Há quase dois anos, a cantora carioca Mãeana encontrou um mote que a colocou em evidência e mostrou sua melhor faceta como intérprete, unindo os mundos de João Gomes e João Gilberto. Em Mãeana Canta JG, a artista mostra uma assinatura criativa que muitas vezes passa longe de intérpretes na atualidade, não se contentando apenas em faze versões de canções de sucesso. Ela vem lotando quase toda semana o aconchegante espaço Casa da Mãe, no Rio Vermelho, numa ressignificação da obra de um dos grandes compositores da atualidade, João Gomes, ao colocar seu piseiro ao lado da obra de um mestre incontestável, João Gilberto. O colaborador Leo Pessoa esteve em um desses seus shows e trouxe suas impressões.
Por Leo Pessoa*
É fascinante ser público de espetáculos musicais em vários locais da cidade e descobrir o quanto a música depende do espaço onde é tocada. Em festivais de shows ao ar livre, com milhares de pessoas, artistas eventualmente podem empolgar o público. Entretanto, entusiasmar o público de eventos musicais em grande área, talvez seja uma tarefa mais fácil do que impressionar o público em espaços fechados, com, por exemplo, noventa metros quadrados.
Essa é a área compartilhada entre público e artista na Casa da Mãe, localizada no bairro do Rio Vermelho, do outro lado da pista da casa de Iemanjá. Quem me impressionou por lá foi Mãeana com seu projeto de união dos Joões. Nesse casamento improvável, surgiu o conceito Mãeana Canta JG, no qual a cantora interpreta as canções eternizadas nas vozes de João Gomes e João Gilberto. Apesar de já ter habitado o Circo Voador, no Rio de Janeiro, o Festival Radioca, em Salvador, e o Festival Coma em Brasília, é na Casa da Mãe onde as apresentações do projeto, sucesso de público, encontra morada fixa, semanalmente. Atualmente, às segundas e terças-feiras.
Como ocorre em toda casa e casamento, o espaço foi pensado, sentido, testado ao longo dos dois anos dos encontros iniciados em Outubro de 2022. Adaptações e redimensionamentos aconteceram por conta do êxito do projeto. As mesas compartilhadas que serviam ao público foram retiradas e as pessoas, agora em pé, são envolvidas no balanço e no repertório de músicas que versam sobre cuidado, afetos, amores românticos, suas ilusões e desilusões.
Apesar dos neopuristas acusarem Mãeana de higienizar ou se apropriar do piseiro, mesma acusação que fizeram a João Gilberto em relação ao samba, a mistura conceituada e apresentada por ela é tão genial quanto a bossa nova e o piseiro.
O violão de Bem Gil, a percussão de Sebastian Notini e o vocal de Mãeana constroem a mistura alquímica entre o gênero brasileiro mais cultuado no exterior – está nos filmes de Hollywood, na literatura japonesa de Haruki Murakami, por exemplo – e um dos estilos nacionais mais consumidos na região nordeste do Brasil. Não é forçado, é suave, orgânico. Com a proposta, aproximam as novas gerações da esquecida bossa nova, bem como posiciona o popular piseiro ao público purista conservador que faz questão de desconhecê-lo.
Para tanto, o set list da apresentação é composto majoritariamente pelas músicas do álbum disponível nas plataformas de streaming Mãeana canta JG. As releituras, ora de João Gilberto, ora de João Gomes, movimentam o público, mas principalmente os pout-pourri, a plateia é convidada ao novo território, a um ambiente de dissolução das fronteiras (elas são tão somente linhas imaginárias) , nos quais ambos são entrecruzados.
O ápice acontece justamente nas intepretações de “Digo ou não digo/Insensatez”, “Aquelas coisas/Besame mucho”, “Fica comigo/ Chega de saudade” e “Mete um Block Nele/’S Wonderful. É nessas canções que a habilidade com a mistura entre os Joões fica mais evidente. Não há beijo forçado entre a música urbana carioca sessentista com a atual música evocativa da vaquejada rural frequentadora das pequenas, médias e grandes cidades nordestinas. Apesar dos neopuristas acusarem Mãeana de higienizar ou se apropriar do piseiro, mesma acusação que fizeram a João Gilberto em relação ao samba, a mistura conceituada e apresentada por ela é tão genial quanto a bossa nova e o piseiro.
O repertório do conceito JG é interrompido em poucos momentos, mas, ainda assim, fica no entorno da proposta. Na primeira interrupção, Mãeana canta Rita Lee, no ciúme de “Desculpe a auê”, além de “Meu doce vampiro”. Na execução dessa última, a cantora se eleva em um banco e seu figurino impecável no estilo “boiadeira psicodélica” ganha a inclusão de asas cintilantes que balançam e aludem a formas femininas, outro ponto de beleza cênica do espetáculo.
A segunda escapada dos JGs, na verdade, os reverencia. “Petrolina Juazeiro” música do Trio Nordestino é interpretada celebrando as cidades natais de Gomes/Gilberto. As águas do São Francisco separam, mas a estrutura geográfica da ponte conecta as duas cidades. É a metáfora da irmandade entre os Joões.
Toda casa tem suas regras, suas particularidades. Sobre a relação artista/público antes do início do espetáculo, no dia dez de setembro, Bem Gil fez algumas recomendações à plateia. Solicitou que as conversas durante o show deveriam acontecer na varanda, no espaço externo e ao ar livre da casa, para que o burburinho não atrapalhasse quem queria ouvir as canções. Segundo ele, no dia anterior, a execução do show teve de ser interrompida por conta dos ruídos da plateia que, também, dificultam os músicos em seu trabalho. Outra recomendação foi para que as pessoas não estacionassem ao lado do palco na passagem para o bar e banheiros. Mesmo com alguns “chiu” requisitando silêncios, no dia em que estive, a plateia estava mais preocupada em interagir com a show proposto, ouvindo, cantando e dançando junto as melodias.
O encontro musical de Mãeana com o público na Casa da Mãe terá uma pausa. Retornará, segundo a própria cantora, no mês de novembro, às portas do verão baiano. Enquanto isso, o conceito Mãeana Canta JG será ouvido em palcos de outras casas e cidades brasileiras.
Por fim, registro a simplicidade e beleza cenográfica do espetáculo. Elaborado com diversos tecidos, um altar com as iniciais JG, com imagens de cavalos e flores iluminadas, o palco remete aos altares coloridos mexicanos montados no dia de los muertos. Por meio da lírica oral traduzida na delicadeza invasiva e aconchegante da voz de Mãeana, naquele apertado espaço do Rio Vermelho, de poucos metros quadrados, enxerguei o óbvio através de telescópios sonoros: a produção musical autenticamente brasileira é fruto de misturas improváveis, derivada de reorganizações identitárias catalisadas nos mais diferentes cantos e recantos do país. E é a essa produção múltipla – urbana e rural, popular e elitista, dentre tantos outros contrastes desse Brasil – que Mãeana, ao invés de profanar, sacraliza os ritmos. Faz uma justa homenagem a dois grandes gênios e gêneros da música brasileira.
* Leo pessoa é professor de rua, interessado na vida da cidade da Bahia