Opinião: “O som é profético, é o que vem primeiro”

A arte contemporânea é marcada por ressignificar, recortar, inverter, reproduzir. Disso, construir algo novo. É nesse contexto que defensores de uma originalidade pura atacam a nova música: apontam que ela não é como era antigamente. E então solução é voltar aos anos 50 quando a tecnologia “não atrapalhava a criação”? Será que hoje não se faz mais arte como antes?

Por Pedro Antunes de Paula

Parece contraditória uma expectativa por produções puramente originais em uma sociedade mediada pela plataformização digital como a atual. Os rastros de autoria parecem estar cada vez mais irresolutos na medida em que a fisicalidade perde para a digitalização. O print, o compartilhamento, a pirataria, a omissão, a falta de contexto – são todos artifícios que deslocam cada vez mais a crença de que o que se consome é real e próprio. Não haveria de ser diferente no campo artístico e na música, sobretudo, porque são áreas que se validam por conceitos como originalidade, especificidade e aura – no sentido metafísico da palavra mesmo. 

 Acerca desse último, Walter Benjamim, em seu texto clássico “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica” já comentava sobre a reprodução como um modo de dessacralizar a coisa nomeada arte. Este ponto, longe de ter sido superado (vide a manutenção do prestígio de espaços que isolam objetos para culto, como museus), tem por acréscimo a tensão que o avanço das tecnologias de reprodução e replicação proporcionam para o campo da produção artística. Além disso, o boom da inteligência artificial, que é capaz de replicar vozes, produzir imagens e canções através de bancos de dados, sugere uma mudança no modo como a sociedade precisa lidar com as ideias de originalidade e propriedade intelectual no campo da produção da arte.

Se até então o “problema” eram produtores do Rap sampleando o trabalho de outros compositores para construir seus beats, hoje o ponto é se a produção é questão humana ou de máquina. No meio desse impasse, a ideia de originalidade é tensionada, já que parece estar sendo levada aos extremos neste contexto artístico e sociocultural, mesmo que, desde sempre, fosse um conceito um tanto quanto complicado. Hoje, na música, essa complexidade encontra um ponto privilegiado de observação.

A questão da originalidade encontra uma extremidade em obras construídas inteiramente por meio de samples, ou seja, através de outras obras. Talvez um dos exemplos mais proeminentes e interessantes para debate seja a obra de The Caretaker, projeto idealizado por Leyland Kirby. Inspirado pela cena do baile assombrado de “O Iluminado” (1980), Kirby recorta gravações antigas, das décadas próximas a 1930, e as manipula, culminando na construção de peças que remetem a um passado que aos poucos é esquecido, a memórias borradas, em conjunto com os trechos de valsas manchadas e riscadas pelos ruídos. O ápice do seu trabalho se concentra em “Everywhere at the end of time”, trabalho de seis edições em que o artista propõe uma construção sonora do que seria o esquecimento causado pelo Alzheimer. O trabalho é dividido em estágios, nos quais a deteriorização dos sons (e das memórias) se intensifica, até alcançar um doloroso borrão ruidoso, vertido por silêncios.

A1 – “It’s just a burning memory” (2011), disco de The Caretaker

A contradição se coloca em destaque já que todo e qualquer elemento musical utilizado por Kirby não foi de sua composição. Apesar disso, quem poderia propor os recortes, estabelecer a curadoria, intencionar as texturas, aplicar os efeitos, se não o artista? Estes não seriam, sobretudo, exercícios autorais?

Parte da dificuldade de compreensão da originalidade de Kirby parece semelhante aos embates constantes que a arte contemporânea em geral estabelece em sua existência. O mictório de cabeça pra baixo, a banana colada na parede, o quadro em branco, todas são peças artísticas que possuem sua validade como arte questionadas por seu modo de existência: uma proposta criativa não usual, que se valem de simplicidade material deslocada de seu contexto, exibida em sua crueza. Outra parte do conflito se vale pela posição do autor nessas obras.

