Salvador acabou de completar 463 anos. Muito da importância de sua história está na cultura produzida por aqui. Minha sensação nessa segunda década do século 21 é que Salvador foi refundada culturalmente há uns cinco ou seis anos anos, talvez um pouco mais. Não necessariamente é fruto de uma mudança de Governo e da mentalidade política em voga, mas como sempre diz o colega Lucas Jerzy, é o contrário. A mudança política faz parte dessa mudança cultural. Nesse período começou a ressurgir uma chama criativa na cidade. Chama que não havia apagado totalmente, mas havia ficado escondida. Ainda não é totalmente visível a todos, mas já faz uma diferença perceptível para quem quiser, precisa apenas mexer um pouco o pescoço e mudar o ponto de vista.
Já começamos nesse período a colher diversos frutos criativos, com brotos crescendo por todos os lados. Artisticamente, no campo musical isso surge com uma nova geração de bandas e artistas (que começamos a identificar no especial novíssimos baianos pt. 1), que continua brotando ininterruptamente. Alguns destes nomes já ganharam um destaque maior, chamando atenção da mídia especializada, fazendo turnês pelo país ou até no exterior. Caso de nomes como Baiana System, Maglore, Márcia Castro, Vendo 147, Orkestra Rumpilezz, Vivendo do Ócio, Magary, entre outros. Pensem em 5 anos atrás, nenhum destes nomes sequer existia.
A consequência artística disso, logo, já é de certa forma visível. Pra se tornar algo consolidado demora mais tempo, porque necessita de uma resposta maior de público e essa resposta é mais complexa, precisa de mais fatores, é lenta, processual. A colheita é a longo prazo… Necessita que tudo seja irrigado continuamente. Ai talvez resida o maior problema, esse trato pra crescimento e consolidação de uma verdadeira horta e não de brotos esparsos necessita de contribuição de elos que hoje não contribuem. Pelo contrário, mídia, empresariado e poder público na maior parte das vezes não percebe, sequer enxerga essa outra realidade.
Importante que se lembre como Recife – sempre citado como comparativo a Salvador e que é realmente uma referência por diversos motivos – era há 20 anos. Considerado um lugar desigual, pobre e morto artisticamente, sede da quarta pior qualidade de vida do país e com uma cultura ofuscada e tímida. Em poucos anos se reergueu, com valorização de seus próprios valores e culturas e, ao mesmo tempo, com um olhar aberto para fora. Sem preconceitos para nenhum dos lados, se assumindo e aprendendo a se reconfigurar. Chico Science, Fred 04, Siba, Renato L., Paulo André, caras que vislumbravam uma nova Recife e conseguiram refundar a cidade e o estado.
Entre altos e baixos, vários percalços, um crescimento cultural, uma visão própria de seu valor. Hoje continua produzindo e colhendo muito. Ter 20 anos de um festival como o Abril Pro Rock é causa e efeito, ter nomes consolidados entre os principais da música brasileira contemporânea é causa e efeito disso, ter diversos nomes internacionais se apresentando na cidade, inclusive Paul McCartney, é efeito. Belos exemplos de uma cidade diferente de Salvador, mas com várias semelhanças.
A Bahia e Salvador já passaram pelo seu fundo do poço. Ainda possuem uma cultura própria riquíssima, diversa e valorizada. Precisam continuar andando pra frente, se desenvolvendo e abrir mais seus olhos para o outro, o diferente. Não pra uma subcultura do que já faz. Não para monoculturas, algo que durou, foi combatido, mas já está, de certa forma, superado.
É preciso se abrir, se permitir ao outro, ao novo, ao diferente. Olhar pra frente, mas perceber que qualquer evolução é processual. É feita de conquistas, de passos pra frente, mas também de concessões e de regressões, o tempo todo, para uma evolução permanente. Minha sensação é que estamos nesse caminho, facilmente perceptível às vezes, invisível em outras. Uma evolução que só vai ser sentida de fato com mais tempo e pelos mais pacientes.
Uma forma de perceber isso é olhar em perspectiva. Enxergar pra trás, perceber como Salvador e a Bahia eram há cinco, dez ou quinze anos atrás em diversos sentidos. Espaços para tocar, bandas e artistas ganhando maior dimensão, existência de festivais e eventos, música no interior do estado, público circulante e até shows internacionais. Estamos apenas no meio do processo, muitos passos distantes do fim. Sem saudosismo ou desprezos, ao novo ou ao velho, mas tentando perceber as mudanças, as deficiências e o que somos de fato. Um deslocamento de ponto de vista, um olhar mais democrático e, principalmente, maior autoestima permite uma análise menos complexada, afinal somos mesmo vira-latas, mas isso talvez seja nossa maior qualidade.