Desconhecida por muitos, a diversidade e riqueza da música da Amazônia é celebrada em documentários, livro, coletânea internacional e show no Rock in Rio.
Três documentários, um livro, uma coletânea internacional, show exclusivo no Rock in Rio e diversos novos discos. É com todas essas novidades que a música do Norte do Brasil, mais precisamente da Amazônia, deve voltar a ganhar os holofotes não só por aqui, mas também lá fora. Ritmos como carimbó, guitarrada, technobrega, beiradão podem até não parecer tão difundidos pelo país, mas são fundamentais para nossa música e presentes em diversas produções atuais.
Em vários momentos de nossa história, artistas da região Norte chamaram atenção e alcançaram sucesso popular. Nomes como Pinduca, Carlos Santos, Fafá de Belém, Nazaré Pereira, Beto Barbosa, Calypso e Gaby Amarantos estão entre os que frequentaram ou frequentaram rádios e programas de TV. Em comum, todos eles trazem o DNA amazônico incrustado em suas músicas.
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– Entrevista: Fernando Rosa mergulha nas sonoridades da Amazônia.
Esses sucessos, no entanto, às vezes são eventuais e passageiros. Em épocas diferentes, as sonoridades vindas de estados como Pará e Amazonas ganham corpo nacionalmente e viram uma febre. Como toda moda, a onda passa, e aquela produção costuma ser colocada de lado. A riqueza da música da Amazônia, entretanto, é mais forte do que as efemeridades. Pelo menos desde os anos 1970, os ritmos que misturam influências negras, indígenas e caribenhas estão fortemente presentes na região com uma rica e ininterrupta produção.
Ouça uma playlist com a música da Amazônia enquanto lê:
Artistas, cineastas, produtores e jornalistas têm trabalhado em diversos projetos que devem contribuir para que a música e as sonoridades amazônicas deixem de ser tratadas como apenas modas passageiras ou folclore. O livro “Ondas Tropicais – A Invenção da Lambada e do Beiradão na Amazônia Moderna” e a coletânea “Jambú e Os Sons Míticos da Amazônia” resgatam artistas e ritmos fundamentais e mostram a importância deles para as bases da produção musical na região. Os documentários “Amazônia Groove”, “Ventos Que Sopram Pará” e “A Poética dos Beiradões” seguem nesse mesmo caminho, revelando ainda nomes da atualidade que mantêm e atualizam a riqueza musical amazônica.
Rock in Rio e novas produções
Assim como o show especial Pará Pop no Palco Sunset do Rock in Rio, voltado exclusivamente para artistas do estado. Nele, veteranos e novos nomes se revezam contando a história da música paraense nas últimas décadas. O show terá Dona Onete como anfitriã recebendo Fafá de Belém, Gaby Amarantos, Jaloo e Lucas Estrela. Esses são, aliás, alguns dos nomes que estão lançando ou preparando discos e material novos para esse ano.
Dona Onete, por exemplo, lançou seu terceiro álbum, “Rebujo”. Fafá de Belém soltou “Humana”. A cantora Keila Gentil, ex-Gang do Eletro, liberou seu primeiro disco, “Malaka”, focado no tecnobrega. Manoel Cordeiro, Gaby e Jaloo disponibilizaram singles recentemente. Até o fim do ano, eles devem lançar seus novos trabalhos. Outros nomes também estão com novidades engatilhadas ainda para este ano. Depois de anos do últimos trabalho, a veterana Nazaré Pereira vai lançar um álbum novo pela Natura. Do Pará, as cantoras Juliana Sinimbú, Natália Matos, e o grupo Guitarrada das Manas devem mostrar material novo. Além de Alaíde Negão e Marcelo Nakamura, do Amazonas; Mini Box Lunar, do Amapá, que também prometem novidades.
Diversidade
Outro com material novo é Felipe Cordeiro, que recentemente lançou seu quarto disco, “Transpyra”. Considerado um dos nomes mais relevantes de sua geração, ele é um dos que exaltam a importância da música com origem na região Norte. E chama atenção para o desconhecimento dela. “As pessoas não sabiam até um dia desses que a lambada nasceu e se desenvolveu na Amazônia a partir da década de 60. Ganhou o Nordeste e, posteriormente, o Brasil inteiro nos anos 80 e 90”.
Felipe lembra que a lambada é só uma das diversas sonoridades vindas de sua região. “Quando você mergulha vê que o universo musical é infindável e consistente. Qualquer uma das mais de 200 músicas da Dona Onete nos remete a um Brasil que ainda não tem, de maneira satisfatória, em nenhum livro de música brasileira”.
