No comecinho desse ano, a cantora e compositora Luana Carvalho lançou seu novo disco, ‘Segue o Baile’, trazendo algumas músicas conhecidas, mas cantadas de forma bem diferente. Com produção de Kassin, o álbum reúne algumas novas composições próprias e parcerias. O que chamou atenção, no entanto, foram as versões de funks, aqueles, os cariocas, que recheiam o trabalho.
O funks ganharam outro clima, em geral mais acústicos, meio baladas, meio boleros, às vezes mais dançantes se aproximando do original. Além da voz de Luana, as gravações contaram com um time de respeito, com Pedro Sá no violão, Kassin no baixo acústico e Dedê Silva na bateria e percussão, além de uns coros femininos no ponto.
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Com essa turma, a artista regravou algumas pérolas, que as gerações mais novas talvez nem conheçam, mescladas a um sucesso mais recente. Este funk mais novo é justamente o que abre o disco, “Hoje”, de Jefferson Junior/Umberto Tavares. A música foi lançada no primeiro disco de Ludmilla, em 2014, se tornando um dos sucessos que impulsionaram sua carreira. Na regravação, ele aparece com uma levada mais leve, com violão, baixo acústico, bateria e percussão, mas permaneceu dançante.
Hoje (Jefferson Junior/Umberto Tavares)
Outro sucesso bastante popular que ganhou uma versão acústica e pode até soar irreconhecível para os mais distraídos é “Me Leva”. Composta e gravada por Latino em 1993, se tornou seu primeiro sucesso no ano seguinte. A música integrou o primeiro disco do cantor, Marcas de Amor, que vendeu mais de 600 mil cópias e incluía ainda outros hits, como “Só Você” e “Não Adianta Chorar”. Além dos instrumentos acústicos, a versão de Luana ganhou também programação, mas o destaque é para o violão de Pedro Sá. Uma coincidência é que Alice Caymmi também regravou esta faixa como single no finzinho de 2020.
Me leva (Latino)
“Está escrito” de Bob Rum talvez não seja reconhecida por todos de imediato. A música, no entanto, tornou seu autor e intérprete, o MC Bom Rum, conhecido em todo país. “Está Escrito” batizou seu primeiro álbum e foi tema de abertura da novela Cristal, exibida pelo SBT. Antes dessa, o MC já havia feito bastante sucesso com “Rap do Silva”, um dos maiores clássicos do gênero. A versão de Luana valorizou as melodias, tirou as batidas funk e reforçou como a música é de fato uma bela composição.
Está escrito (Bob Rum)
O MC Marcinho está entre os maiores nomes do funk melody. Autor de clássicos como “Princesa” (1997) e “Glamurosa” (1998), ele aparece aqui com dois outros sucessos. Um deles é “Rap do Solitário”, lançado originalmente no terceiro volume da coletânea Rap Brasil, em 1995. A música explodiu e foi o abre alas na carreira de Marcinho. Na nova versão, as batidas sintetizadas mantêm o clima dançante de funk melody.
Rap do Solitário (Mc Marcinho)
Outro sucesso de MC Marcinho é “Garota nota 100”, lançado em seu primeiro álbum solo, Sempre Solitário, de 1998. De autoria de Michael Sullivan & Paulo Massadas (segundo crédito do disco de Marcinho), ganhou uma versão suave e sensível. Também mais acústica, tem como destaque a interpretação de Luana, os violões e o coro, que ressaltam a força da melodia e da letra.
Garota nota 100 (Michael Sullivan & Paulo Massadas)
Ouça o álbum com as versões de Luana:
No trabalho de divulgarão do disco, a artista soltou um texto que conta a ligação dela com o funk carioca, além da importância do gênero e do preconceito que ele sofre. Leia abaixo:
“Na adolescência, frequentei muitos bailes funk. Fui fundo mesmo: bailes da periferia; favelas em morros do rio; plays na Tijuca, Méier, Vila Valqueire, Vila da Penha e Nilópolis; viaduto de Madureira; boates da zona sul. Aprendia os passos, ensaiava em casa, ia pra dançar, levava a sério. Mesmo não sendo ‘nativa’ – termo usado por Hermano Vianna no livro ‘Mundo Funk Carioca’, para as pessoas que eram, de fato, das comunidades e arredores – fui sempre bem recebida e acho que, principalmente, por ter amigos que eram ‘nativos’, já que o samba e o futebol (profissão de meu pai) me fizeram criar muitos elos no subúrbio e favelas do rio. Minha relação com o funk tem muito em comum com minha relação com o samba, embora, na minha casa, o funk fosse considerado uma espécie de problema sociocultural; Insistia-se em condenar o que chamavam de dominação que, supostamente, a ‘música americana’ estava exercendo sobre espaços dos morros, que deveriam ser de samba, exclusiva e historicamente.
