Em sua 20.ª edição, realizada no último mês de maio em Goiânia, o festival Bananada provou sua importância. Tanto nas dimensões – foram quatro palcos e mais de 20 mil pessoas nos três principais dias de festa -, quanto na proposta de diversidade, o festival acertou em cheio. Não é sempre que se vê rock, rap, pop, mpb, música eletrônica, experimental e popular harmonicamente reunidos num mesmo espaço. Ainda mais com nomes que iam de Gilberto Gil a Boogarins, de Pabllo Vitar a Negro Leo, de Nação Zumbi a Ana Muller, de Emicida a Gordura Trans e de BaianaSystem a Vamoz.
Essa edição do Bananada acabou reforçando algumas impressões acerca da produção musical brasileira atual: o rock nacional vai bem melhor do que dizem por aí; a cena independente, ou como quer que chamem, é onde está o melhor da produção musical no país hoje; é nos festivais onde essa cena se encontra e melhor mostra sua força; o Bananada se tornou um aglutinador dessa potência e pluralidade de estilos e; a cena musical baiana vive mesmo um de seus períodos mais criativos e extrapolou as fronteiras de vez.
Como tem sido comum de 2017 pra cá nos festivais (e vamos escrever sobre isso em breve), o Bananada percebeu como a Bahia tem muito o que mostrar e convocou uma série de atrações do estado para sua programação. Todos eles, BaianaSystem, ÀttoxxÁ, Larissa Luz, Giovani Cidreira e até o show Refavela 40 de Gilberto Gil, responderam muito bem, fazendo alguns dos shows de maior destaque. Giovani Cidreira fez a melhor apresentação (pelo menos das que vimos) dentre a programação dos dois palcos menores, e um dos melhores de todo evento. Mostrou uma música com substância, letras confessionais guiadas por um caminho entre a mpb mais maldita, o indie rock, o Clube da Esquina e sons contemporâneos. No palco, ele transforma isso tudo numa experiência ainda mais visceral, com uma brilhante performance sustentada por um encontro de músicos das bandas Maglore e Bixiga 70. Elétrico, raivoso e entregue à sua música, desponta cada vez mais como um grande novidade da música nacional.
Nos palcos maiores, a sonoridade Bahia Bass deu as cartas e rendeu alguns dos melhores momentos do festival. O grupo ÀttoxxÁ fez um show explosivo que botou os goianos para requebrar com seu neo-pagode eletrônico, mais pesado e com referências que passeavam por Nina Simone, White Stripes e Satisfaction de Benny Benassi. Show de gente grande, sem nenhum medo de ser pop. Larissa Luz deixou o público em êxtase com a arrebatadora e certeira mistura entre o discurso engajado e o pop, presente na música, na produção, nas coreografias, dançarinas e nos efeitos visuais. Mais bem amarrado do que nunca, o show vai se consolidando como um dos melhores para se ver hoje no país, surpreendendo uma maioria que não a conhecia e deixando muita gente de queixo caído.
Só que ninguém tem dúvida que não há nada mais catártico hoje em dia na música brasileira do que os shows do BaianaSystem. Você pode não estar na vibe, pode nem gostar do discos, mas é muito difícil permanecer incólume quando Russo Passapusso entoa seus versos, Beto Barreto solta seus riffs na guitarra baiana, e a banda derruba os muros passeando por Bahia, Jamaica e África. Fechando a participação baiana, tivemos ainda Gilberto Gil e seu show Refavela 40, com vários artistas da mpb contemporânea homenageando as quatro décadas do clássico álbum. O bom show deixou um clima de frustração para os mais desinformados que achavam que iriam ver mais Gil em cena.