A noção de autor perpassa uma ideia de controle que a mente produtora do texto em questão possuiria acerca deste, não apenas na sua produção, mas na construção de seu sentido. Essa postura resvala na Teoria da Informação de Shannon, já superada em discussão teórica, que compreende a trajetória da informação como um processo linear e objetivo, na qual os dois polos, receptor e emissor, entrariam em equilíbrio, homeostase. Neste caminho, a informação que se produz em “A”, é transmitida em sua completude para “B”, caso não haja nenhum ruído de comunicação no processo.

As teorias semióticas, da análise de discurso, dentre outras que investigam a comunicação, já compreendem o processo de maneira mais complexa, sendo portanto, ingênuo e simplório crer em tamanho poder do autor. O texto – termo aqui usado como sinônimo de obra, produção artística, objeto cultural – tem autonomia, no sentido de que gera significações múltiplas quando entra em contato com seus intérpretes, estes que também trazem seu arcabouço para significar. Deste modo, o sentido não depende objetivamente do autor, mas das configurações da obra somadas a seu contexto e à memória de quem a interpreta. É desta maneira que uma banana colada na parede se torna arte, e não apenas um testamento de um objeto aleatório em contexto inusitado.

Toda essa nova forma de compreender a criação artística, assim como suas possíveis gerações de sentidos, deslocam o autor de um fundamento protagonista da obra para mais um agente atravessado pelo seu tempo, dessa maneira, de papel colaborativo, não definidor. O que a contemporaneidade exibe é apenas a demonstração dessa compreensão.

Atualmente, música é feita em casa. Toneladas de material se concentram no peso de um celular. Ela é notadamente marcada pela ressignificação, recorte, inversão e reprodução, para disso, a construção de algo novo. Programas de produção musical utilizados nos homestudios se sustentam com bancos de dados estruturados por samples percussivos, melódicos e harmônicos livres para a utilização, além de estruturas pré-construídas e banco de progressões usuais. Se você quiser, a criação se limita apenas a arrastar templates. Será que hoje não se faz mais arte como antigamente?

Shakespeare evidentemente é um plagiário, diz Machado

A base da música é a repetição. Antes do sample, a utilização do que pode ser chamado de “citação” ou de “sinônimos melódicos” em gravações e performances ao vivo foi, e ainda é, uma das bases para a construção de uma cultura musical e de tradição. Pode-se usar toda a concepção do jazz, gênero com origem em meados do fim do século XIX, como exemplo. Os músicos constantemente reutilizavam linhas melódicas em outros contextos, os chamados “contrafatos”. Solos que um dia ouviram de suas referências, tocados em composições próprias, progressões de acordes repetidas à exaustão, até tornarem-se clássicos, ou Standards, nos songbooks do gênero, entre outros.

Sendo construído por comunidades marcadas pela escravidão, foi através das culturas dos povos africanos misturadas aos instrumentos ocidentais e, principalmente, a partir do diálogo musical, da troca de discursos melódicos e narrativas harmônicas, que toda a tradição se perpetuou, em face de um mercado musical excludente. O mesmo aconteceu com o samba brasileiro e, na verdade, com toda e qualquer cultura. Diz-se que é viva, justamente por estar na ação e boca do povo e por sua repetição perene, que transforma a matéria fonte, aos poucos, em matéria terceira.

Esses “sinônimos” carregam influências e culturas por gerações, consolidando métodos e movimentos que, ao passar do tempo, se transformam em vanguardas aos olhos da crítica e acabam baseando outras manifestações. Se tornam vícios, memórias musculares perpetuadas por “roubos” de autoria. O que define um gênero senão semelhanças estruturais entre obras distintas?

