Focado em novos nomes da música brasileira em estilos diversos, Festival calango mostra força do Fora do Eixo e coloca Cuiabá no radar.
Quando se fala em ir para Cuiabá, é quase unânime a reação de estranheza das pessoas. Calor, distância, isolamento, desconhecimento. Para se ter uma idéia, a outra capital mais próxima fica a quase 700 quilômetros de distância rodoviária. É impossível não chamar atenção também para o fato de que a cidade tem um dos climas mais quentes do país, com média anual de 26 graus, chegando traquilamente aos 40 graus de agosto a outubro. É calor insuportável de dia e de noite. Cuiabá é mais uma daquelas cidades desconhecidas da maioria e uma incógnita para quem vai pela primeira vez. Agora imagine quando se pensa que lá, há sete anos, acontece um dos festivais independentes mais interessantes e falados do país e que, para surpresa de muitos, tem gerado bons frutos.
O Festival Calango já vem se tornando uma tradição local e caminha para se firmar no cenário nacional consolidando um formato próprio, focado em apostas de novos nomes da produção musical de regiões e estados, os mais diversos, e na comunhão dos coletivos. Realizado nos últimos dias 30, 31 de outubro e 1° de novembro, o evento reuniu 48 bandas, num misto de novidades quentíssimas, bandas ainda na semente, veteranos de estrada e um bom público.
O Calango acaba fazendo em três dias um grande apanhado do cenário nacional, reunindo bandas do máximo de lugares possível, sem apelar pra medalhões. Produzido pelo coletivo Cubo, o festival conta, através do Circuito Fora do Eixo, com a participação de dezenas de coletivos de várias partes do país em sua realização.
Bandas, produtores e jornalistas se batem logo na chegada no aeroporto com o bafo quente da cidade e com uma equipe bem jovem do receptivo do festival. E é interessante notar como é articulada a rede dos coletivos do Fora do Eixo. Além de pessoas da própria Cuiabá, vê-se muita gente dos coletivos parceiros de outros estados trabalhando na produção do festival. A contribuição este ano, no entanto, foi além da produção e, através do Edital de Circulação Fora do Eixo, lançado neste ano pelo CFE, algumas das bandas da programação foram escaladas pelos coletivos.
Este talvez seja o maior trunfo, e ao mesmo tempo, o maior problema do festival. A aposta em estimular os coletivos contribui para o fortalecimento das cenas locais e acaba dando esse ar de apanhado nacional do festival, mas, ao mesmo tempo, promove bandas ainda sem muito preparo para encarar um festival importante como o Calango. Resultado, muitas bandas tocando, sendo que apenas 1/3 delas tem preparo para tocar em qualquer festival do país. É a briga entre a proposta política versus a proposta artística.
Segundo Pablo Capilé, essa foi mesmo sempre a aposta do festival. “As bandas que vinham antes do Amapá, Acre, Roraima, eram muito ruins, mas as pessoas de lá entendiam a necessidade de chamar essas bandas para estimular as pessoas a comentarem o cenário local. Hoje as bandas já são bem melhores. Talvez quem acompanha perceba que estamos lançando bandas novas, porque antes era cota política para as cenas serem comentadas. Como a gente defendia, essas cotas seriam pontuais, o próximo passo operacional é que bandas legais passem a existir”.
Grandes surpresas
De fato, o Festival Calango acertou em parte nessa aposta, apresentando ótimas novidades vindas de várias partes do país e algumas bandas legais já existem. Se algumas delas já começaram a aparecer em um ou outro festival, foi em Cuiabá que parece que parte delas deu um passo importante para o início de uma carreira mais profícua. É o caso da Mini Box Lunar, do Amapá, que se apresentou na segunda noite de festival.
Diante de um desfile de bandas apostando em HC, metal, punk e letras em inglês, soou como um bálsamo um grupo entrar no palco e deixar todo mundo de queixo caído com uma música brasileiríssima, mas simplesmente sem rótulo. Desconcertando na abertura, remetendo à banda Calypso, ao longo do show o grupo provocava ainda mais surpresas enquanto apresentava seu repertório repleto de referências. Um caos musical, um som inclassificável e anárquico, mesclando ao mesmo tempo rock, música infantil, psicodelia, tropicalismo, 70´s e música brega, hipnótico e com uma veia pop certeira.
Clima descontraído, com diversão absoluta no palco, no qual as duas vocalistas roubavam a cena com danças, representações quase teatrais e duetos meio loucos, enquanto a banda trazia as sonoridades múltiplas. Se Os Mutantes surgissem hoje seria mais ou menos assim. Poucas bandas desconcertam dessa forma e o melhor, ganharam o público roqueiro, com o carisma e essas mil referências. Saíram ovacionados.
