novela Velho Chico

MPB e Brasil profundo voltam ao horário nobre da TV em novela

Quem tem assistido à nova novela das nove da Rede Globo, ‘Velho Chico’ (assista aqui), pode estar se surpreendendo não só pela qualidade e capricho técnicos mostrados, mas também pela trilha-sonora apresentada. Caetano Veloso, Maria Bethânia, Elomar, Alceu Valença, Amelinha, Ednardo e referências a músicas tradicionais nordestinas pululam em meio a uma trama de coronéis, luta por poder, seca e a vida no entorno do rio São Francisco.

No primeiro capítulo, logo de cara, os cantores e violeiros Xangai e Maciel Melo aparecem como os repentistas Egídio e Avelino, numa bela cena que uniu música, cordel, teatro de bonecos. Em seguida, a música ‘Meu Primeiro Amor’ de Herminio Gimenez, numa Versão de José Fortuna e Pinheirinho Júnior, é cantada por atores numa festa para voltar depois na voz de Maria Bethânia. Em seguida, um grupo de agricultores no campo canta ‘Sábiá’ de Luiz Gonzaga. ‘Peixe’ do Doces Bárbaros é entoada. Além de músicas de domínio público, em meio a homens do campo. Eram só as primeiras pistas de uma volta honrosa da velha e surrada MPB ao horário nobre da TV Globo, onde está o minuto mais caro e disputado da televisão brasileira.

Trilha sonora

Sob responsabilidade do produtor musical Tim Rescala, a trilha sonora da novela é recheada de brasilidade e vai inundar os televisores brasileiros nos próximos meses com uma sonoridade que andava afastada das novelas. Para se ter uma ideia, o folhetim anterior das 21 horas, ‘A Regra do Jogo’, por exemplo, tinha como foco ritmos e artistas mais sintonizados com as modas atuais: forró eletrônico, funk carioca e suas derivações, nomes badalados do pagode recente, além, é claro, do sertanejo universitário e da pseudo mpb moderna de Ana Carolina. Mesmo que houvesse, era pouca coisa além disso.

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Cena da novela ‘Velho Chico’

Outras novelas até vinham inserindo artistas e músicas de uma MPB mais clássica, especialmente com uma sonoridade aparentemente mais sofisticada. Nenhuma delas, no entanto, com um foco tão claro numa música brasileira mais ampla, que dialogasse com o universo menos urbano e mais ligado a um Brasil profundo, além do Leblon e da Avenida Paulista. Um universo ligado a ritmos populares tratados de forma menos descartável. Um Brasil menos imediatista e consumista e mais sensível e diverso.

“O Nordeste é o foco (da trilha). São os toques de um sentimento nacional com características nordestinas”, disse Rescala em uma entrevista sobre a música ouvida em ‘Velho Chico’”. Não por acaso, o que se ouve na abertura é uma nova versão para a icônica ‘Tropicália’, de Caetano Veloso. Com arranjo e regência do produtor, a canção foi regravada por Caetano com acompanhamento da Orquestra Sinfônica de Heliópolis.

Veja a abertura de ‘Velho Chico’:

A trilha traz ainda duas outras composições do baiano: ‘Como 2 e 2’, interpretada por Gal Costa, e ‘Triste Bahia’, feita pelo santamarense em cima de texto de Gregório de Mattos e presente no clássico álbum “Transa”. Uma escolha pouco óbvia, como boa parte do restante da trilha que coloca à luz em importantes, mas não tão populares atualmente, nomes da música brasileira e nordestina. Como Ednardo, que aparece com ‘Enquanto engoma a Calça’, dele mesmo com Climério; Amelinha, que surge com ‘Gemedeira’, de Robertinho do Recife e Capinan; ou mesmo Tom Zé, com ‘Senhor cidadão’ e Alceu Valença, com ‘Flor de tangerina’. Obras ou artistas que até as rádios especializadas em música brasileira costumam desprezar.

Mais surpreendente e acertada ainda é a inclusão da turma da chamada cantoria na novela. Quem imaginaria ouvir, por exemplo, o conquistense Elomar em pleno horário nobre televisivo nos dias atuais? Ele aparece com a composição ‘Incelença pro amor retirante’, cantada ao lado de Xangai. Ambos reaparecem, acompanhados de Geraldo Azevedo e Vital Farias no ‘Pot-pourri Suíte Correnteza’, presente no álbum “Cantoria 2” e que reúne ‘Barcarola do São Francisco’, de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando; ‘Talismã’ e ‘Caravana’, de Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

Outra composição marcante dessa turma presente no folhetim global é ‘Veja Margarida’, de Vital Farias, numa interpretação de Marcelo Jeneci. As novas gerações marcam presença também com a cantora e compositora paulista Renata Rosa, com sua ‘Me leva’, além de Thiago Pethit com ‘L’Étranger (Forasteiro)’, uma versão dele e Hélio Flanders para a música de Dominique Pinto e Rafael Barion, aqui com participação da cantora Tiê. Ainda aparecem na trilha Chico César, interpretando ‘Serenata (Standchen)’, de Franz Schubert, Ludwig Rellstab e Arthur Nestrovski, Paulo Araújo, com sua ‘I-Margem’, Marisa Monte e Dadi com ‘Da Aurora até o Luar’ e Geraldo Vandré com ‘Réquiem para Matraga’.

Há, no entanto, outras boas surpresas soltas pelos capítulos da novela. Se citamos alguns do primeiro capítulos, já surgiram também, por exemplo, duas improváveis canções de Zé Miguel Wisnik. Para quem não conhece, ele é compositor, músico e ensaísta, e ligado ao grupo Corpo e à Vanguarda Paulista. Faz um tipo de trabalho de alta qualidade, mas muito distante do absorvido pela mídia. Uma das composições dele que é ‘A olhos nus’, interpretada por Ná Ozzetti, presente no grande álbum que os dois lançaram no ano passado e que ainda vai aparece na novela.

A outra é ‘Mortal loucura’, música de Wisnik feita sobre versos barrocos de Gregório de Matos e interpretada por Maria Bethânia. Uma gravação inédita que se enquadra no universo do sertão nordestino mostrado em ‘Velho Chico’. A música foi criada para a trilha sonora de Onqotô (2005), balé do Grupo Corpo, e interpretada originalmente por Caetano Veloso. Nessa nova gravação, a faixa tem execução de Marcio Arantes (baixo synth e guitarras), Siba (rabeca), Guilherme Kastrup (percussão), Paulinho Dalfin (viola caipira).

Walter Smetak

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Alguns dos instrumentos de Walter Smetak em cena da novela.

Outra feliz surpresa em ‘Velho Chico’ é a utilização de objetos originais de Walter Smetak em cena. O Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) cedeu três instrumentos-esculturas integrantes da coleção de Smetak: um violão eólico com cabaça, uma espécie de ampulheta giratória posicionada na horizontal com cordas sobre a superfície, denominado ‘ronda 2’, e tímpanos grandes, que são instrumentos de percussão.

Cabe aqui também explicar que Smetak foi um músico, pesquisador e professor nascido na Suíça, que viveu na Bahia nos anos 60/70. Atuou como violoncelista, compositor, escritor, escultor e inventor de instrumentos musicais, foi professor na Escola de Música da Universidade Federal da Bahia e influenciou toda uma geração de artistas, que viriam a criar a Tropicália, dentre os quais Tom Zé, Gilberto Gil e Caetano Veloso.

Ouça aqui a trilha de ‘Velho Chico’:

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