Lançando o novo disco ‘Japanese Food’, Giovani Cidreira fala sobre quase tudo nessa entrevista.
Sexta-feira, tarde ensolarada, Rio Vermelho. O cantor e compositor Giovani Cidreira chega para a entrevista e sessão de fotos numa charmosa rua do bairro com saída para o mar. O dia é especial: lançamento na internet do seu primeiro CD, ‘Japanese Food’ (Natura Musical e Balaclava).
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“É um disco que carrega a experiência que tenho com música e com as pessoas que conheci até agora. Ele me diz que já tenho dez anos de carreira”, fala, no início da conversa. Em seguida, percorre lembranças. Tudo começou na casa da sua avó, em Salvador. Giovani gravava em fitas cassete as canções que criava para os amigos, as paixões e a família. Era pré-adolescente, já havia morado no município de Castro Alves, interior baiano, e estava de volta à cidade natal. Nesse período, ganhou um violão. Tocava o instrumento, compunha e escutava LPs de música brasileira na radiola. “É assim até hoje. No meu trabalho falo das pessoas, das coisas que eu vivo”, afirma o músico, que já passou pelas bandas Gramodisco e a saudosa Velotroz, destaque da cena baiana entre 2009 e 2012. Com o fim do grupo, iniciou a carreira solo e lançou um EP com sete faixas. Na nova obra, com doze canções, ele transita com singularidade pelos sons brasileiros setentistas de Clube da Esquina, Fagner e Caetano Veloso, o rock cortante do Legião Urbana e o indie lo-fi do canadense Mac Demarco. Faz a sua trilha nas fronteiras dos estilos e embaralha os rótulos em um profundo mergulho nas próprias vivências.
Na entrevista que segue, feita por Daniel Oliveira*, Giovani falou do processo de gravação, das referências, das músicas e da temporada que planeja passar em São Paulo. Também comentou o bom momento da cena de Salvador e criticou os roqueiros de hoje: “são muito conservadores”. “É do rap que tem saído as melhores coisas de texto e poesia”, afirma.
Ouça o disco enquanto lê a entrevista ou baixe no site de Giovani:
Daniel Oliveira – O que o disco Japanese Food, como uma unidade, te diz?
Giovani Cidreira – É como se eu olhasse para trás. Ouço este CD e vejo tudo, é como se me olhasse no espelho e ele me mostra tudo que já passei, sacou? Carrega a experiência que tenho com música e com as pessoas todas que conheci até agora. Ele me diz que já tenho dez anos de carreira. Tem gente que diz: “olha o cara novo de Salvador que lançou disco”, mas já estou ralando há um tempão. Com 14 anos já estava tocando no Nhô Caldos. Nunca teve começo, porque gravava fitinhas cantando músicas sobre os meus amigos e a minha família com 12 anos, na casa de minha avó. É assim até hoje, não mudou nada. No meu trabalho falo das pessoas, das coisas que eu vivo. Ainda estou no quarto de minha vó gravando as fitinhas.
Qual foi o ponto de partida para a gravação do álbum?
Tudo começou lá em Tadeu Mascarenhas (músico e produtor), no estúdio Casa das Máquinas, por conta dele e de Nancy (Viegas, cantora). Estava fazendo os shows do EP e não tinha perspectiva de quando iria gravar o disco. Só tinha as 20 músicas. E fui lá em Tadeu, como sempre vou chorar, falar da vida, dos problemas (risos) e ele propôs que a gente inscrevesse. Foi no dia que abriu o edital. Eu vi Natura Musical e nem sabia o que era. Ele me explicou e eu pensei: “massa, vamos fazer isso aí”. A gente fez tudo lá.
Na fase de seleção das músicas, o que pensou para a estética sonora?
Queria, primeiro, que não tivesse a ver com as paradas que fiz muito ligadas ao rock, às coisas da Velotroz. Quando peguei a relação das músicas e comecei a pré-gravação das 20, mesmo antes de decidir as doze que entrariam no disco, sabia mais ou menos o que queria para cada canção. Mas, como um todo, não pensei em uma sonoridade. Pensei que as músicas deveriam ser como elas são. Ouço um bocado de coisa ao mesmo tempo. Trazia Portishead, Síntese, Legião Urbana. Desde o início, gostaria que fosse mais pop do que as outras coisas que fiz, na Velotroz e no EP, apesar da dureza das canções. O nome Japanese Food vem muito disso. O assunto é sério, mas a forma não precisa ser.
“Rock para mim está mais ligado à postura. Sempre esteve, na verdade. É o jeito de você fazer. Os roqueiros que eu vejo atualmente parecem idiotas, chatos. São muito conservadores.”
Você já tinha a experiência de gravação com a Velotroz. Porém, ali era um trabalho de banda, com muita gente envolvida e, portanto, os processos de escolha, provavelmente, eram mais coletivos. Dessa vez, como foi o cotidiano no estúdio?
Foi uma das coisas mais angustiantes da minha vida, posso dizer assim (risos). Estava acostumado a fazer tudo com banda. A gente entrava num quartinho e fazia tudo. Éramos amigos desde guri. Olhava para Caio (Araújo) e Maicon (Charles, in memoriam), na época da Velotroz, e eles já sabiam o que era. Fazia com a boca e eles já pegavam. Dessa vez foi completamente diferente. Me via meio sozinho e tinha um prazo também. Ficava na loucura. Junix (baixista e guitarrista no disco) me ajudou muito nisso.
Você completou 10 anos de carreira. Já passou por duas bandas, fez um EP e agora lança o disco. Nesse conjunto, sonoramente o que Japanese Food significa em sua carreira?
Esse disco é uma junção dessas coisas que já fiz, do que estou fazendo agora e, ao mesmo tempo, aponta um norte do que pretendo fazer.
