Os caminhos trilhados por Luiz Tatit (luiztatit.com.br) convergem na canção: na sua atividade de pesquisa na Universidade de São Paulo (USP), onde, mesmo aposentado, continua dando aulas no programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas; e no seu trabalho como cantor e compositor de música brasileira. Desde meados dos anos 1970, quando criou o Rumo – grupo então composto por alunos da graduação em música e que integrou a Vanguarda Paulista -, o processo de adequação de melodia, letra e entoação ocupa lugar essencial em seus interesses acadêmicos e criativos. “Quase que o Rumo era uma proposta teórica. Lá em 1974, era um grupo que se reunia para conversar sobre as formas de composição de canção”, conta. De lá para cá, ele elaborou uma extensa discografia, entre álbuns solo, com a antiga banda e em parceria com outros artistas, e já possui cerca de dez livros, em que aprofunda a investigação sobre a canção como linguagem própria. Na suas palavras, “diferente tanto da música quanto da literatura”. No início de fevereiro, Tatit lançou o disco de faixas inéditas Palavras e Sonhos pelo selo Dabilú. Produzido pelo seu filho, Jonas Tatit, o álbum conta também com as participações de Marcelo Jeneci, Juçara Marçal (Meta Meta) e Ná Ozzetti. Ainda em 2016, ele também irá publicar um novo livro, Estimar Canções – Estimativas Íntimas na Formação do Sentido (Ateliê Editorial), “Já estou lendo as provas e deve sair ainda neste semestre”. Confira abaixo entrevista com o artista, professor e pesquisador, que falou do disco, das antigas parcerias em composições, das características da canção e do atual momento da música feita no Brasil.
Por Daniel Oliveira
Você possui uma extensa pesquisa sobre a canção. O início desse trabalho coincide com a fase do grupo Rumo?
Luiz Tatit – No início, quase que o Rumo era uma proposta teórica. Lá em 1974, era um grupo que se reunia para conversar sobre as formas de composição da canção, como ela tinha nascido, o que caracterizava a linguagem, as diferenças de outras formas musicais. Tínhamos reuniões semanais. Mas depois isso acabou se tornando objeto de tese para mim a partir do final dos anos 1970. Um aprofundamento da questão da compatibilidade entre melodia e letra para gerar a canção.
A cena musical daquela época, que integrava um circuito universitário, contribuiu para que essa discussão fizesse parte da origem do Rumo?
Luiz Tatit – O Rumo é um pouco anterior ao clima da música de vanguarda em torno do Lira Paulistana. O que havia era o seguinte, a maior parte do grupo tinha feito música na USP. E a gente teve muito contato com a música erudita de vanguarda, sobretudo a música dodecafônica, inspirada na Escola de Viena. Então as ideias de que você só deve compor quando tem uma coisa nova a dizer era uma espécie de bandeira. E hoje tenho certeza que isso acabou influenciando a nossa maneira de pensar, mesmo num campo completamente diferente, a música popular. A gente foi procurar o que na canção causaria uma mudança significativa, assim como fizeram na música erudita, que foi a eliminação da tonalidade. Isso na canção não teria reflexo nenhum, porque a canção nem sabia que era tonal. Então para a gente a questão estava em outro lugar, por isso chegamos nesse embrião, que é a entoação da fala como elemento norteador. A gente precisava mexer nessa entoação.
A partir daí você elaborou uma abordagem diferenciada da canção. Poderia explicá-la um pouco?
Existe canção sempre que há relação entre melodia, letra e voz. As variações de ritmos não importam. E quando você começa a estudar isso, entra uma série de fatores para analisar como se dá a compatibilidade entre melodia e letra. Por exemplo, quando você fala de amor e separação as melodias começam a ficar lentas e as vogais duram mais, como em Djavan e Milton Nascimento. Isso é o estudo de como a melodia se compatibiliza com a letra, é nisso que a gente acabou entrando na época das teses para demonstrar em cada canção como um componente estava se compatibilizando com o outro. Mas, em geral, o que chamava atenção é que não eram os críterios musicais que serviriam de base, porque os compositores não eram músicos. Na hora da composição a canção é uma linguagem tão diferente da música quanto da literatura. A questão para o cancionista é compatibilizar essas duas coisas.