O recém-lançado “Ondas Tropicais” tenta dar conta disso. Nele, o jornalista Fernando Rosa (leia entrevista completa com Fernando Rosa) se debruça em alguns dos principais ritmos, artistas e álbuns que formataram a sonoridade da música da região. E dá enfoque em especial à lambada, à guitarrada, ao beiradão e a seus “fundadores” e definidores.
“As pessoas não sabiam até um dia desses que a lambada nasceu e se desenvolveu na Amazônia a partir da década de 60. Ganhou o Nordeste e, posteriormente, o Brasil inteiro nos anos 80 e 90.”
Felipe Cordeiro
“Para mim, o mais importante de todos é Mestre Cupijó, por ser ele, talvez, o único brasileiro que funde a música das três raças, indígena, negra e europeia. Depois, tem Pinduca, que fez do carimbó um gênero pop; Mestre Vieira, o inventor da lambada e da guitarrada; Teixeira de Manaus, o ‘pai’ do beiradão com seu saxofone particular e, por fim, Curica, o mestre maior do banjo amazônico”, explica.
Há outros destaques no livro, nomes que, segundo ele, são mistos de artistas e produtores e são fundamentais para a formatação das sonoridades amazônicas. “São artistas que deram forma ao conteúdo produzido na região, entre eles Alypyo Martins, Manoel Cordeiro e Carlos Santos, também dono da Gravasom, a gravadora decisiva para definir a música da região Norte nos anos oitenta, especialmente”, afirma Rosa.
O livro foi lançado de forma independente por sua própria editora, a Senhor F Livros, e apresenta também artistas pouco conhecidos, mas essenciais, como Solano, André Amazonas, Barata, Pantoja do Pará, Manezinho do Sax e tantos outros. Traz ainda uma seleção de discos históricos, além de uma discografia direcionada para quem quiser mergulhar nesse rico universo.
Isolamento e preconceito
Fernando Rosa cita o isolamento e a distância como elementos que dificultam a manutenção do sucesso dos artistas do Norte. Mas, para ele, há algo mais. “Acredito que o principal fator é a sonoridade ter um acento mais regional, e menos pop, no sentido de uma mediação com o ouvido médio nacional.”
E complementa: “Quando isso ocorreu, como com Pinduca e Fafá de Belém, por exemplo, a barreira foi vencida. Atualmente, vejo que isso ocorre com Dona Onete. Um exemplo radical da junção das duas linguagens – a regional, roots, com a modernidade instrumental. Também acho que os anos oitenta, com a supremacia do rock-BR, de certa forma brecaram a entrada de novos sons no cenário nacional”, explica.
Felipe Cordeiro também aponta várias dificuldades para as sonoridades amazônicas não extrapolarem para fora da região. “Acho que a distância cultural entre o centro econômico-político-midiático do Brasil e Amazônia sempre dificultou muito as coisas. Os códigos são outros. A Amazônia sempre foi folclorizada, tratada de maneira residual, ignorada.”
“Os termos de nosso linguajar foram praticamente excluídos da grande mídia brasileira”
Marco André
Para ele, a era digital possibilitou maior integração e ajudou a mudar um pouco as coisas. “As pessoas começaram a ver o que estavam perdendo: uma música com décadas de história, quase que independente da história do samba e da MPB, por exemplo, e experimentações consistentes, sobretudo no seu espectro mais popular”.
Para o músico e cineasta paraense Marco André, diretor musical de ‘Amazônia Groove’, os termos típicos vindos da região Norte são outro problema, muito menos que as melodias e os ritmos. “Nunca tivemos nosso linguajar assimilado pelo resto do país. É comum assistirmos novelas com o sotaque nordestino, sotaque caipira do interior de São Paulo, sotaque do Sul e até com o sotaque do Centro-Oeste, como acontecia na novela Pantanal. Os termos de nosso linguajar foram praticamente excluídos da grande mídia brasileira”.
Segundo ele, isso prejudicou muito a divulgação da música nortista. “Ela não entrava nunca nas programações das rádios, por ser considera muito regional ou estereotipada”, explica. André ressalta ainda que o Norte permanece sendo tratado pelo resto do país, principalmente pelo Sudeste, “como uma parte do Brasil que só serve para abastecer o centro mais desenvolvido.”
