Em meio a transformações aceleradas no mercado, os pequenos e médios respondem por mais da metade das mais tocadas no Spotify
Por Luciano Matos – publicado originalmente na revista da UBC
Das 200 canções brasileiras mais tocadas em 2019 no Spotify, pouco mais de 53% são de gravadoras independentes, mostrou a pesquisa da ABMI (Associação Brasileira da Música Independente). O mercado musical vive transformações profundas, com uma clara democratização dos atores em cena: ao mesmo tempo em que as grandes majors se recuperam francamente do tombo dos anos 2000, pequenos e médios selos ganham importância sem precedentes.
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– Novos selos surgem vinculados a bandas, lojas e festivais.
É fato que muitos artistas passaram a trabalhar de forma mais independente ou com seus próprios selos. Parecia que pertencer a alguma gravadora, mesmo que pequena, ia perder sentido. Mas, em tempos de streaming, estar integrado a um selo voltou a ser fundamental?
Para Carlos Mills, presidente da ABMI (abmi.com.br) e fundador da Mills Records, os selos estão desempenhando um papel cada vez mais decisivo nos dias atuais. “Houve uma transformação intensa no cenário musical, mas o princípio permanece o mesmo: sem uma gestão estruturada e profissional, seja ela própria, independente ou de uma major, é impossível para qualquer artista gerir profissionalmente, desenvolver e consolidar a sua carreira.”
Mesmo a ABMI se mantendo com um número estável de 70 associados ao longo dos últimos anos, Millls acredita que estamos assistindo a uma explosão de selos, no Brasil e no mundo. A razão para isso é a própria natureza do trabalho desenvolvido por eles. “Ajudam a identificar artistas em seus nichos, a desenvolver carreiras, a produzir conteúdo, a distribuir de forma eficiente, a traçar estratégias, a aproximar artistas de marcas, a cuidar da imagem, a criar produtos. Enfim, os selos atuam numa infinidade de ações, são parceiros indispensáveis.”
Mauricio Tagliari, cantor, produtor e um dos proprietários da YBmusic (ybmusic.com.br), corrobora. “Claro que alguns artistas podem fazer tudo sozinhos, mas a pergunta não é se ele pode, e sim se deve. Qual a função do artista, afinal? Cuidar de burocracias, imagem, negócios, contratos, direitos, remunerações de terceiros? Ou criar? Há exceções, mas a maioria dos músicos nem sabe e nem quer saber desse emaranhado de obrigações”.
O produtor ressalta que artista maiores, com mais recursos, podem até prescindir de um selo e montar sua própria equipe. “Mas isso tem custo e não é baixo”. No caso do artista independente, ele acha que um selo é fundamental. “Muita gente enxerga o selo como um atravessador, eu enxergo como um facilitador, um prestador de serviços”.
REDES DE FESTIVAIS
Uma mostra de como os selos vêm crescendo no mercado brasileiro é que, paralelamente à ABMI, surgiu um outro grupo reunindo dezenas deles. A Rede Brasileira de Selos Independentes (RBSI) já contabiliza quase 100 iniciativas de Norte a Sul do país. São selos que lançam álbuns de artistas dos mais diversos segmentos musicais, a maioria trabalhando com o rock e seus subgêneros. Alguns têm coisa de cinco lançamentos; outros, anos de estrada e catálogos de mais de 400 álbuns.
É o caso da Monstro Discos (monstrodiscos.com.br), ativa desde 1998 em Goiânia. Eles já lançaram mais de 200 títulos, entre CDs, compactos em vinil, fitas K7, VHS, DVDs, além de livros, HQs e álbum de figurinhas, de artistas como Autoramas, Frank Jorge, Júpiter Maçã, Mundo Livre S/A e muitos outros. Em 2020, foram 28 projetos, entre eles o novo LP de Odair José e o álbum de retorno da banda Linguachula, em CD e digital.
Para Leo Bigode, fundador e diretor comercial da Monstro, a ideia de ter um selo não é algo simples e fácil. “Acho que, da metade dos anos 2000 para cá, muita gente começou a produzir sozinho em casa, e vários selos deixaram de existir.” O entendimento, por parte do artista, de que vale a pena ter uma estrutura profissional para apoiá-lo na gravação, na distribuição e na relação com as plataformas de streaming estaria contribuindo para virar esse jogo.
Segundo ele, no entanto, estar em selo ainda dá uma espécie de pedigree para o artista. “Acho que quando tem uma marca envolvida e no caso da Mostro isso é muito forte, é muito impactante, aí acho que faz diferença”, diz. “Eu costumo dizer que o selo sozinho não é ninguém e a banda sozinha também é difícil. Acho que o ideal é juntar as duas coisas e trabalhar em conjunto dentro desse padrão de parceria”.
