As verdadeiras perguntas que deveríamos fazer sobre a futura reabertura de espaços culturais no Brasil.
Por Beth Ponte*
Para qualquer brasileira/o sã/o, os últimos meses tem sido uma coleção de assombros. A atualização é diária. Para mim, o mais novo assombro é que neste momento — início de junho de 2020 — estejamos seriamente planejando reabrir o comércio em algumas principais cidades do Brasil.
Há alguns dias pensava já em escrever um texto sobre o debate em torno da reabertura na área cultural, no esperado “pós-pandemia”, porque estava muito incomodada por ele estar centrado quase que exclusivamente nos protocolos de reabertura, eclipsando outras questões que são a meu ver muito mais centrais. Mas acho que, antes disso, temos que dar um passo atrás para ver o contexto atual do nosso debate.
Muitos colegas e profissionais da cultura já sabem disso, mas talvez não todos. A reabertura agora, seja do comércio ou de qualquer outra atividade não essencial, vai de encontro a tudo que está sendo demonstrado pelos especialistas. Eles são claros: ainda não é hora de reabrir e tudo indica que estamos nos afastando mais e mais desse momento. Para quem ainda não está suficientemente informado sobre os riscos da reabertura precoce, aqui um punhado de links bem recentes, de Átila Iamarino à Revista Veja, do Jornal Nexo ao Jornal Nacional.
Átila Iamarino por sinal, na live de 01/06 intitulada “Reabrir agora????”, vai ao X da questão: “Nós estamos ainda na subida da epidemia, com mais números de novos casos todos os dias e com mais de mil mortes diárias tentando seguir um padrão europeu, um momento europeu de reabertura que não tem a menor transposição para nossa realidade.” (Por sinal, no setor cultural brasileiro, “tentar copiar padrões europeus que não tem transposição com nossa realidade” não é algo necessariamente novo…. mas antes essa tendência não envolvia risco de vida.)
Temos que parar de achar que qualquer sapato importado que cabe no pé do Brasil. Os espaços culturais na Europa apenas foram ou serão reabertos porque os especialistas entenderam que esse é um momento seguro para tentar reabrir, gradualmente e com rigorosas medidas de segurança, parte das instituições da sociedade — incluindo as culturais. Nossa reabertura certamente seguirá um ritmo e uma narrativa bastante diferentes.
Pois bem, se agora não é momento de reabrir, com sorte esse momento chegará no futuro. Então evidente que temos que pensar e planejar, com antecedência, como será a reabertura dos nossos espaços culturais. E aqui volto à questão dos protocolos. Claro que eles serão parte essencial do movimento de reabertura para garantir a segurança do público e dos profissionais. Mas, parafraseando Dan Spock, no brilhante texto “Museums: Essential or Non-essential?” (Museus: essenciais ou não essenciais?), criar protocolos é uma resposta interna e uma parte muito pequena do que os museus podem fazer pela sociedade. Protocolos, se bem elaborados e adaptados ao contexto e à realidade de cada instituição, responderão principalmente a problemas técnicos e, portanto, produzirão somente soluções técnicas e paliativas. Reabrir um espaço cultural não é uma questão de passar álcool em gel na maçaneta.
Muitos parecem esquecer que antes de chegarmos ao “pós-pandemia” teremos um bom tempo no “durante-pandemia”, num período que possivelmente levará muitos meses dentro de diferentes picos de contaminação. E ainda por cima com efeitos de uma crise econômica. Muitas organizações culturais podem ser obrigadas a rever ou mudar radicalmente suas missões, estruturas organizacionais e modelos de funcionamento e de financiamento. Como elas estão se preparando para isso?
De acordo com Mariana Várzea, museóloga, consultora e diretora da Inspirações Ilimitadas, o debate deve ser mais amplo porque será preciso pensar no que ela chama de “Protocolo Maré”, em alusão às tábuas de maré que regulam as atividades nas costa marítima. Ela acredita que enquanto durar a pandemia as organizações devem se planejar para continuar funcionando em três formatos oscilantes, em relação à possibilidade de receber seus públicos: aberto, semiaberto e fechado. Isso vai requerer não apenas protocolos de segurança, mas produtos, linguagens, modos de trabalho e estratégias de comunicação distintos.