Filmes
Numa linha parecida pensa o guitarrista da banda manauara Alaídenegão e diretor do filme ‘A Poética dos Beiradões’, Rafael Ângelo. “Acredito que o tratamento dado à música do Norte é um reflexo do pensamento social sobre a região. Algo que vem se desenvolvendo desde a tomada de posse pelos colonizadores, em que toda forma de pensamento e vida diferente dos padrões eurocêntricos é rechaçada de alguma forma”.
‘A Poética dos Beiradões’ é um dos novos documentários que fazem um raio x da música da região. O filme aborda a produção fonográfica realizada por compositores e músicos ribeirinhos amazonenses, denominados de “músicos dos beiradões”. O trabalho tem foco nesses artistas populares que se dedicaram a uma música com o sabor e o calor dos festejos das beiradas dos rios amazônicos.
“Essa produção musical foi responsável por cristalizar no imaginário coletivo do estado o sotaque amazonense – elemento de estilo – de compor músicas que nos dias atuais é conhecido por ‘música do beiradão’, explica Rafael Ângelo, diretor do filme.
“Acredito que o tratamento dado à música do Norte é um reflexo do pensamento social sobre a região. Algo que vem se desenvolvendo desde a tomada de posse pelos colonizadores, em que toda forma de pensamento e vida diferente dos padrões eurocêntricos é rechaçada de alguma forma”
Rafael Ângelo
O documentário conta com entrevistas e relatos de músicos, cujas trajetórias musicais remontam da década de 1980 aos dias atuais. Traz também dados históricos, além de leituras/releituras de músicas que ficaram consagradas no meio artístico amazonense. Elas aparecem realizadas pelos próprios artistas remanescentes e músicos da atual geração.
“Queremos com o filme dar publicidade a obra destes compositores. Por serem nossas fontes inspiradoras em nossos trabalhos, considero injusto que estejam esquecidos, à margem da história”, diz Ângelo. Contemplado pelo Edital Natura Musical 2018, o filme está na fase de edição e deve estrear em novembro.
Mergulhando nesses personagens, ‘A Poética dos Beiradões’ revela um pouco da rica produção atual da música da região. Algo parecido faz ‘Amazônia Groove’, do diretor Bruno Murtinho. O filme tem sido uma boa forma de levar a sonoridade da produção musical do Norte do país pelo mundo afora. O documentário musical foi premiado este ano no South by Southwest (SXSW), em Austin, no Texas. O diretor de fotografia do filme, Jacques Cheuiche, também foi premiado, sendo laureado com o Prêmio Zeiss de Melhor Cinematografia pelo seu trabalho no projeto.
Veja o trailer de Amazônia Groove:
“Amazônia Groove” pode ser definido como um mergulho profundo e apaixonado na música da Amazônia, especialmente a do Pará. Um filme sensorial, como o diretor gosta de dizer, que trata da cultura das pessoas da Amazônia, focando na música, mas também na espiritualidade delas. O documentário investiga as origens dos sons da Amazônia, passeando pela floresta. Como resultado encontra desde músicos tradicionais responsáveis pelo boi-bumbá e por ritmos tradicionais até representantes das aparelhagens e do tecnobrega. Um panorama que inclui o rapper MG Calibre, o violonista Sebastião Tapajós e a cantora Dona Onete.
Idealizador do projeto, o cantor e produtor musical Marco André, diz que se inspirou no clássico documentário Buena Vista Social Club. “Fiquei fascinado pelo filme e pela possibilidade de fazer algo em prol da cultura do Pará. O objetivo à época era resgatar alguns importantes nomes da música do Estado. Eles estariam escondidos da mídia, mas, ao mesmo tempo produzindo arte de primeiríssima qualidade, assim como os músicos cubanos”, conta André, diretor musical do filme.
Ele conta que a escolha dos artistas que aparecem em ‘Amazônia Groove’ era a diversidade. “Como ao longo desses últimos 20 anos eu produzi inúmeros discos, dentre eles de vários artistas paraense. Eu privilegiei aqueles com quem havia trabalhado e que considerava relevantes à música local”. Dessa forma entraram para o time Paulo André Barata, MG Calibre, Dona Onete e Sebastião Tapajós.
“É a única região da América Latina em que a guitarra elétrica é um instrumento popular. Isso ocorre com a lambada e com a cumbia psicodélica peruana, os dois gêneros “puxados” por guitarras elétricas, e fonte de grandes mestres”
Fernando Rosa
“Também achava muito importante conhecerem a música experimental de Albery e Thiago Albuquerque. O suingue do Manoel Cordeiro, que viaja entre o Brega e a Guitarrada. E as programações do DJ Waldo Squash, um cara muito humilde e que já rodou o mundo tocando eletro-melody. Gina Lobrista, foi escolha do diretor Bruno Murtinho. Ele acertou em cheio em chama-la para o filme”, explica André.
