Festival Psica, em Belém, promove culturas indígenas, caboclas, negras e amazônicas, mistura ritmos e sonoridades, de trash metal a tecnobrega, de rap a carimbó, e faz a gente sonhar.
Você pode imaginar um evento diverso e eclético. Dificilmente, porém, algo pode ser comparado ao festival Psica, realizado em Belém há alguns anos. Sua edição 2021, que aconteceu entre 17 e 19 de dezembro de 2021, mostrou mais uma vez que não precisa ter limites para a música brasileira. Trash metal, carimbó, rap, tecnobrega, punk, pop e quase todos os gêneros possíveis conviveram num mesmo ambiente por um público aberto a se divertir com sonoridades mais restritas, tradicionais e sucessos mais pops do momento.
Uma mistura que não só foi possível, como refletiu o que o Brasil tem de melhor, dando um gás para se acreditar num país que vislumbramos e que ainda parece distante. Pelo menos naqueles três dias, naqueles metros quadrados em uma cidade em meio a Amazônia, o Brasil deu certo.
A nona edição do evento teve seis dias de programação, sendo três deles com shows, num total de 42 apresentações que tinham como tônica celebrar a música preta brasileira, especialmente a afro amazônica. O primeiro dia, com entrada franca, foi como uma noite de abertura, com uma maioria de artistas locais se apresentando em dois espaços no centro de Belém, o Pier das Onze Janelas e o Insano Marina Club. O principal, entretanto, ficou concentrado para os dois dias de shows no estacionamento do Shopping Bosque Grão-Pará, num espaço gigantesco com três palcos.
Um Brasil possível
Já em seu manifesto o Psica dava o recado, clamando para que os “povos indígenas, caboclas, negras, amazonidas, manas, bichas, manos, corpas e corpos indígena-afro-amazonidas” tomassem seu território de volta. O slogan “A CABANAGEM É AGORA! SEM MEDO E SEM SENHOR!” se espalhava pelas placas e mentes. Conscientes ou não. A referência à revolta popular extremamente violenta, ocorrida na província do Grão-Pará de 1835 a 1840, dava o tom de resistência e de luta do festival.
A proposta era unir os diversos cantos da floresta: “do rio e do canal, do quilombo da baixada e dos conjuntos, das universidades e palafitas, do movimento social das rodas de carimbó e rap, das festas de aparelhagem e dos terreiros, somos agricultoras e marisqueiras, aqui o saber e a cultura popular compõem a paisagem urbana”.
Não era só teoria. A diversidade está encravada na alma do festival e estava presente por todos os lados. Inimaginável no Brasil atual dos donos do poder econômico e político, que lutam para continuidade das opressões e dos comportamentos padrões. O Psica era uma nova e urgente reação ao país desbotado que arde em enxofre. Que não apenas exigia novos caminhos, mas, mais que isso, clareava suas possibilidades.
A possibilidade de um país possível, com suas riquezas, alegrias e potencialidades. Fazendo questão de apontar, no entanto, seus problemas, dilemas e contradições. A esperança do convívio entre as diversas diferenças, mesmo aquelas que às vezes pareçam opostas, mas que ali se encontraram de forma natural e saudável. A expectativa de mais espaço para as periferias diversas, geográficas, de raça, de gênero ou estéticas.
O convívio dessas possibilidades e diversidades marcou todos os momentos do festival. É, aliás, a principal característica dele, desde quanto começou, ainda como Mongoloid, anos atrás. Em poucos lugares é possível assistir a um show de trash metal, hardcore ou punk, num mesmo ambiente que um de tecnobrega ou de pop drag queen. Ou poder ver uma banda de rock progressivo no mesmo palco de um artista de funk ou de carimbó ou de trap. Cultura preta, periférica e amazônica, mas não excludente. Diversa, colorida, acolhedora e sensível, com a cara do Brasil que ainda acreditamos.