Então a questão não é apenas COMO reabrir. Desde já deveríamos dispensar igual ou maior atenção a outras perguntas: EM QUE FORMATO, PARA QUEM E PARA QUÊ REABRIR?
As perguntas essenciais
“Talvez o processo deva compreender, a princípio, não uma série de respostas, mas sim uma série de perguntas”, escreve Dan Spock. Falar de protocolos é só a ponta do iceberg. Existe talvez uma questão anterior e mais básica: QUEM PODERÁ REABRIR?
É preciso ainda enxergar a própria discussão sobre reabertura sob as lentes do privilégio, tanto em relação às organizações quanto aos públicos beneficiados em suas reaberturas. Já sabemos que mesmo nos países europeus a reabertura não contemplou todos os segmentos culturais. As instituições que estão conduzindo o debate sobre protocolos de reabertura agora são, em sua maioria, justamente as que tem sua existência menos ameaçada: espaços e programas públicos e grandes organizações privadas. (O que não quer dizer que não serão afetadas ou mesmo reduzidas, mas que muito possivelmente não deixarão de existir.) Em boa parte delas estão as pessoas que se encontram em condições de conduzir um debate mais amplo, realista e responsável sobre a retomada das atividades.
Os protocolos ensejam ainda outras questões complexas. A nota publicada pelo IBRAM no dia 05/06 com recomendações para a futura reabertura de museus recomenda compra de produtos de limpeza, revisão de sistemas de ar-condicionado e fornecimento de EPIs. Outras medidas podem incluir medição de temperatura de funcionários, uso de novos softwares para agendamento e controle de de visitas, etc. É evidente que todas as ações, da higienização às soluções tecnológicas mais sofisticadas, implicam em custos extras. O que não fica evidente é como esses custos serão absorvidos. Os orçamentos das organizações serão incrementados?
O rigor em relação aos protocolos poderá preservar a saúde de muitos, mas também pode representar o risco de que muitas organizações de menor porte simplesmente não consigam reabrir. E em relação à responsabilidade civil: quem assume o risco por contágios entre equipes e no público dos espaços culturais em virtude da incapacidade — financeira ou humana — de seguir todos os pontos dos protocolos? Como encontrar soluções para isso? Como transferir conhecimento, tecnologias e soluções entre as organizações maiores e menores, ajudando assim o ecossistema cultural como um todo?
Se vamos olhar para fora, que seja não para copiar a reabertura de outros países mas para começar ampliar nossas perguntas. Recentemente a SMU|DataArts (culturaldata.org/) publicou um excelente White Paper (um documento com dados e recomendações para o setor) chamado “In it for the long haul” (algo como “(Estamos) nessa a longo prazo”, tradução inteiramente livre), destinado a ajudar as organizações artísticas e culturais a considerarem questões e variáveis-chave à medida que planejam a reabertura e um futuro pós-COVID-19. Acho que nenhuma instituição deveria reabrir sem honestamente se fazer algumas das seguintes perguntas, mesmo que nem todas possam ser respondidas agora. As quatro perguntas centrais — e sub perguntas — que eles elencam são:
1. Como será o próximo ano? Quais os cenários possíveis para minha cidade, região, para o país, para meu setor?
2. Qual é a fonte de nossa força? O que fazemos é significativo e relevante para a comunidade?
3. Como gerenciaremos nossos recursos humanos, nossa proposta de valor e fontes de receita para enfrentar a nova realidade? Quem estou envolvendo nesse debate?
4. Quando nossas portas reabrirem, quem reuniremos?
Portas abertas para quem?
No artigo “How Should a Museum Reopen in a Post-COVID World?” (Como um museu deve reabrir num mundo pós-COVID?), publicado no portal Artnet News no dia 27/05, Andrew Ellis e Andras Szanto falam sobre o contexto norte-americano, também sem centralização e com informações difusas, e compartilham um checklist para museus, bastante útil para as questões mais técnicas sobre a reabertura. Mas abordam pontos mais complexos, como por exemplo a questão do acesso cultural.
