Manuela Rodrigues

Manuela Rodrigues mergulha em si mesma e olha para o mundo no álbum “Manu”

Manuela Rodrigues - Manu
Our Score
3.7

Importante nome da produção musical baiana, a cantora e compositora Manuela Rodrigues (@manuelarodriguescantora) segue em sua trajetória fora da curva, com assinatura marcante em sua música e trabalhos singulares. Seu novo álbum, Manu, que ganha aqui as linhas de Julli Rodrigues, segue por esse caminho e reforça sua capacidade de cantar seu tempo com maturidade e bom humor.

Por Julli Rodrigues*

Em seu quinto disco, Manu, lançado no último mês de março, a cantora e compositora baiana Manuela Rodrigues consegue olhar para dentro e para fora ao mesmo tempo, com igual atenção, sem se perder na narrativa em momento algum. O trabalho, que marca a celebração dos 25 anos de carreira da artista, traz questionamentos sobre a vida em tempos de redes sociais, capitalismo tardio e supostas soluções mercadológicas para os problemas da vida cotidiana, incluindo também as reflexões mais íntimas sobre ser e estar no mundo. O álbum ainda conta com uma produção competente e uma seleção acertada de feats: para o ouvinte, fica a sensação de que cada artista convidado está exatamente na faixa em que deveria estar.

No material de divulgação, Manuela define o álbum como “metade solar, metade mais denso”, destacando a forte presença dos violões e a menor participação de instrumentos eletrônicos. São sete faixas autorais, sendo uma em parceria com Ian Cardoso, que também é responsável pelas guitarras do disco. Quase todas as músicas são inéditas: a única exceção é “Nobre Mulher”, já gravada pela conterrânea Aiace em duas ocasiões, sendo uma delas com a participação da própria Manuela, no álbum Eu Andava Como Se Fosse Voar.

A importância de perceber sem pressa

Escolhida como single do disco, “Minimalista” é, de cara, uma das faixas que mais chamam atenção, por ser praticamente um tratado de Ciências Sociais encapsulado em quatro minutos e vinte segundos. Na letra, Manuela traz uma reflexão bem-humorada sobre os efeitos do capitalismo e da tecnologia na vida das pessoas, dialogando indiretamente com o paradigma da aceleração contemporânea, desenvolvido pelo geógrafo Milton Santos.

O conceito estabelece que os avanços tecnológicos e científicos impõem novos ritmos à vida das pessoas e das sociedades, bem como à divisão do trabalho. Vivemos correndo, temos o tal “fear of missing out” (medo de ficar de fora, em tradução livre), aderimos a tendências, ouvimos áudios em 2x e até as chamadas “curas” para os nossos problemas são produtos embalados e vendidos para consumo.

Tudo isso é brilhantemente abordado na letra de Manuela, em um modo semelhante ao que fez Pitty na música “Boca Aberta”, do álbum SETEVIDAS (2014): “E é sempre essa boca aberta / tragando tudo pelo caminho / de tudo que se aproveita / de tudo só quero o agora / amanhã acordo e resmungo ‘eu quero minha vida de volta'”. E não para por aí, já que o filósofo e líder indígena Ailton Krenak faz uma participação declamando texto extraído da sua palestra “Com o que sonha a terra”, realizada na Festa Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô), em 2022. Fica a constatação que, de fato, os humanos piraram de diversas formas. E ainda é só a primeira música do álbum.

Complementando a narrativa da faixa anterior, “Deixa os ETs” brinca com dissonâncias sonoras e imagens inusitadas que giram em torno do esoterismo. Dessa vez, o objetivo é falar sobre o contexto da vida gerida pelos algoritmos, com a participação especial de Jadsa, outro grande nome da cena baiana. Não poderia haver uma escolha melhor de artista convidada, já que “Deixa os ETs” caminha por harmonias estranhas e tem um pé no experimentalismo, tal qual o trabalho de Jadsa.

