bandas de peso, a expectativa era de um público maior. Sem um nome forte inédito ou um daqueles artistas incontestáveis, o festival apostou na soma de várias atrações e na tradição. Não funcionou, o público foi baixo, o que ficou mais evidente no enorme espaço do Classic Hall, casa de shows que recebeu o segundo dia do festival e que comporta pelo menos 15 mil pessoas.
A programação costumava ser mais bem equilibrada entre bandas de heavy metal e suas diversas vertentes e artistas de punk e hardcore. Na edição deste ano, que aconteceu na casa de shows Classic Hall, o Metal foi muito mais forte e nomes como Questions e Sick Sick Siners acabaram meio deslocados em meio a cabeludos e camisas de Iron Maiden. A primeira, com um punk hardcore, discurso contra racismo e facismo e direito a cover do Sepultura. A segunda, com um psychobilly vigoroso, fizeram bons shows. O hardcore crossover pesado e certeiro Oitão detonou mais tarde gigantes rodas de pogo e contou com uma participação incendiadora e oportuna de Canibal, do Devotos.
Com a desistência das bandas norte-americanas Malevolent Creation e Warrel Dane, o festival parece ter perdido duas de suas principais apostas que uniriam relevância e novidades, o que provavelmente afetou a presença do público, que foi decepcionante. Restou a dois nomes de peso do heavy metal nacional segurar as pontas: no entanto, Viper e Korzus não fizeram mais do mostrar seu som pesado sem novidades. O substituto das duas bandas internacionais, o cantor Edu Falaschi (Almah; ex-Angra), também não foi além, se contentando em desfilar sucessos do gênero no show Metal Classics Tribute, com um repertório de músicas do Iron Maiden, Dio, Angra e outros clássicos.
Os gaúchos do Rebaelliun soltaram os demônios e seu Death Metal em sua volta aos palcos depois de quase 15 anos parados, enquanto os locais da Terra Prima mandaram um metal melódico com cara e trejeitos dos anos 80, com direito a afetação e pedestal com bandeiras do Brasil e Pernambuco.
Boa surpresa foi o show Metal Mania de Robertinho de Recife, baseado do disco de mesmo nome lançado há exatos de 30 anos. Veterano guitarrista da música brasileira, com vários sucessos bastante populares, o pernambucano mostrou seu lado virtuoso e pesado. Nessa volta, ele se cercou de uma banda jovem, com seu filho Rob Khalil no baixo e duas garotas, Isa Nielsen na guitarra e Jully Lee na bateria. Para completar convocou o vocalista da formação original, Lucky Leminski. Até mesmo versos bobos como “Bate o pé, bate a mão/ A cabeça e o coração” ou “Baby, o que eu quero é sofrer/ Gata, me arranhe” não destoavam de todo aquele mise-en-scène do metal e fez tudo ali funcionar como se fosse atual, e, melhor, muito divertido.
Enquanto rolava tudo isso, há alguns quilômetros dali, na Boa Viagem, acontecia um show com estrelas da música pop nacional homenageando o rock nacional. Patrocinado por uma marca de cosméticos, com grande público e com flashes ao vivo de emissoras de TVs locais, dava uma boa medida que o rock continua vivendo dias estranhos. E se um festival da magnitude e importância do APR não apresentar as novidades relevantes do gênero na cidade, poucos outras chances ele terá. O Abril Pro Rock encontrou uma encruzilhada. Cresceu muito, passou de seu ápice, apostou em vários formatos e vem tateando novos caminhos e meios de atrair público. Ao mesmo tempo que continua tendo a importância de lançar novidades e de ser uma resistência de uma cena que sempre se renovou, o festival precisa ser repensado para não se tornar apenas a lembrança de um evento que reuniu as melhores bandas e artistas do país em um mesmo palco.
* Luciano Matos viajou a convite da produção do festival