MÚLTIPLAS ATIVIDADES
Uma das questões mais difíceis de solucionar é como tornar o trabalho rentável. Segundo Bigode, a solução na Monstro foi fazer de tudo um pouco e atacar em várias frentes. Uma é a venda de vinis, um dos trunfos do selo. “Eu diria que a fatia vinil é uma grande parte do nosso faturamento hoje, que segura até a parte do CD”, descreve. A maior parte da receita, no entanto, vem do festival que o grupo promove há mais de 25 anos, o Goiânia Noise.
Além das obrigações práticas, essa ideia de um selo como uma espécie de referência dentro do mercado é também defendida por Tagliari. “Alguns formam um elenco, um coletivo, uma cena na qual o artista pode querer se inserir. Além da ybmusic, pense num Lab Fantasma, numa Biscoito Fino, para ficar só no Brasil. No mercado anglófono. essa função ainda é muito importante. Sempre foi. Selos como Stax, Verve, Prestige, Bluenote, Ninja Tunes, Sterns e outros sempre fizeram jus ao nome selo. No caso, selo de qualidade.”
No atual ambiente dominado pelo streaming ter um selo pode parecer ter menos sentido, mas para Tagliari é exatamente o contrário. “As coisas são até mais complexas do que antes. Se você pegar um relatório de receita de streaming de um artista médio, vai ficar chocado. são milhares de linhas a serem processadas para resultar em poucos reais. Isso é só um dos aspectos que um selo deve cuidar”.
De fato, os selos facilitam os caminhos do artista num mercado cada vez mais competitivo e difícil, ainda mais em tempos de streaming e muita oferta. Joilson Santos, do baiano Banana Atômica (instagram.com/bananatomica), também enxerga os selos com um papel essencial e oferece contratos 360. “Investimos no processo inteiro da produção de um single ou um disco. Na gravação, produção de clipe, no planejamento do lançamento, divulgação, distribuição, também na negociação de shows, produção executiva, enfim, todo este processo é feito com nosso suporte”, diz.
Ele lembra que não há um formato fechado, com opções focadas em modelos específicos. “Tem artistas que só fazemos a distribuição digital, mas nestes casos cuidamos do registro das obras porque também funcionamos como editora. Fazemos o planejamento, assessoria de imprensa entre outras questões no que diz respeito a um lançamento”, diz. “Acho que funciona bem e ajuda muito a carreira de artista ter um selo com este perfil que seja parceiro nesse nível e com esse suporte em seus lançamentos”, completa.
Assim em como em toda a cadeia da música independente, uma das questões mais difíceis de solucionar é como fazer com que o trabalho seja rentável. Segundo Bigode, a solução na Monstro foi fazer de tudo um pouco e juntar os vários negócios desenvolvidos para pagar as contas. Assim mesmo, dois itens se destacam. Um é a venda de vinil, um dos trunfos do selo. “Eu diria que a fatia vinil é uma grande parte do nosso faturamento hoje, que segura até a parte do CD”. A maior parte, no entanto, vem do festival que o grupo promove há mais de 25 anos, o Goiânia Noise. “É nosso maior negócio em termos de grana, mas a gente não ficou preso nisso”.
Segundo ele, para um selo se manter, o ideal é que tenha vários negócios juntos. “Venda de música digital, venda de música física em todos os formatos que conseguir, editora, merchandising, shows”, afirma. “A gente soma tudo. Fazemos show pequeno o ano inteiro, todo mês entra uma graninha de bar e de bilhete. As coisas vão somando para dar um bolo total, que é o faturamento”. Dentro da proposta de fazer de tudo um pouco no setor, a Monstro está agora investindo em um novo negócio e vai passar a ser também uma loja de discos.
A ybmusic preferiu apostar em ações mais focadas, trabalhando na parte digital, sincronização e branding. “Nunca tentamos o tal 360, que implica se envolver nas receitas de shows, por exemplo. Não é nossa vocação. Agora, na pandemia, as lives passaram a ocupar, em parte, essa função do show, e aí sim pudemos nos envolver, porque temos estúdios e know-how para esse tipo de projeto”, conta Tagliari.
O resultado é que os selos estão mais presentes e se fazendo cada vez mais fundamentais no ambiente da música independente. Uma forma de aliviar as diversas funções que vêm sendo acumuladas pelos artistas e de melhorar a presença no mercado. E opções não faltam, há selos para todos os gostos, segmentos e estilos.