Outro filme que deve contribuir na expansão das sonoridades com origem na Amazônia brasileira é o documentário ‘Ventos Que Sopram Pará’, do documentarista Renato Barbieri. Com Felipe Cordeiro como curador e apresentador, o projeto mostra quase 20 artistas de várias gerações da música paraense, de mestres da guitarra como Manoel Cordeiro, Aldo Sena, Curica e Ximbinha, até nomes como Jaloo e a Aparelhagem Crocodilo. O filme ainda não tem data de estreia, mas terá exibição pelo Canal Curta.
Mestres da guitarra
Não é por acaso que os mestres da guitarra são destacados no filme, o instrumento é base da música local e um dos principais elementos que a caracterizam até hoje. A tradição vem de longe e é marcada em toda região amazônica, incluindo Brasil e Peru.
“É a única região da América Latina em que a guitarra elétrica é um instrumento popular. Isso ocorre com a lambada e com a cumbia psicodélica peruana, os dois gêneros “puxados” por guitarras elétricas, e fonte de grandes mestres”, explica Fernando Rosa.
Segundo ele, no lado brasileiro, isso tem a ver com duas causas: uma é o uso do cavaquinho pela maioria dos futuros guitarristas, e outra, a influência do rock dos anos sessenta, dos Beatles. “Pinduca modernizou, ‘popificou’, o carimbó introduzindo duas guitarras (solo/base, do rock) em lugar do tradicional banjo. A guitarra peruana ainda conserva um pouco de “rock” em sua execução, mas a guitarra da lambada tem mais a ver com a linguagem do chorinho”, explica Fernando Rosa.
“Um som que remete à beira do rio, fruto da escuta radiofônica das músicas caribenhas, do choro mais popular e da jovem guarda. Tudo isso interpretado com sentimento e sonoridade cabocla, aí encontra o carimbó, a lambada. Antropofagia num nível pré-intelectual, orgânica”
Felipe Cordeiro
A guitarra é tão forte na região, que acabou batizando um gênero, a guitarrada, que nada mais é do que a lambada tocada com guitarra. Um dos herdeiros dessa escola, Felipe Cordeiro, segue no mesmo pensamento de Rosa. Para ele, a guitarrada traz forte influência caribenha e ao mesmo tempo um ethos ribeirinho. “Acho que quando as novas gerações (eu me incluo nisso) perceberam que podiam explorar esse caminho para fazer seu som, conseguiram achar um lance original e que teve impacto na produção nacional. Hoje muita gente bebe na fonte da guitarrada”, afirma Cordeiro.
Para ele, é “tradicionalmente um som que remete à beira do rio, fruto da escuta radiofônica das músicas caribenhas, do choro mais popular e da jovem guarda. Tudo isso interpretado com sentimento e sonoridade cabocla, aí encontra o carimbó, a lambada. Antropofagia num nível pré-intelectual, orgânica”, afirma o músico.
Felipe é um dos nomes proeminentes na música paraense, seguindo a escola das guitarras, do carimbó, mas também flertando com o technobrega. Filho de Manoel Cordeiro, um dos mestres guitarreiros paraenses, ele lançou recentemente seu quarto disco “Transpyra”, produzido em parceria com Kassin. O álbum mescla temas mais sérios, mas também canções leves como “Onde É Que Eu Vou Parar”. Entre as faixas, duas parcerias novas com Arnaldo Antunes, que já tinha sido parceiro dele, além de participações vocais de Tulipa Ruiz e Dona Onete.
Mulheres na música
Além de Felipe, outro nome surgido nos últimos anos é Dona Onete. Já veterana, ela só conseguiu lançar o primeiro disco em 2012, aos 73 anos, mas hoje é um dos maiores expoentes da música paraense. Este ano, ela lançou o terceiro álbum de estúdio, “Rebujo”, consolidando uma carreira tão fulminante quanto brilhante.
Referência para a música amazônica atual, ela é um exemplo vivo da criatividade da região. A cantora e compositora passeia com desenvoltura pelos diversos ritmos, absorvendo as características locais à sua música ao mesmo tempo soando universal. “A inspiração vem de histórias que vivi, algumas aconteceram comigo, outras com pessoas próximas. Em alguns casos falo sobre as lendas, as comidas. Tudo é inspiração”, diz.