Thelonius Monk, pianista “compositor” de Rhythm-A-Ning, um Standard de jazz baseado em I Got Rhythm, de George Gershwin. A composição de Monk é o que se chama de contrafato da obra de Gershwing, que possui uma lista extensa disso, sendo a de Monk apenas um dos exemplos. O vídeo The Grotesque Legacy of Music Propertyde Adam Neely explica isso com mais detalhes (Foto: Italian Piano)

A música é como a língua: tem seus padrões estabelecidos de acordo com a região e cultura dos falantes. Só existe através dessa troca e perpetuação de tradições e, como o linguista brasileiro Marcos Bagno teima, “enquanto tiver gente falando uma língua, ela vai sofrer variação e mudança, incessantemente”. A repetição é um fundamento da música, assim como a transformação.

Apesar disso, um cinismo, ou ingenuidade, diante da criação humana a coloca como inspiração divina, e cada indivíduo criador como deus único, sendo que todo criador sabe que toda palavra que saia da boca não é sua. “Nós somos ecos de outras vozes, um teatro, e é libertador abraçar o que tentamos esconder”, comenta Rodrigo Amarante, compositor brasileiro, em entrevista ao El País sobre seu último álbum, “Drama”, de 2021.

Rodrigo Amarante e suas máscara de ‘Drama’ (Foto: NPR)

Ele ainda acrescenta na entrevista: “Cavalo foi o meu primeiro disco solo, a primeira vez que fiz uma coisa com meu nome, como se aquilo fosse eu. De todo modo, sei que o trabalho está inundado de intenções, conscientes e inconscientes. Cria-se um duplo de mim. Entre um e outro, é como se eu estivesse mordendo a própria cauda, em busca de uma voz própria, uma expressão genuína e pura”. Em “Drama”, “essa ideia ficou meio boba, narcisista e ingênua enquanto método criativo. Entendi que minha voz é uma amálgama de outras vozes, que me ensinaram a falar e gesticular. É um exercício que entendo de amor a si mesmo”.

O que o compositor tenta dizer é: a originalidade é uma falácia, e é melhor abraçar a obviedade dos retalhos de referências a partir das quais as obras são construídas do que tentar escondê-las.

 Em entrevista para a Veja acerca do escritor Machado de Assis, o professor e crítico João Cezar de Castro Rocha pontua isso com clareza: “Originalidade é um preconceito. O que realmente importa é a complexidade, e salvo engano, complexidade na literatura só se constrói pela leitura, não pela escrita. Para um autor como Machado, a escrita é um elemento secundário, é um dado que surge à leitura, e não o contrário.” Complexidade, portanto, a forma de arrumar e costurar fragmentos.

O professor continua: “Machado parece compreender profundamente que o autor não deve ser original, deve ser complexo. Quando ele diz que Shakespeare evidentemente é um plagiário, o que ele está dizendo com outras palavras é o seguinte: Shakespeare é, evidentemente, o melhor leitor da sua geração. A maneira como ele se apropria dos autores é uma apropriação de um profundo leitor que entende a estruturação da obra e com ela se relaciona”. Me parece, portanto, que samplear existe há muito tempo.

Criar é roubar de forma complexa, tangente. Não há escrita sem leitura; não há música sem escuta, nem cultura sem reprodução e partilha. A criação é coletiva. Flusser vai dizer em “O Mundo Codificado” que todo discurso está inserido em um diálogo, bem como todo diálogo precisa se munir de discursos anteriores. Charles Peirce, que o pensamento não está em nós, mas nós é que estamos no pensamento. Toda ação humana é reflexo e memória cultural de outras ações humanas. O que se passa na cabeça dos contemporâneos não é único, mas fruto de um pensamento geral humano e consequência de um diálogo crônico com idealizações de um passado e ansiedades de um futuro.

Certamente, a própria ideia de “propriedade”, naturalizada pelo capitalismo e, ainda mais abstraída pela noção de “propriedade intelectual”, fez da originalidade um parâmetro de valor capaz de escrutinar qualquer trabalho. Sua fundamentalidade ao sistema é clara, já que é por este meio que o dinheiro e a indústria se permitem existir. Mas a aura do original tornou-se uma marca posta à divindade, valorizada em todo meio, o que não é diferente para a arte, mesmo explicitando uma inerente contradição.