Assim como o samba sofreu preconceito no início do século XX – sambistas iam, inclusive, presos por portarem determinados instrumentos típicos do ritmo – o funk seguiu, e ainda segue, um caminho parecido. Tanto no impacto quanto na discriminação. Isso, claro, tem a ver com a origem popular de seus locais de propagação, e com a imagem violenta e vulgar que a grande maioria da elite carioca julga ser a desse universo. Mesmo com a explosão de nomes como Anitta e Ludmilla, de uns anos pra cá – o que é muito importante, historicamente – existe ainda – também com ícones como Zeca Pagodinho – uma espécie de folclorização no que poderíamos chamar de respeito ou admiração das classes mais altas por esses ‘personagens do povo’. A questão é que, da mesma maneira que o samba, cuja origem sempre foi polêmica, se tornou um dos maiores símbolos da cultura brasileira, o funk carioca – e pasmem com a quantidade de teses escritas sobre esse movimento desde o livro de Hermano, portanto seria leviano aprofundar o assunto num release de disco – movimentava, já no início dos anos 80, um número perto de 700 bailes por fim-de-semana, frequentados por uma média de 5 mil bailarinos, cada. Além disso, é uma música que muito se difere do Soul ou do Jazz Funky, de onde provém, teoricamente; principalmente por sua mistura com o maculelê.
Por causa da nostalgia que a quarentena me trouxe, voltei meus ouvidos a tudo que mais profundamente me constituiu como ser musical. E lá nos primórdios das minhas tardes inteiras ouvindo e decorando letras de música, encontrei, inevitavelmente – também pelo ano de falecimento e homenagem – o repertório de minha mãe, e os fiunks que tanto embalaram uma época fundamental da minha vida. Também a transformar em letras, reflexões sobre o comportamento da minha classe social e assuntos como racismo, feminismo, doenças tão recorrentes como câncer de mama (tanto em ‘Teta Sem Treta’, música que compus em parceria com a atriz Andreia Horta, quanto em ‘Mainha’). Ao sentir a resposta do público do meu instagram às minhas gravações caseiras de Mc Marcinho, Bob Rum, Latino, Jefferson Jr e Umberto Tavares (gravada por Ludmilla), compositores clássicos e atuais do movimento, tive vontade de falar de um outro baile. Este que não são os de carnaval, mas que unem e separam morro e asfalto – o Baile de Máscara a este disco agora, como uma espécie de ‘duologia’ – na mesma proporção; e que ajudam o Brasil menos favorecido– a seguir o baile da vida.
Creio que já se imagine o quanto lembrei da trajetória de minha mãe, que saiu da bossa-nova rumo aos pagodes do Cacique de Ramos. E digo isso sem maiores pretensões, mas por que também conta na ligação que faço entre os dois álbuns de 2020.
A escolha do produtor vem dessa necessidade de unidade sonora entre os discos, a ideia de continuação. Por incrível e contraditório que pareça, o funk e o samba têm muitas sombras e luzes que se cruzam, artisticamente. Todos os integrantes foram pensados de acordo com a diversidade indispensável, pois tenho ciência da responsabilidade social que assumo, me arriscando nesse universo. No coro, botando voz às letras comigo, estão negres, favelades, gays, gente cujas respostas à minha consulta sobre ‘lugar de fala’ foi o que permitiu gravação e composição desses discursos problematizadores; além de muitos telefonemas para líderes de movimentos antirracistas, por exemplo. Ainda assim, não foi fácil escolher funks com letras que coubessem na minha boca de mulher branca, de classe média alta, feminista e bissexual. Principalmente, letras que não esbarrassem no que cada vez mais consideramos politicamente incorreto. Mas taí o resultado de uma pesquisa profunda e muito engrandecedora pra mim em todos os sentidos. Espero que vocês se divirtam!” – Luana Carvalho