Outra surpresa foi a banda Caldo de Piaba, do Acre, que fez um show mais certinho na primeira noite, mas também sem ligar muito para ter que se encaixar em um rótulo único. Eles fazem um muito bem dosado som instrumental que mescla rock, lambada, guitarradas, funk, ska, brega, com psicodelia e até jazz. O resultado soa como se fosse um rock instrumental com assinatura brasileira, com direito a músicas de Aldo Sena e uma sensacional versão de “I Want You (She’s So Heavy)”, dos Beatles, que parecia ser feita para soar naquele formato.
A primeira noite, aliás, foi das bandas instrumentais e experimentais, como a Macaco Bong que, em sua terra, manda soltar e prender, como dizem, e não poderia deixar de ser um dos headliners do festival. Pra variar, mandou muito bem. Nessa linha, teve também o bom O Garfo, de Fortaleza, que trouxe uma proposta interessante, como eles se definem, meio que stoner-pop, meio que post-eletro. E é por aí mesmo, menos cabeçudo do que bandas instrumentais costumam ser e mais sério do que uma banda pop deveria ser. A Herod Layne, de São Paulo, não fez feio com seus sons experimentais, mas soou meio derivativa.
Aliás, esse é um dos grandes problemas de um festival que aposta em bandas muito novas, boa parte soava derivativa demais. A sensação era que várias das atrações tentavam soar como seus ídolos, mas passavam muito longe e tornavam os shows sem grandes atrativos e, muitas vezes, cansativos. Outro incômodo era com o fato de cantar e inglês, o que ressaltava ainda mais as deficiências e reforçava a sensação de apenas tentar repetir sonoridade dos outros. Não que cantar em inglês seja pecado, alguns dos melhores shows do festival vieram de bandas assim.
Caso dos goianos da Black Drawing Chalks, que mostraram porque vêm sendo a sensação dos festivais do Brasil este ano (foram escalados em sete só em 2009). Afiadíssimos no palco, fazem daqueles shows para não deixar ninguém esquecer porque é bom ouvir rock. Rock pesado, no talo, bem feito e que deixa o público em êxtase. Foi assim em Cuiabá, deve ser em qualquer lugar por onde tocam.
Também em inglês, os paulistas da Holger provaram que merecem os elogios que vêm colhendo. Navegando em outra praia, fazem um escarcéu no palco: trocam de instrumento, fazem dancinhas engraçadinhas, vão tocar no meio do público… Tudo isso a base, claro, de bom humor e de uma sonoridade que remete a Pavement, mas passa também pelo que bandas como Vampire Weekend vêm fazendo, trazendo afro-pop para o meio indie. A simpatia e descontração no palco, mesclado aos sons de guitarras, falsetes e tecladinhos, deram muito certo: foram uma das raras bandas que tiveram o púbico pedindo biz no Calango.
A Cassim& Barbária reúne ex-integrantes de várias boas bandas de Santa Catarina e o resultado não poderia ser diferente, música de alta qualidade. Em alguns momentos no palco eram duas baterias, guitarras, efeitos e um som difícil de rotular, passeando por Kraut rock, indie rock, experimentalismos e até Tropicália. Deixaram, ao menos, uma lição, mais do que atitude, rock é música.
Sabendo ser Pop
E está aí um dos grandes méritos do Calango, em poucos outros lugares os destaques seriam as novidades. No último dia de festival, a banda paranaense Nevilton se revelou como uma daquelas apostas que poderia facilmente se tornar sucesso nacional. Pelo menos os atributos eles têm, trazem energia jovem, possuem uma veia pop invejável, capacidade de criar canções boas e fáceis e são excelentes de palco.
Um simples power trio que faz música direta, mastigável, mas, ao contrário do que é feito em geral na música pop que circula no mainstream, não é para tirar o gosto, cuspir e jogar fora. É Rock-Pop dos bons. Poucas vezes se vê um vocalista em cima do palco chamar pra si a responsabilidade, jogar junto da torcida e trocar passes com as composições de forma tão sincera e espontânea. Sem medo de encarar a platéia, a Nevilton fez um grande show, como se fosse uma banda super conhecida. Não é qualquer um nesse circuito independente que incendeia o público com músicas próprias, botando todo mundo pra cantar, dançar e pedir biz.