Quem é dono de “Rhythm-A-Ning” se ela sequer foi a primeira a referenciar “I Got Rhythm”? Resumir toda obra em ritmo, melodia e harmonia não contempla o pilar da propriedade intelectual, a originalidade, porque a música é um sistema formal, recheada de convenções com lastros culturais e naturais, acústicos. A fisicalidade dos instrumentos também pode guiar os músicos a certos vícios e movimentos involuntários, inevitáveis como os pensamentos de seu próprio tempo.

Um disco do Oasis, sem que a banda tenha sequer entrado em estúdio, o saudoso papa de Balenciaga e a música inédita dos Beatles, mais de 50 anos depois do fim da banda e outros tantos depois da morte de algum de seus integrantes, expõem não só toda a complexidade que essa herança conceitual, política e sociocultural implica, como joga é um baita fogo nesse balaio.

Ser livre é fazer parte

Qual é, então, o limite da criação? O que define a autoria já que tudo é fruto de ideias de outros? São complexidades que podem ser pelo menos acalmadas pela transparência, já que não existe sequer um trabalho que não tenha sido construído a partir de atravessamentos e articulações de ideias de outros.

O polêmico Kanye West desenvolveu o método de “CEO criativo” para construir seus álbuns. Enrico Souto, em seu texto para revista digital “Persona” comenta: “Ye (como agora quer ser chamado) recruta uma quantidade massiva de compositores, vocalistas, produtores, engenheiros de áudio e beatmakers, atribuindo a si o papel de curador e mediador do projeto. Praticamente uma versão musical do papel de showrunner em séries de TV, que nem sempre é a peça de destaque, mas o elo que une todos esses artistas de origens e abordagens absolutamente distintas, e torna todas as suas contribuições em um produto único.”

Ainda assim, o disco é lançado sob o nome de Kanye. Como comenta Souto “das 27 faixas presentes na tracklist final, apenas três não apresentam nenhuma colaboração vocal. E, em algumas das outras 24, Kanye sequer é o protagonista”. Pelo menos 44 pessoas estiveram envolvidas no “Donda”, disco de 2021.

‘Hurricane’ (Ft. Lil Baby & The Weeknd) Prod by BoogzDaBeast, DJ Khalil, Kanye West, Mike Dean, Ojivolta & Ronny J

O método de Ye somente torna mais clara como a coletividade determina uma criação, e coloca em disputa o papel do artista nessa construção. O que é de Kanye em “Donda”? É fato que com a digitalização da indústria musical, as informações dos trabalhos encontram-se mais dispersas, e as plataformas de streaming não fazem questão de dar suporte e vigia necessárias para que todos os créditos sejam parte fundamental da infraestrutura de veiculação dos trabalhos. Um paradoxo a partir da facilidade de acesso que se tem hoje.

Ronaldo Lemos aponta num artigo para Folha que “como sempre, a música funciona como ponta de lança das grandes transformações sociais” e cita o escritor Jacques Attali: “o som é profético, é o que vem primeiro” (vale ressaltar que Lemos traz uma tradução imprecisa, já que o autor pontua que a música é profética/profecia, a diferenciando do som). As tensões trazidas por esses (nem tão) novos métodos de criação que colocam em cheque o ideal de originalidade refletem uma problemática geral da sociedade. E mesmo se a indústria, o direito e o público não acompanharem, serão, de qualquer forma, levados pela profecia.

As ideias são coletivas, do momento em que surgem a seus autores ao instante em que encontram seus leitores e ouvintes. Toda ideia possui rastros de outras ideias. O problema é o capital querer que isso venha ser entendido. Geralmente ele tem suas ideias próprias.

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