Nos dois palcos maiores, se revezaram ainda outros artistas da música pop brasileira, com forte presença do rap. Rincon Sapiência conseguiu se soltar e mostrar mais domínio de palco, mas ainda mantém uma distância entre o que mostra em disco e ao vivo; Rimas & Melodias, grupo de rap essencialmente feminino, fez um show forte, repleto de discursos, só precisa consolidar melhor suas composições. Emicida mostrou por que é o maior nome do gênero no país, com um show pesado, forte, sustentado pelas bases do DJ Nyack e com participação de dois dos novos nomes do gênero: Drik Barbosa e Coruja BC1.
Pelos palcos do Bananada passaram ainda uma representativa quantidade de artistas da nova cena musical mais próxima do que seria a mpb, mas com suas doses de contemporaneidade. Dessa turma se destacaram a carioca Ava Rocha, com seu tropicalismo provocativo e quase experimental, e a banda paulista Francisco El Hombre, que fez o costumeiro carnaval pop rock latino, com boas doses de discurso político e muita energia. A importância da Nação Zumbi permanece intacta, mesmo já tendo passado o tempo que a banda fazia shows históricos. Pelo menos não apostaram tanto no recém-lançado disco de covers e lembraram alguns de seus melhores hits.
Dois frutos da casa, Boogarins e Carne Doce, mostraram como já conquistaram o público local e são respeitados. Concentraram um grande público em seus shows, que cantava junto quase todas as músicas. A Carne Doce continua se destacando especialmente por sua vocalista, Salma Jô, e suas performances no palco. A banda aproveitou para lançar três músicas do novo disco. A Boogarins parecia mais leve que de costume. Por tocar em casa, fizeram piadas, brincaram com o público e mostraram a habitual competência na execução de sua neo-psicodelia brasileira.
Entre shows menos badalados, mas interessantes, como Heavy Baile e Bruna Mendez, um dos maiores artistas do mainstream atual, a cantora Pabllo Vittar. Apenas com uma DJ soltando as bases, ela mostrou que é mesmo bastante popular, mesmo num festival indie. Pode até ser divertido para que curte, mas quando composições, criatividade, produção, presença de palco, voz ou nada ligado à música se salva, o melhor mesmo é destacar como os dançarinos eram bons.
Assim como costuma acontecer nos festivais pelo Brasil, o Bananada é também uma ótima oportunidade para se conhecer as novidades que têm surgido pelo país e até fora dele. Entre os internacionais, estiveram por lá In Corp Santics (Argentina), The Ganjas, Javiera Mena e Adelaida (Chile), Ermo (Portugal) e Meridian Brothers (Colômbia). Estes últimos, um dos destaques, mostraram uma sonoridade feita a partir de ritmos latinos diversos, como cumbia e reggaeton, que são tratadas de forma incomum e bastante particular. Com doses de psicodelia, eletrônica, e um certo humor, poderiam causar alguma estranheza, mas o público aceitou a provocação e caiu na dança.
Meridian Brohters
No entanto, foi a cena independente brasileira que mais teve espaço no Bananada, sendo a ligada ao rock a que teve mais representantes, mesmo sendo basicamente nos palcos menores. O atual rock brasileiro mostrou que pode não estar na moda, mas continua fértil, rendendo trabalhos bastante interessantes. O melhor é que uma parte significativa do público preferia acompanhar estes shows ao invés de ver os nomes mais badalados.
O fato é que, com tantas opções em seus quatro palcos (mesmo que só em dois deles houvessem shows simultâneos), era difícil dar conta de tudo que acontecia. Pelos dois palcos de menor dimensão passaram nomes que deram um bom panorama do que anda acontecendo no universo das guitarras, desde a surf music instrumental do Camarones Orquestra Guitarrística, de Natal, até o punk carioca das bandas Blastfemme e Deafkids. Teve ainda o rock experimental das garotas do Ema Stoned, de São Paulo; o post-rock da banda pernambucana Kalouv; o hardcore melódico dos cariocas da Menores Atos (RJ); o rock cru do Corona Kings, do Paraná; o projeto experimental Oruã, do carioca Lê Almeida, ou uma surpreendente Ana Muller.
