Vivemos os tempos da hegemonia do streaming, mas será que chegamos no fim dessa história e o mercado de música vai permanecer dessa forma atual? Duvidamos disso, apesar de reconhecer que esse modelo vai durar ainda um bom tempo. Gostamos de propor aqui no el Cabong discussões sobre essa lógica do mercado, para isso abrimos espaço para profissionais do mundo da música opinem e mostrem sua visão sobre tudo isso. Dessa vez recebemos o produtor e músico Leo Moraes para falar dos problemas e dos caminhos que esse nosso mercado dominado pelo streaming pode(ria) tomar, a partir de uma publicação dele no Facebook.
Veja também:
– Você não tem culpa, mas a plataforma tá explorando seu artista preferido.
– Que música ouvimos nas rádios brasileiras?
– Opinião: O Devido pagamento; por detrás de cada canção há um autor.
por Leo Moraes*
O fato de uma pessoa ser crítica a um sistema, não significa que ela não possa fazer uso desse mesmo sistema, ainda mais sendo ele a opção hegemônica. Então não, não vou tirar minhas músicas das plataformas de streaming, nem recomendo que ninguém o faça.
Mas uma coisa é clara: em meus vinte e tantos anos atuando no mercado musical eu vi e vivi várias mudanças radicais nos modelos de distribuição de música, e afirmo que o atual é de longe o pior para os artistas. E, em um ambiente de tantas e tão rápidas mudanças, acredito ser razoável tentar pensar, trabalhar, e propor soluções para que a próxima mudança, que sem dúvida virá, seja melhor pra quem de fato cria e produz música.
Vou começar apontando o problema, pra depois tentar enxergar algum possível caminho. Vamos pensar no mercado fonográfico com três pilares básicos.
O primeiro é o da PRODUÇÃO, ou seja, o motivo de tudo existir, que em termos de cadeia produtiva são os compositores, intérpretes, músicos, arranjadores, produtores musicais, estúdios, etc.
O segundo é quem consome essa música, ou seja, o OUVINTE. Nesses dois primeiros pilares a coisa é bem direta: tem gente que faz música, e tem gente que quer ouvir música.
O terceiro pilar é onde a coisa se complica, e é onde as mudanças mais profundas ocorreram. Eu vou chamá-lo de INTERMEDIÁRIO, sem nenhum sentido pejorativo. São as organizações que fazem as músicas que a turma da PRODUÇÃO cria chegarem até o OUVINTE. Antigamente consistia de gravadoras, distribuidoras, rádios, TV’s, etc. Depois virou as lojas de MP3, tipo iTunes. Hoje são principalmente as agregadoras e as plataformas de streaming.
Bom, vamos analisar a situação atual de cada um dos pilares.
Pro OUVINTE está tudo lindo. Nunca se pagou tão pouco pra se ter tanta música. Nos longínquos anos 90, se você gastasse 20 Reais por mês em música, você teria uma dúzia de CD’s por ano. Hoje, por esse mesmo valor mensal, você tem todos os CD’s do mundo.
Pro INTERMEDIÁRIO também não está nada mal. Não só pela ausência de distribuição física, estoque, etc (cauda longa, lembram?), mas por um motivo que é o X da questão: Nunca se pagou tão pouco pra se ter tanta música! E pro INTERMEDIÁRIO isso tem um significado muito diferente do que para o OUVINTE.
Antigamente, pra uma gravadora ter um catálogo, era necessário um investimento no pilar da PRODUÇÃO. Ela tinha que fazer um contrato com um artista, bancar a produção de um disco, gastar na divulgação, etc. Hoje o INTERMEDIÁRIO tem acesso a todas as músicas do mundo de graça, não tendo risco nenhum, tendo que pagar apenas pelo que tiver um determinado volume de execuções.
Bom, chegamos ao elo fraco da história. O pilar da PRODUÇÃO. Hoje quem faz música está com uma faca no pescoço, porque se todo mundo escuta música é no Spotify e no YouTube, se você não está lá, você não existe. Então você investe em um disco, assume todo o risco, e coloca lá com a certeza de que pra receber 50 contos você vai ter que ter milhares de execuções.
Mas o que é o pior é saber que, assim como você, tem outras centenas de milhares de artistas que ganham 50 contos, e isso significa muitos milhões pras plataformas. Fruto de zero risco, e zero investimento na música por parte deles. A recente declaração canalha do CEO da Spotify, desrespeitando artistas consagrados, igualando-os a um adolescente desafinado de Tik Tok, além das manifestações de gente como Dylan, Crosby, e outros tantos mostra que isso não é um problema só dos pequenos e médios, mas dos grandes também.
O que me traz à seção de propostas desse texto. Eu já falei disso aqui, mas vou insistir. O problema não é a tecnologia de streaming em si, mas o modelo de negócios monopolizado que virou, especificamente na música. Não dá pra todas as plataformas terem todas as músicas. No áudio-visual não é assim. Um monte de gente hoje paga assinatura de Netflix, Amazon, HBO, e ainda compra filmes em pay-per-view, simplesmente porque cada uma tem o seu próprio conteúdo.
Se os detentores dos grandes catálogos de música negociassem exclusividade, certamente conseguiriam acordos melhores. Não faz sentido ter vários serviços se todas as músicas estão em todos. “Mas aí se um artista que eu gosto estiver em uma, e outro em outra, eu vou ter que assinar duas plataformas?” Vai. “Ah, mas aí pra montar minha playlist ia ficar ruim, uma música numa plataforma e a outra na outra”.
Paciência. Antigamente você tinha que trocar o CD. Se você quiser assistir Gambito da Rainha e depois Little Fires Everywhere você tem que sair da Netflix e ir pra Amazon. Sem contar que a coisa mais fácil seria fazer um aplicativo que tocasse músicas de todas as plataformas que a pessoa assina, unificando as playlists. “E pirataria?” Não acredito que seria um problema relevante. É igual filme mesmo, um monte de gente assiste a essas séries pirateadas. Mas num mundo de streaming, é chato ficar baixando coisa, acho que passamos dessa fase, nos celulares nem cabe tanta música baixada.
E imagine pras agregadoras? Hoje elas ganham fazendo a intermediação entre os artistas e as plataformas e, sinceramente, se não fosse por elas a situação seria ainda pior. Elas garantem que o (pouco) dinheiro chegue na ponta. Elas poderiam ajudar muito na negociação de artistas médios e pequenos com as plataformas, e cumprir um papel ainda mais importante no processo, também ganhando mais.
Na real? Talvez a solução nem seja essa, talvez eu esteja completamente equivocado. Mas assim como a indústria fonográfica menosprezou o efeito do MP3, acredito que o mesmo vai acontecer com o atual modelo de streaming. Do jeito que está, tão ruim pra um pilar essencial da cadeia, não tem como durar muito tempo. Os sintomas estão aí, alguma coisa vai acontecer. Tem que acontecer.
* Leo Moraes é produtor musical e músico. Sócio fundador da produtora Pato Multimídia, integrou o selo colaborativo Membrana Música, o Coletivo Pegada, a Rampa Incubadora de Bandas, o Festival Transborda e a Lupa Música. É idealizador e sócio-proprietário d’A Autêntica, casa de shows em Belo Horizonte.