Falando sobre o álbum, como os sonhos e a inspiração atravessaram o processo de criação?
Luiz Tatit – Bom, isso na verdade dá um nome, digamos, poetizado. Quando a gente faz canções, ela vai de tanto a gente insistir. A gente espera que saia algo que convença. No entanto, existe todo o mito dos sonhos se revertendo em inspiração. No caso da canção, ela tem um vínculo muito forte com a fala cotidiana, então tudo aquilo que a gente pode expressar, já sai com melodia e letra, mesmo nas nossas conversas cotidianas. Quando estou compondo, as orientações da melodia são muito impelidas pela fala. Quase que a inspiração vem da própria conversa, tanto da melodia quanto da letra. Mas às vezes a gente fica um tempão com a melodia na cabeça até definir a letra.
Então você busca adequar uma letra com uma melodia já pronta…
Luiz Tatit – Na verdade, todo mundo faz isso. O que normalmente é um certo engano é que você já tem um tema prévio para falar. Na verdade, a última coisa que fecha é o personagem, o tema. Você fica falando frases com letras que não estão conectadas entre si. E depois você vai arrumando e a última coisa que acaba nas composições, normalmente, é a letra. Mas pode acontecer o contrário também, ter uma letra cristalizada e tentar achar uma melodia apropriada. Sem dúvida, sempre é uma busca de adequação.
“Para eles, rock não é canção, rap não é canção, então pode ser que esteja acabando mesmo, porque cada vez tem menos esse tipo de canção, meio violonística, originária da bossa nova. Mas a canção em si está em plena efervescência, com mais estilos, gêneros, manifestações”
O álbum tem canções com José Miguel Wisnik, Marcelo Jeneci e Dante Ozzetti, parceiros já recorrentes na sua carreira…
Luiz Tatit – O Dante é com quem faço música há mais tempo e com mais quantidade. Com o Zé Miguel Wisnik tem meia dúzia ou um pouco mais. A gente faz constantemente, mas com espaços maiores entre uma e outra. Com Jeneci também já tem um certo tempo. Essa do disco, Estrela Cruel, fizemos há uns cinco anos. Ele toca muito bem, consegue tocar e cantar gravando em um só take. Tem também o Emerson Leal, que é baiano. É um compositor baiano muito interessante, que conheci há pouco tempo. Ele havia feito um songbook do Tom Zé e me passou para fazer um prefácio. Daí conheci, ele começou a me mostrar as músicas e achei muito bonitas. Das Flores e Das Dores foi a primeira que fizemos e deu certo.
Na faixa Musa da Música, você canta Mostra / Pra quem gosta / que aposta / na canção / Zela / Por Aquela / Que Protela / A extinção, uma homenagem à canção. Como foi a criação dessa faixa?
Luiz Tatit – A música foi feita antes do meu disco anterior. E daí fiz um show com Ná Ozzetti e o Dante lembrou da música, a gente restaurou e apresentamos. Ela foi feita num período que estava se falando muito que a canção iria acabar. Aquela história do depoimento do Chico e do Tinhorão. Eles não tinham consciência que o rap, por exemplo, também é canção, e diziam que a canção estava acabando. Mas eles se referiam ao gênero romântico, a canção dos anos 1960/1970, aquela coisa que chamam popularmente de MPB. Para eles, rock não é canção, rap não é canção, então pode ser que esteja acabando mesmo, porque cada vez tem menos esse tipo de canção, meio violonística, originária da bossa nova. Mas a canção em si está em plena efervescência, com mais estilos, gêneros, manifestações. A afirmação é uma bobagem, embora entenda o contexto. Isso serviu para a gente brincar um pouco com esse tema.
Você citou o rap e nos últimos anos esse gênero tem se misturado cada vez mais com outros estilos da canção brasileira, como o samba e o brega, através de artistas como Emicida e Criolo. Como você percebe isso?