Despedida improvável
O mais esperado e mais ovacionado show do festival foi o de Elza Soares e Renegado. A artista, aos 91 anos, foi recebida e tratada merecidamente como uma lenda viva, uma heroína da música brasileira e símbolo da resistência que o Psica promove. Sentada no centro do palco, auxiliada nos vocais pelo rapper e pelos vocais de Netão, desfilou alguns dos clássicos da carreira e fez uma linda apresentação.
Se não tinha a força e o alcance de outros tempos, mostrou que continuava com uma voz marcante que emociona e dá o recado. Alguns momentos foram especiais nesse sentido, como quando tocou “Meu Guri” a capela e “Espumas ao Vento”. Passeou por sucessos antigos e atuais da carreira, indo de “Juízo Final” e “Volta Por Cima” – que ganha um sentido mais amplo no Brasil atual – até a “Carne”, “A Mulher do Fim do Mundo”, “Maria da Vila Matilde” e “Banho” (Tulipa Ruiz), que foi dos momentos mais catárticos da terceira noite.
Renegado cumpriu bem o papel de coadjuvante, adicionando tempero e ritmo. Sem querer tomar o papel de protagonista, inseriu suas rimas em algumas músicas, cantou outras suas e fez homenagem a Tim Maia com “Réu Confesso”. O que ninguém sabia era que aquele seria o último show de Elza, uma despedida do tamanho da cantora (esse texto foi todo escrito antes da notícia da morte dela no dia 20 de janeiro).
Pop, rap e MPB
Outros veteranos, de gerações bem mais jovens, souberam aproveitar muito bem a receptividade do público paraense. Chico César dosou bem seus sucessos de várias fases da carreira, como “Mama África”, “Deus me Proteja” e “Pedra de Responsa”. Black Alien apostou em seu mais recente álbum, Abaixo de Zero: Hello Hell, mas não deixou de cantar hits mais antigos, como “Babylon By Gus”, “Como eu Te Quero” e “Perícia na Delícia”. Entre a introspecção e a timidez, estava visivelmente feliz em voltar aos palcos e ter um público tão receptivo entoando cada uma de suas rimas.
De gerações mais novas, Karol Conká passou fácil na prova de pós celebridade midiática cancelada. Talento ela sempre mostrou e continua segurando muito bem o palco, mesmo acompanhada apenas de DJ. Entre o rap que a marcou e um pop eletrônico, que cada vez mais toma conta de sua música, mandou os hits novos e antigos, sempre com muito gingado e um sorriso estampado na cara.
Mas entre nomes mais conhecidos e já testados na carreira, a mineira Marina Sena era quem ainda tinha o que provar. Alçada repentinamente de grande promessa para revelação de 2021, tinha uma grande chance para testar o sucesso e carimbar o merecimento pela popularidade que vem ganhando.
Tocar em Belém, num palco enorme e para um grande público não foi problema algum. Pelo contrário. Marina foi recebida como uma deusa pop, com gritos e com o público cantando todas as músicas. Com uma banda afiada, mostrou pleno domínio do palco, numa apresentação digna de uma estrela pop em ascensão. Se movimentava entre danças e rebolados, enfileirando com uma voz segura as faixas de seu disco de estreia e utilizando muito bem o potencial de hits como “Por Supuesto”, “Me Toca” e “Voltei pra Mim”. Ainda tirou da manga “Ombrim”, de sua ex-banda Rosa Neon.
Ser recebida daquela forma era motivo suficiente para o sorriso estampado na cara durante todo show e Marina parece ter a exata noção de onde chegou. Mostrou que já tem na mão os elementos para prosseguir como grande nome do pop brasileiro. Seguindo assim vai longe.