Já na terceira música, o coco “O que me instiga a cantar”, Manuela se põe a refletir sobre a própria missão no fazer artístico e marca uma posição firme: mais do que fama, conveniências, editais ou aparecer na TV, o que vale é “manter a alma acesa e o arrepio da canção”. Há algo nessa faixa – talvez a sonoridade predominantemente acústica; quem sabe a metalinguagem quase irônica da letra – que chega a lembrar um pouco o trabalho da paulistana Ná Ozzetti, eterna vanguardista. Ou, trazendo a discussão para terras nordestinas, a música de Manuela dialoga diretamente com o recado certeiro da potiguar Juliana Linhares na música “Bombinha” (Carlos Posada), do álbum Nordeste Ficção (2021): “Quem explode é bombinha / eu quero é cantar pros meus / deixa que eu mesma decido que rainha sou eu (…) e não quero ficar rica / e nem quero me armar”. O que é “fazer sucesso”, afinal de contas?

Pisciana, feminina e intensa

Nas faixas seguintes, Manu assume um tom mais intenso, confessional e emotivo. “Sou de Água”, quarta canção do disco, é uma parceria com Ian Cardoso que traz a participação do pernambucano Zé Manoel. “Uma música extremamente pisciana”, pensei ao escutá-la, antes mesmo de checar a data de nascimento de sua autora e confirmar que sim, ela é de Peixes. Nenhuma surpresa por aqui. A presença do capricorniano Zé Manoel confirma que a sintonia astrológica de signos de terra e água também pode se traduzir em colaborações musicais frutíferas. O resultado é uma densa teia de vozes e texturas eletrônicas mescladas com a percussão de Iuri Passos.

E a sintonia astrológica é tão grande que se repete na faixa seguinte, o samba “Cabe Um Tanto”, com a participação de outra capricorniana: a paulistana Fabiana Cozza. Segundo Manuela, a composição busca dialogar com “Gota D’Água”, clássico de Chico Buarque. A atmosfera é envolvente, um tanto melancólica, adequada às agruras de um eu-lírico que aceita permanecer recebendo migalhas de afeto. Nada mais pisciano do que a sofrência, afinal. As duas faixas que encerram o disco se voltam para as diferentes faces do “ser mulher”.

Primeiro, a já citada “Nobre Mulher”, que agora ressurge na voz de sua compositora, tratando da mulher que se mantém forte mesmo diante de abusos. Com versos como “Nunca se pense louca / Nunca se deixe morta / Quebre o silêncio e nasça / Não olhe pra trás”, a canção é beneficiada pela intensidade da interpretação de Manuela e pela tensão criada pelo baixo acústico de Alexandre Vieira. Em seguida, a funkeada e sexy “Delírio Letal” chega falando de desejo e prazer com todas as letras. Uma forma um pouco mais floreada e “classuda” de dizer “o meu corpo em gozo é um recado ao patriarcado”, como escreveu e cantou Tigresa no EP Vrauuu!, de 2022.

O fato é que, em quase 26 minutos de música, Manuela Rodrigues entrega um trabalho muito coeso. Um disco sintonizado com o espírito de seu tempo, ao trazer discussões atuais de forma bem-humorada e leve, sem esvaziar as temáticas; e que, ao mesmo tempo, reflete claramente a subjetividade de sua criadora. Uma transmutação sensível que talvez só uma nativa de água seja capaz de fazer.

* Julli Rodrigues é jornalista, pesquisadora musical e DJ seletora. Trabalha como produtora musical na Educadora FM da Bahia. Mais detalhes sobre a autora aqui.

Manuela Rodrigues - Manu
Manuela Rodrigues - Manu
Reader Rating0 Votes
3.7

Para quem gosta de música sem preconceitos.

O el Cabong tem foco na produção musical da Bahia e do Brasil e um olhar para o mundo, com matérias, entrevistas, notícias, videoclipes, cobertura de shows e festivais.

Veja as festas, shows, festivais e eventos de música que acontecem em Salvador, com artistas locais e de fora dos estilos mais diversos.