“Nos últimos anos, os museus desenvolveram uma compreensão sofisticada das muitas barreiras à entrada que inadvertidamente criam, e de como superá-las a fim de perseguir agendas informadas pela equidade e justiça social. Ninguém quer levantar barreiras adicionais agora. Mas visitar museus se tornará inevitavelmente mais difícil, e não menos, num futuro previsível, e isso afetará mais alguns visitantes do que outros.”
Construir protocolos é um passo necessário, mas a pergunta que deveria ser feita desde já por todas as organizações culturais do Brasil nesse momento é sem dúvida: para quem vamos reabrir?
Na semana passada o Governo de São Paulo anunciou uma de suas ações dentro do “ “ “novo normal” ” ” para o setor cultural: a abertura de uma cinema drive-in no Memoria da América Latina a partir do dia 16 de junho. A notícia é bastante ilustrativa de como a reabertura poderá beneficiar os já (e desde sempre) privilegiados. É direcionada à população que tem carro, que por coincidência é a mesma que sempre pôde pagar cerca de R$ 40 reais (metade da inscrição do ENEM) em um ingresso de cinema. A mesma parcela da população que muito provavelmente conta com internet em casa e serviços de streaming. E que — não por coincidência — sempre foi a maior beneficiária de grande parte do investimento cultural nas grandes cidades… É bacana a ideia de trazer de volta os drive-ins e pode ser melhor ainda para a sustentabilidade de um cinema específico, mas por quanto tempo seguiremos reproduzindo a mesma lógica cultural excludente do mundo pré-pandemia?
As fotos da reabertura de teatros de ópera e salas de concerto na Europa, com orquestras ou cantores de ópera se apresentando para 100 ou 200 pessoas em salas que antes acomodavam mais de mil, circularam muito essas semanas e para muitos foram uma inspiração. Para mim é uma imagem bastante desalentadora e que levanta muitas perguntas. Quem são aquelas pessoas? Como e por que foram escolhidas? Quem você acha que serão as pessoas que terão acesso aos produtos culturais aqui no Brasil “pós-pandemia”? É esse o modelo em que queremos nos inspirar?
Uma resposta interessante à questão de “para quem reabrir” foi dada por Marta Porto, consultora e ex-Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do extinto MINC, num debate de percepção do setor museal levantado por Mariana Várzea em seu Facebook no dia 7/06.
Marta respondeu: “Não para o público em geral, Sim para ações cívicas controladas, como espaços de meditação e descanso para profissionais de saúde; para serviços de ajuda humanitária; para entender o que as comunidades ao seu redor precisam. Um espaço cultural para ser cultural, é antes de tudo um serviço comunitário, um prédio e um corpo de recursos humanos com múltiplas opções. (…) Um espaço cultural tem compromisso cultural com o seu tempo.”
Esperar reabrir para agir?
O comentário de Marta Porto nos relembra que são as organizações culturais que terão capacidade de reabrir primeiro as que mais teriam condições — humanas e financeiras — de, antes e durante a reabertura, dar exemplo ao setor sobre a o papel das organizações culturais como agentes sociais, como apoiadores das suas cidades e de suas comunidades. Antes de nos perguntarmos quando e como elas vão reabrir, deveríamos estar nos perguntando o que nossos maiores museus, teatros, salas de concerto (em sua maioria públicos) estão fazendo AGORA, ainda de portas fechadas, por seus públicos e por suas comunidades. E pra quem acha que não há muito há ser feito, recomendo esse texto inspirador de Andrea Jones, traduzido por mim recentemente, com diversos exemplos do que museus estão fazendo para apoiar seus públicos ainda durante a quarentena.
E é aqui que entramos em um ponto ainda mais delicado e essencial, porque no cerne de todas as perguntas está a questão dos valores de cada organização — que hoje em dia quer dizer os valores das suas lideranças. E não apenas aos valores, mas à própria “linguagem corporal institucional”, usando o conceito do The Empathetic Museum, ou seja, a forma como elas comunicam sobre os valores e sua capacidade de compaixão neste momento crítico. O que estamos fazendo agora e a forma como as organizações reabrirão são parte do mesmo conjunto de valores. Ainda de acordo com Dan Spock, refletindo sobre os museus:
“Os nossos valores são uma história que vamos contar a nós próprios para sobreviver, dar sentido a esta experiência e curar. Mas esses valores devem também levar-nos a refletir sobre o que é realmente importante. Embora isto possa parecer, à primeira vista, um processo de introspecção, os museus como instituições públicas deveriam estar revendo estes valores na esfera pública. Mais importante ainda, parte do âmbito da busca do futuro dos museus deveria incluir o questionamento dos próprios valores que pensávamos ter aderido antes de uma pandemia virar o nosso mundo do avesso e mudar as nossas noções sobre o que significa ser essencial.”
