Por detrás de cada canção há um autor. Uma semente. O autor é a semente. Simples assim. Sem o criador, não haveria Spotify, Apple Music, YouTube, bandas de rock — ou deuses.
Por Manno Góes (Publicado originalmente no jornal O Globo)*
É fato que a música é elemento primordial na caracterização de uma cultura, de um povo e suas manifestações artísticas. Através de canções, uma nação se expressa, se comunica com o mundo e atrai atenção às características regionais de sua origem. Não há ninguém que não ouça um reggae e não se lembre da Jamaica; um jazz e não se lembre de Nova Orleans; um rock e não se lembre de Londres; uma salsa e não se lembre de Cuba; um samba-reggae e não se lembre da Bahia; um samba ou uma bossa nova e não se lembre do Rio.
A música estabelece identidades culturais próprias, originais, criando padrões de cidadania e aspectos preciosos de influências e significados de uma região.
E por detrás de cada canção há um autor. Uma semente. O autor é a semente. Simples assim. Sem o criador, não haveria Spotify, Apple Music, YouTube, bandas de rock — ou deuses: não haveria Lennon e McCartney. Roberto e Erasmo. Caetano e Gil. Cazuza ou Renato Russo. Felizmente, a lista é quase interminável. Não haveria a quem agradecer pela criação de versos, frases e melodias que transformam gerações. Que mudaram vidas. Porque o papel da arte é esse: transformar. Transformar-se.
Não haveria Semana de Arte Moderna em 22 sem Oswald de Andrade; não haveria tropicália sem os baianos e Oiticica, nem haveria Tom Zé; ou Raul, ou João Gilberto ou Fernando Brant, sem o poder infinito da criação.
Por compreender que a criatividade é o pó mágico do Peter Pan; a asa do avião, o software do aparelho celular, nós, autores, precisamos de coerência e respeito.
Nossa atividade é subjetiva e abstrata. Porém, não há nada mais real e tátil no mundo do que a importância da criação. Não somos autores apenas. Somos atores na construção de um mundo que reconhece que a arte não seria uma das maravilhas do mundo se não existíssemos.
E, mais do que isso: somos humanos. Pessoas com pulmões, coração e sentimentos. Precisamos de oxigênio e água. E comida. E arte. E remuneração digna pelo que fazemos.
Precisamos de compreensão, afagos, carinho. Proteção. Direitos autorais são, antes de tudo, amor à arte. Alegar que é necessário isentar hotéis, motéis e pousadas de pagamentos autorais para impulsionar o turismo — como pretende o PL 3968, da deputada Renata Abreu — é desconectar a cultura do lazer. Segundo o Ecad, a parlamentar é detentora de redes de rádios inadimplentes com os autores; sua iniciativa causará um prejuízo anual aos autores de cerca de R$ 200 milhões. Agir assim é desconhecer que um elemento poderosíssimo de atração turística são justamente a música e as manifestações culturais de um lugar. É contraditório e irresponsável. É afirmar que a música não é tão importante assim. E quem acha que a música não tem tamanha importância no seu poder de atração e sedução comete um grave equívoco.
O Brasil e sua maravilhosa diversidade cultural oferecem atrativos infinitos para quem vem nos visitar. Além de nossas praias, florestas, montanhas, gastronomia, danças, festas, cores e sincretismo religioso, somos um país de intensa produtividade musical. Não cabe aos autores pagar o preço do que não lhes é devido. Nosso turismo precisa de nossa música. E nossos autores precisam ser remunerados por quem oferece suas canções aos turistas.
*Manno Góes é compositor