Vê esse norte em alguma faixa?
Em Festa de Judas. É uma música que foge um pouco do meu jeito de compor. Costumo fazer um negócio meio épico, que vai sendo construído e tem uma explosão no final. Não estou acostumado a fazer refrão. E é a primeira música que fiz a partir de uma base, de um beat mesmo. Agora tenho feito isso em casa. Descobri esse universo das batidas e de compor em cima, sem o violão.
As músicas indicam as suas referências, mas o álbum não tem um estilo definido. Em algumas canções estão mais evidentes as sonoridades brasileiras setentistas, em outras o rock do Legião Urbana ou o indie de The Strokes e Mac Demarco. Tudo sempre muito misturado. O que foi mais presente na sua formação musical e no período anterior à elaboração do disco?
A minha formação mesmo é de música brasileira. Na adolescência a galera gostava muito de rock, Linkin Park, Slipknot, e eu era o menino estranho que escutava vinil de música brasileira em casa. Muito Roberto Carlos, por exemplo. Sou fanático por Roberto Carlos. São coisas que, mesmo que eu não queira, estarão na minha música. Ouvi tanto que é intrínseco. Também ouvi muito The Strokes. Acho que aparece nas músicas. É a banda de fora do país que mais gosto. No rock não rolou mais uma coisa tão legal, tão potente. E Mac Demarco escutei muito nos últimos dois anos. Na época da gravação, redescobri Michael Jackson e pensei muito no disco 1999, de Prince, em Festa de Judas.
Você já disse num show que a música Um Capoeira, umas das parcerias com Paulo Diniz, é uma canção de resistência. No arranjo, remete ao afrobeat. Como surgiu a ideia da letra?
Foi uma das últimas a ficar pronta. Encontrei um conhecido e ele falou que estava com medo dos meninos da praia do Buracão, disse que o lugar ficou perigoso. Ele estava com medo porque os meninos eram pretos, estavam de boné. Isso na época da reforma do Rio Vermelho. Fiquei com essas duas coisas na cabeça. Eles acham, o prefeito e esse conhecido, que são donos da rua. Estavam querendo tirar a galera que fez isso aqui de verdade. E essa é a minha galera. Um dos meninos da praia poderia ser eu ou Filipe (Castro, percussionista). É uma música que trata de preconceito racial, de injustiça, um lance que nunca tinha falado em disco. Isso com muita metáfora.
A faixa Pássaro Prata tem a participação da cantora e compositora Josyara. Ela já havia gravado vocais no seu EP e, recentemente, vocês fizeram o espetáculo Coração Selvagem, no qual interpretaram músicas de Belchior. Como foi o início dessa conexão?
Vi Josy pela primeira vez num aniversário de uma amiga. Fiquei maluco. Ninguém sabia tocar violão bem, ela chegou, pegou a guitarra e tocou muito bem. A gente ficou: “o que é isso?” (risos). E na época do EP a gente se aproximou, nos encontrávamos muito. E fiz a música para ela logo depois de uma conversa. Fala da nossa origem, das dificuldades, dos nossos sonhos.
Quando você começou a carreira, existia uma indústria de entretenimento, ligada à axé-music e ao Carnaval, ainda muito forte em Salvador. Ao mesmo tempo, o rock predominava na cena alternativa (independente). De alguns anos para cá, isso tem se reconfigurado com um interesse crescente dos artistas por sons da cultura popular baiana – samba, pagode, ijexá, entre outros. O que pensa sobre esse momento?
Essa é a coisa mais natural, porque o rock enquanto gênero já acabou, né? É um negócio que foi diluído em vários estilos. Hoje não vejo o rock puro como uma coisa a ser considerada. Não vejo nada de bom há algum tempo. É uma coisa que já passou. Rock para mim está mais ligado à postura. Sempre esteve, na verdade. É o jeito de você fazer. Os roqueiros que eu vejo atualmente parecem idiotas, chatos. São muito conservadores. Para mim, BaianaSystem e Igor Kannário são muito mais rock. Kannário talvez seja o grande roqueiro da Bahia. É o cara que contesta as coisas, bagunça. Ainda bem que está rolando isso aqui. Nunca estive tão feliz com o que está sendo produzido. Nunca gostei tanto das coisas que estão sendo produzidas aqui como agora. Gosto muito de Jadsa (Castro), ela vai dar muito o que falar. Tropical Selvagem, ÀttooxxÁ, Lívia Nery também. Tenho escutado muito o rap de Salvador. Gosto muito do rapper Dark, que era da banda Contenção 33.
“O Rap é de onde tem saído as melhores coisas de texto e poesia. Chegamos a um alto nível de sofisticação no nosso mercado sem precisar das gravadoras, dos grandalhões.”
As produções de rap têm se destacado no país inteiro…
É de onde tem saído as melhores coisas de texto e poesia. Chegamos a um alto nível de sofisticação no nosso mercado sem precisar das gravadoras, dos grandalhões. Claro que via edital, via patrocinador. Isso é muito bom. Ao mesmo tempo, ainda escrevemos mal. Quando comparo a nossa produção com a do rap, fica um buraco. Percebo no rap uma poesia cortante que não tem limite. Estão falando de uma coisa, depois muda para outra. Uma coisa cosmopolita, bonita, na palavra. Tem algo a dizer e não é a mesma coisa de sempre.
Você fechou com a produtora Balaclava e está indo no final do mês passar uma temporada em São Paulo. Quais são os próximos planos?
Em breve também vai ter o videoclipe de Festa de Judas, dirigido por Liz Riscado que também fez o de Vai Chover. Quero levar esse disco para um bocado de lugar. Se eu puder, rodo o Brasil todo.
* Texto e entrevista por Daniel Oliveira.
** Fotos por Desirée Britto