Luiz Tatit – O rap é a canção mais pura que você pode imaginar. É a própria fala, que já tem entoação e mensagem na sua autenticidade. Eu até vejo uma certa oscilação entre bossa nova e rap. Bossa nova é uma canção que traz muitos elementos musicais, às vezes nem importa tanto o conteúdo da letra, ela pode até ser meio infantilizada, de tanto que a preocupação é harmônica, melódica, etc. O rap é o contrário, o interesse é tão forte na letra, por causa das denúncias, que deixa de importar o caráter melódico, divagativo. É como se fosse duas extremidades da canção, uma tentando sair pela música e outra pela fala. E, respondendo outro aspecto da sua questão, o rap começou de uma forma mais dura, quase que servindo só aos protestos, na época do começo dos Racionais. Aquilo tinha um dureza que era quase uma praça de contestação. Mas depois veio o Marcelo D2 e essa turma nova. Hoje o Emicida é um rap muito mais interessante do que aquele dos anos 1990, tem até mensagens passionais sem deixar de ser rap. Sinto que o rap evoluiu bastante no Brasil.
A bossa nova e o tropicalismo transformaram a música brasileira. Você percebe algum outro movimento ou atitude estética que aponta para mais um passo na construção da identidade cancional do Brasil?
Luiz Tatit – A bossa nova, na verdade, só poderia ter acontecido porque a linguagem da canção já estava madura. Naquele momento ela pode fazer um investimento maior na parte musical, melódica, procurando novas saídas para não ficar naquela passionalização do período anterior. Esses dois movimentos foram quase simultâneos, a diferença foram poucos anos. Hoje a gente vê como eram próximos.
“A ideia de novidade perdeu um pouco de sentido, o que existe hoje é mais a especialidade. Cada grupo e cada artista é especial. Não existe mais essa ideia de vanguarda.”
Tanto que todos os tropicalistas fazem referência a João Gilberto…
Luiz Tatit – Todos começaram ouvindo João Gilberto e queriam fazer alguma coisa próxima daquilo, só que ao invés de fazer na música, estavam mais preocupados em fazer na letra. Até porque eram pessoas muito mais afastadas da música do que os bossa-novistas. Então para eles era mais fácil fazer na letra. No caso da bossa nova, você tinha Jobim, Carlos Lyra, que eram ligados à música e tinham mais condições de explorar a música tecnicamente. Os tropicalistas foram para o lado da letra e fizeram revoluções tremendas. A letra mudou depois do tropicalismo. Já estava desenhando até a canção como performance. Mas, respondendo, essa era a época de movimentos, porque estava tudo centralizado em uma emissora de televisão, a Record. Hoje a música é dispersiva, está na internet em todo Brasil, mas de forma completamente fragmentada. É uma diversidade tremenda, quase sempre de boa qualidade. E cada artista tem o seu movimento. Eu acho que nós, na época da tal vanguarda paulista, quase que fomos os últimos a chegar com uma proposta. Pelo menos nós, Itamar Assumpção e o Arrigo Barnabé tínhamos uma proposta de composição na época nova. Foi a última vez que apareceu a ideia de novidade. Depois já entrou para o negócio do rock, do sertanejo, e acabou essa história. A ideia de novidade perdeu um pouco de sentido, o que existe hoje é mais a especialidade. Cada grupo e cada artista é especial. Não existe mais essa ideia de vanguarda. E mesmo na nossa fase, já não era mais tão claro, porque não exista mais música em um canal de televisão, só aconteceu em São Paulo.
Tem previsão para o lançamento de um novo livro?
Luiz Tatit – Estou com um na editora, já estou lendo as provas e deve sair neste semestre. O nome é Estimar Canções – Estimativas Íntimas na Formação do Sentido, e esse estimar é tanto no sentido de gostar como de calcular como uma canção vai chegar a um resultado, por exemplo, se tem mais tematização, mais passionalização, mais musicalização ou mais entoação. Como se fosse um tempero.