Os decretos de reabertura são justificados pela necessidade de “salvar a economia”, mas estão flagrantemente ignorando o risco que isso representa às vidas dos cidadãos, sobretudo às vidas que sempre tiveram menor valor em nosso país. A diferença é que a pandemia fez com que elas mudassem de status: de “pouco valor” passaram à quase “descartáveis”. Todos sabemos que vidas são essas. São os balconistas de lojas de shopping, os bilheteiros dos museus, os auxiliares de serviços gerais de um restaurante ou de uma sala de concerto. As mesmas pessoas que recebem menos, que vivem nas periferias e passam horas do seu dia se deslocando para o trabalho.
Vamos reabrir nossas organizações culturais porque um dia um decreto do prefeito ou do governador — talvez sem evidência nenhuma na ciência — dirá que podemos? O que os gestores dos espaços culturais farão para proteger a vida das pessoas que ganham os menores salários dentro de suas instituições? Terão com elas o mesmo cuidado que terão com seus preciosos assinantes e apoiadores? E mesmo que queiram, terão condições para isso?
É difícil, mas necessário que as organizações culturais permaneçam fechadas por mais tempo — pelo tempo que for necessário. Se mantê-las fechadas nos faz sentir que “a vida sem arte não vale a pena”, reabri-las enquanto estivermos em situação crítica nessa pandemia seria partilhar da mensagem de que “a vida de muitos não vale nada”.
Presos fora da caixa
A lista de perguntas não deve parar de crescer antes que possamos reabrir. Qual o propósito da nossa reabertura? Queremos reabrir porque nos vemos efetivamente como parte da reconstrução das nossas cidades e da nossa vida pública? Ou por que precisamos manter nossas fontes de recursos e nossos empregos, mesmo que isso faça parte de um movimento que pode acelerar a perda de vidas? Todas as perguntas são válidas, mas elas têm que ser feitas. E suas respostas e as consequências devem ser encaradas com honestidade. Precisamos de protocolos de reabertura assim como precisamos de auxílio financeiro emergencial para o setor e de líderes culturais das esferas pública e privada – que não se omitam de um debate sobre os valores de nossas organizações culturais.
Tá bom, mas qual a solução? Se existir, certamente não estará no singular, não será executada por apenas uma pessoa e pode ser que não seja nada parecida com o que já fazemos ou tentamos fazer. No nosso setor cultural também somos instigados cada vez mais a inovar e a “pensar fora da caixa”. Pois bem, como disse Dan Spock, esta pandemia nos “prendeu fora da caixa”: estamos todos presos fora de nossos museus, de nossas salas de concerto, de nossos teatros e outros tantos espaços dos quais sentimos tanta falta. Esse é o momento de agir e de buscar a semente da inovação: fazer novas perguntas e procurar novas respostas sobre o que realmente interessa ao futuro da nossa sociedade, e dentro dela, de nossas organizações culturais — estejam elas abertas, semiabertas ou fechadas, mas vivas.
+++
* Beth Ponte é gestora cultural, pesquisadora e consultora. É autora do projeto Qualidade para a Cultura, membro do Conselho de Administração da Associação Brasileira de Organizações Sociais da Cultura (ABRAOSC) e do Observatório de Economia Criativa da Bahia (OBEC-BA). De 2010 a 2018, foi Diretora Institucional do Programa NEOJIBA (Núcleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia) e, até 2019, foi German Chancellor Fellow da Fundação Alexander von Humboldt, na Alemanha.
www.qualityforculture.org/pt >> info@qualityforculture.org
(O texto foi publicado originalmente aqui)