Dona Onete tem se apresentado não apenas em festivais pelo Brasil, mas em pouco tempo construiu uma carreira no exterior. Em 2017, a cantora e compositora emplacou seu segundo disco, ‘Banzeiro’, na primeira posição do World Music Charts Europe. Naquele ano, foi capa de uma das maiores revistas de world music no mundo, a “Songlines”, e, pela quarta vez, circulou pela Europa, com shows em Inglaterra, Alemanha, França e Holanda. Em outubro deste ano, ela vai para a Finlândia representar o Brasil na tradicional feira Womex. Antes, vai comandar o show Pará Pop no Palco Sunset do Rock in Rio, com outros artistas paraenses.
“Nas rodas de carimbó existia, sim, um pouco de preconceito. Somente os homens podiam ser mestres, cantar… Hoje em dia, acredito que quebrei um tanto dessa barreira e abri algumas portas”
Dona Onete
Onete é uma das poucas mulheres de sua geração que conseguiram furar um espaço ocupado preponderantemente por homens. Ela não reclama, lembra que o marido não deixava expressar seu lado de compositora, mas acha que as coisas foram acontecendo como tinham que ser na carreira. “Eu vivi e fiz muitas coisas. Nem imaginava gravar um álbum. As coisas foram caminhando naturalmente. Nas rodas de carimbó existia, sim, um pouco de preconceito. Somente os homens podiam ser mestres, cantar… Hoje em dia, acredito que quebrei um tanto dessa barreira e abri algumas portas”, afirma a artista.
Antes de ela ganhar os holofotes, poucas outras mulheres se destacaram na música vinda do Norte. A cantora Fafá de Belém e a cantora e compositora Nazaré Pereira, nascida no Acre e criada no Pará, que fez sucesso nos anos 70 e 80, são dois dos poucos exemplos. Isso, porém, tem mudado nos últimos anos. Nas gerações mais recentes, vários outros nomes vêm ganhando destaque no cenário nacional, como Gaby Amarantos, Lia Sophia, Luê, Juliana Sinimbú, Aíla e Natália Matos.
Coletânea
A coletânea ‘Jambú e os sons míticos da Amazônia’ segue o mesmo caminho dos filmes e do livro, traçando um bom resumo da produção nortista. Acima de tudo pela riqueza e diversidade musical. Mas também mostrando uma radiografia de como aquele era um ambiente totalmente dominado pelos homens.
Lançada na Europa pelo selo alemão Analog Africa, a compilação tem como foco a produção da década de 70. A ideia foi do fundador do selo, Samy Ren Redjeb e do DJ australiano Carlo Xavier. O DJ esteve no Brasil e numa viagem a Belém em 2012 se encantou pela música da Amazônia.
A coletânea foi lançada em streaming por várias plataformas. Além disso, pode ser comprada em CD e vinil duplo com conteúdo especial. Eles vêm acompanhados de um livreto de 24 páginas com anotações, entrevistas e fotos de arquivo.
Ouça a coletânea aqui:
O trabalho reúne nomes conhecidos e outros nem tanto. Um dos mais famosos é Pinduca, que aparece com três faixas, incluindo a clássica “Vamos Farrear”. Tem também Vieira e Seu Conjunto e Verequete e O Conjunto Uirapurú. O cearense Messias Holanda é uma boa surpresa. Ele é mais conhecido pelo sucessos no forró, como “Pra tirar Coco”. Aqui ele aparece com dois carimbós.
Integram ainda a coletânea, a tradição dos grupos de carimbó, samba-de-catete, siriá e bois-bumbás. São eles Os Muiraquitãns, Os Quentes de Terra Alta, Magalhães e Sua Guitarra, Janjão, O Conjunto De Orlando Pereira e Grupo da Pesada.
O disco revela um aspecto não tão ressaltado quando se fala dos sons da Amazônia: a herança afro-brasileira. Algumas das faixas traz temas e sonoridades claramente oriundos da população negra. São ritmos menos relacionados com tradicionais ritmos caribenhos. Mais conectados com o ambiente percussivo de terreiros proveniente e da religiosidade de origem africana.
Boa parte dos próprios temas são ligados ao universo do candomblé e umbanda, falando de orixás e de religiosidade. Isso aparece, especialmente, em faixas como “Meu Barquinho”, de Janjão ,e “Carimbó para Yemanjá”, de Orlando Pereira. Também em “Xangô”, de Magalhães e sua Guitarra.