O garage rock do Molho Negro, do Pará, fez um dos shows mais comentados, com direito a banda toda, inclusive o baterista, terminando a apresentação tocando no meio do público. Guitarras com ruído, crítica social e estranhamento também tiveram vez. O maranhense radicado no Rio e São Paulo, Negro Léo, fez um contraponto ao pop dançante dos palcos principais, levando o público a outro extremo. Nem um pouco condescendente, fez um daqueles shows que incomodam quem não está disposto (ou preparado) a ouvir improvisações e exploração de timbres e texturas pouco usuais. Um show caótico, no melhor sentido que isso possa ter, chegando ao ponto de todos os músicos saírem do palco deixando o técnico de som produzindo efeitos.
Dois grupos veteranos de Pernambuco mostraram a cara, a Vamoz com seu indie hard blues, e a Jorge Cabeleira E O Dia Em Que Seremos Todos Inúteis, que fez uma apresentação baseada no primeiro disco, mesclando hard rock com música tradicional nordestina. Se funcionava muito bem na época que surgiu, há mais de 20 anos, no rastro do Mangue Beat, não agradou tanto o público mais novo, deixando basicamente só os mais velhos até o fim.
A cena local também esteve muito bem representada. Além de mostrar uma diversidade de sonoridades, deus pistas de como o público local está atento às novidades da cidade. Passaram por lá nomes como Niela, ex-vocalista da antiga banda Gloom; o stoner rock da Hellbenders; o metal da Frieza, mas especialmente as variações dentro do mundo do indie rock de nomes como Lutre, Branda e BRVNKS.
Chamaram atenção dois nomes bem novos. O Gordura Trans, formado por dois garotos do Rio de Janeiro, mostrou por que tem sido um dos nomes que mais tem se apresentado em festivais. A combinação guitarra e bateria não é nenhuma novidade, mas também não é sempre que o resultado consegue ser tão consistente. A dupla mostrou saber utilizar muito bem as ferramentas para fazer um noise rock/shoegaze de responsa. De Pernambuco, o promissor projeto do cantor e produtor Roberto Kramer, RØKR, apresentou um competente post-rock, trafegando por sons psicodélicos, progressivo, dream pop e synthpop. Pra ficar de olho.
Gorduratrans
A forçada mudança do Bananada do Centro Cultural Oscar Niemeyer para o estacionamento do shopping Passeio das Águas parece não ter afetado a presença de público e o sucesso do evento. O novo local e o uso de pulseiras QR Code, ao invés de fichas nos bares, provocaram alguns problemas no primeiro dia, com filas imensas nas áreas de consumo. Tudo foi bem resolvido nos dias seguintes e o festival acabou dentro do previsto. Uma combinação de boa música, produção caprichada e público curioso e atento. Era tanta a entrega das pessoas que pouco se viu de celulares filmando os shows. Prova disso é que uma simples busca no youtube não rende muitos registros das apresentações.
Além de um evento de shows, o Bananada, como todo festival devia ser, é um aglutinador de pessoas, idéias e arte. Antes dos três principais dias, o evento já acontecia durante a semana em teatros, pubs e boates espalhados por Goiânia. Ao mesmo tempo, em reuniões ou encontros espontâneos, produtores, empresários, artistas, jornalistas e todo tipo de profissional envolvido com o mercado de música, trocavam experiências e informações.
O evento goiano tem sido quase que um grande encontro oficial dessa turma, que só mostra a importância que o festival tem tomado. Ainda mais se pensarmos que acontece numa capital pouco tradicional, de médio porte, fora do eixo Rio-São Paulo e em pleno Cerrado brasileiro. E se mesmo com toda a pegada independente, sem grandes marcas ou a mídia por trás, o festival consegue atrair um número considerável de profissionais e de público, da própria cidade e de fora dela, não dá para desprezar a força que ele tem. A edição de 2019 já está marcada para o período de 29 de abril a 5 de maio, e com ingressos à venda. Se eu fosse você me esforçaria para ir.
Ava Rocha