Essa veia pop também foi apresentada pelo carioca Jonas Sá que, sem apostar tanto na veia rocker e sim em temperos diversos, fez outro dos melhores shows do festival. Bom, ressaltar que se você conhece o disco e acha muito igualzinho, pop sem grandes surpresas, veja o show, é muito diferente, muito melhor. Primeiro porque Jonas é um show man, performático, inventa danças e é outro que encara o público. Segundo porque a música ganhava outros contornos no palco, acompanhado da Do Amor, como banda base, mandou ver com ritmos caribenhos, funk e rock. Merece muito aparecer em outros festivais por ai. A surpresa foi deixar a Do Amor fazer uma música no final. Como bônus para eles e para o público, o grupo voltou ao placo para meia hora de um grande show.
Houve também uma série de shows, que se não se destacaram tanto, mostraram bandas com poder de fogo para crescer e aparecer mais. Como a Vinil Laranja, do Pará, com um vocalista carismático e bom de palco e um rock de muita qualidade; a Calistoga, de Natal, ótimos no palco, com uma porrada sonora, gritos, guitarras altas e muita energia; ou a Venus Volt, de Campinas, com um bom show de seu post-punk contemporâneo (!). A sensação, no entanto, era de volta aos anos 90, com um número surpreendente de bandas cantando em inglês. Inserir bandas argentinas foi outro acerto do Calango, Norma, Falsos Conejos e o Proyecto Gomez, que representaram muito bem o rock dos hermanos.
Mas se as apostas eram nas novidades, os headlyners de fora do estado também souberam garantir o seu espaço. Mesmo não sendo atrações super populares, fizeram o que foram chamados para fazer, levar público e realizar os esperados bons shows. Não poderia ser diferente, até porque eram os nomes com mais tempo de estrada. Seja Wander Wildner, com o seu sempre divertido show de punk brega rock, que mesclou músicas dos discos mais recentes, “No Ritmo da Vida” e “La Cancion Inesperada”, com alguns de seus hits da carreira solo e dos tempos de Replicantes.
Sucesso garantido na primeira noite e a sensação de que é sempre bom ouvir boas canções. Seja com o punk rock hardcore certeiro do Devotos na segunda noite ou com o guitarrista mineiro Toninho Horta e sua sonoridade “Clube da Esquina”, que levou um bom público já de cabelos brancos para frente do palco. Mesmo o suingue de outro mineiro, Marku Ribas. Todos eles souberam aproveitar bem a oportunidade de se apresentar para um público diferente. Nesse espírito, o festival soube muito bem inserir no meio rocker nomes de outros gêneros, que se deram bem. Caso do Rap, com o local Linha Dura e o paulista Emicida.
Com uma produção caprichada, organizada e sem excessos, o saldo final foi bastante positivo. A proposta de apresentar cenas e bandas de vários lugares foi muito bem sucedida. Evidente que há problemas quando se aposta nisso. O grande número de bandas, além de tornar o festival cansativo e quase impossível para qualquer um acompanhar todos os shows, reuniu bandas de níveis bem distintos. Se você monta uma banda, que já parece com tantas outras, que coloque ao menos um dedo próprio na história, alguma informação fora do mais do mesmo. Como a porrrada que a já veterana Walverdes consegue imprimir em cima do palco. Um power trio certeiro mostrando em meia hora que dá pra ser rock, pesado, alto e compreensível.
Algumas bandas muito verdes que não poderiam estar num festival desse calibre. Entre as bandas locais, a grande maioria ainda está longe do nível dos dois principais nomes do estado, Macaco Bong e Vanguart, mas podem e devem amadurecer para encarar um grande palco. Ainda assim, dá para se destacar a promissora Fuzzly, o bom e divertido show dos Inimitáveis e, especialmente, a Vitrolas Polifônicas, banda que aposta na pouco usual mescla de blues, rock e samba, e que traz uma talentosa garota de apenas 17 anos nos vocais, guitarras e composições. Infelizmente, logo depois do show, a banda anunciou seu fim.
A maior parte das atrações não fez feio, bons shows, bandas corretas, mas sem grande brilho. Muitas delas pareciam cumprir tabela, não pelo show em si, mas pelo som que faziam. Parecia talento e vontade desperdiçados em querer soar como outros. É positivo no final das contas passear pelo que anda sendo feito em várias partes do país e notar que a boa música está muitas vezes fora do eixo. O Calango e os festivais acabam tendo esse mérito, oferecendo a oportunidade de se conhecer um pouco mais dessa música. Que venham outros.
Veja mais fotos do festival e aqui também
O jornalista Luciano Matos viajou a convite da produção do Festival Calango
As fotos foram cedidas pela produção do evento
O Vídeo é de autoria de Bruno Nogueira