Novidades da Amazônia
Apesar de um passado prodigioso e de veteranos de alto nível na ativa, a música amazônica segue apresentando novos e interessantes nomes e até ritmos. O technobrega no Pará é um bom exemplo, atualizando o tradicional brega com o uso de recursos tecnológicos de todo tipo. As aparelhagens são fenômenos locais, com diversas festas, eventos e artistas. Até agora, no entanto, pouca coisa desse universo conseguiu ultrapassar as fronteiras do estado.
Assim mesmo, entre os estados da região Norte, o Pará continua com a cena mais proeminente. Aos poucos, entretanto, o Amazonas também começa a chamar atenção. Para Fernando Rosa, o estado tem uma cena importante nesta década, com uma quantidade bem grande de grupos e artistas que produzem uma música de qualidade.
“Destacaria Marcelo Nakamura, por exemplo, um ótimo compositor e cantor, com um disco e alguns singles gravados. Alaidenegão é uma banda mais conhecida em Manaus e com um certo conhecimento em nível nacional, com dois ótimos discos. Tem uma banda nova chamada Mady e Seus Namorados. Eles resgatam a lambada e o beiradão com humor e qualidade instrumental mais roqueira”.
“Acho que é hoje a música (da Amazônia) apropriada para um novo Brasil, dançante, de raiz, mas pop, latino, sexual sem apelação etc.”
Fernando Rosa
Ele destaca ainda o Orquestra de Beiradão do Amazonas, “um combo que moderniza o som do gênero”. E Rosivaldo Cordeiro, “um dos músicos mais atuantes do Amazonas”, que vive entre Manaus e Paris. Ele está concluindo um tributo aos três mestres da guitarrada do Amazonas – Oséas, André Amazonas e Magalhães da Guitarra.
Rafael Ângelo, que é integrante da banda Alaídenegão, lembra como a tradição dos ritmos locais continua viva influenciando artistas contemporâneos em Manaus, inclusive seu grupo. “A lambada, o beiradão e o brega estão presentes no imaginário coletivo da nossa cidade. Lembro claramente de artistas como Os Tucumanus surgirem com a proposta de incorporar essa sonoridade mais tradicionais em suas composições. Nós seguimos essa linha, nos inspirando nestas referências. Claro, fazendo nossas experimentações assim como os músicos daquele período”
Festivais
Os festivais realizados na região são boas oportunidades de se conhecer essas novidades e os cenários de duas das principais cidades amazônicas. O Se Rasgum, em Belém, costuma mesclar atrações nacionais e locais de estilos diversos. O festival paraense, que este ano acontece de 1 a 3 de novembro, ainda não anunciou as atrações da edição desse ano.
O Passo a Paço, em Manaus, é considerado o maior de artes integradas da região. Ele reúne atividades de música, artes e gastronomia no Centro Histórico da cidade. A edição deste ano acontece entre 5 a 8 de setembro, recebendo nomes de peso. Enter eles estão o norte-americano CeeLo Green. Tem também Zeca Pagodinho, Letrux, Emicida, Fagner e Liniker e os Caramelows. Ao lado deles se apresentam mais de 30 artistas locais. Entre eles, estão Mady e Seus Namorados, Pororoca Atômica, Manauaras em Extinção e Sinezio Rolim.
Futuro promissor
Ainda distante da devida atenção, o cenário musical amazônico segue com muitas produções e novidades. Os filmes, livro, discos e shows devem, entretanto, ajudar a colocar em foco os artistas locais. Felipe Cordeiro considera que todas essas iniciativas contribuem para uma nova valorização dos sons da Amazônia. “Acho que amplia o espectro da música brasileira nesse século 21. No século passado tudo foi muito concentrado na história (importantíssima) do samba, mas acho que o 21 dará mais voz a Amazônia”.
Para Marco André, a música da região é marcada pela ousadia e a diversidade e ressalta a produção paraense. “Pode até não acontecer das coisas atingirem o grande público. Mas, sempre, de alguma forma tocam os especialistas ou os que buscam por novidades”. Ele ressalta que a Amazônia sempre tem algo a dizer ao planeta, além de sua fauna e flora. “Falta-nos maiores investimentos”.
Fernando Rosa reforça o discurso. Para ele, o Brasil sempre teve ciclos de incorporação das sonoridades regionais ao caldeirão musical nacional e pode ser a hora da música do Norte. “Nos anos setenta, tivemos a “invasão nordestina”, depois a música baiana. Acho que hoje é a música apropriada para um novo Brasil, dançante, de raiz, mas pop, latino, sexual sem apelação etc”.