Cena paraense em alta
Se os headliners cumpriram caprichosamente seu papel, levando público e entregando grandes shows, a cena local mostrou que está muito viva e fértil. Se o hype paraense passou e todo o prejuízo que isso leva se mostra no total silêncio sobre as novidades fora do estado, a leva de novos artistas mostra também que o Pará segue tendo uma das cenas mais interessantes do país. O Psica apostou em nomes além dos que despontaram há alguns anos. Gaby Amarantos, Felipe Cordeiro, Dona Onete, por exemplo, poderiam estar presentes, mas foram nomes mais novos ou que ainda não despontaram nacionalmente que ganharam oportunidade.
Proposital ou não, o resultado foi uma boa atualização do que anda acontecendo por lá. Uma mostra que revela que a cena do Pará vai muito além dos ritmos tradicionais e de tecnobrega. Enquanto a tradição segue respeitada e forte, e o tecnobrega popular e criativo em suas diversas derivações, a produção se apresenta ampla e muito mais diversa do que chega para fora, com artistas de rock, pop, rap e MPB mostrando trabalhos consistentes.
Nomes da nova cena local, como Jeff Moraes, Carimbó Cobra Venenosa e o encontro de três expoentes reunidos no palco, Daniel ADR + Reiner + Pratagy, aproveitaram bem suas oportunidades. Alguns foram mais além e se mostraram prontos para voos maiores. Caso do cantor e compositor Arthur da Silva, que abriu o Psica no palco Tatuoca, montado em cima do rio Guamá, no Pier das Onze Janelas. Ele defendeu bem a pinta de cantor brega dos anos 70, com cabelo black power e camisa colorida por dentro da calça e com uma deliciosa sonoridade brega-soul com influências de música negra em geral e sem abrir mão de sua identidade amazônica.
Não tão conhecido fora de Belém, o cenário pop rock, aliás, não só esteve bem representado, como mostrou ter um bom público local e potencial para ultrapassar as fronteiras do estado, não devendo nada a bandas similares e hypadas no Sudeste. Entre os destaques, a banda O Cinza faz uma espécie de indie pop rock mpb muito competente. Sem esconder a emoção pelo retorno aos palcos e receptividade do público, a segura vocalista Malu Guedelha comandou a apresentação com leveza, enquanto a banda desfilou uma sonoridade alternativa contemporânea com canções embasadas por um bom trabalho de guitarras.
A Velhos Cabanos foi uma excelente surpresa. Uma banda de rock progressivo, num dos melhores horários do festival e em um dos palcos principais, já foi uma ousadia do Psica. Poderia ser um anticlímax, e até pode ter sido para alguns, mas a banda, no entanto, faz um som tão vigoroso e competente que conseguiu seduzir à atenção de muitos dos ouvintes mais dispersos. Com uma sonoridade madura e uma formação adicionada de um naipe de sopros e backings vocals, o grupo apresentou um progressivo calcado nas sonoridades dos anos 1960 e 1970, com músicas longas e virtuosas, mas que levaram a uma imersão no ambiente dos rios e matas da região.
Tradição e modernidade
Se a tradição dos manifestações populares paraenses não é a única marca da cena atual, ela ainda continua forte, dialogando com a contemporaneidade de forma muito natural. O Psica não deixou isso de lado, pelo contrário, promoveu ainda mais as misturas que marcam a cultura e a música do Pará. A mescla de sonoridades, gêneros e públicos foi reforçada justamente por estes encontros. A música “típica” do Pará de diversas épocas, ai vale carimbó, boi, siriá, se encontrou com tecnobrega, mas também com rock, pop, eletrônica e rap. É outro capítulo essencial do Brasil que pode dar certo e que o festival mostrou ser possível.
Enquanto o Carimbó Cobra Venenosa tinha como foco principal o discurso feminista e fez uma apresentação performática, Os Falsos do Carimbó focaram na força tradição rítmica. Foram uma das boas surpresas da Kabana do Gerso, palco menor que mantinha um bom público mesmo com a concorrência nos outros espaços com nomes mais conhecidos.
Reunindo os elementos tradicionais que marcam o carimbó, a banda mostrou uma sonoridade convincente e vibrante, que consegue soar tradicional, mas mirando o futuro. Um carimbó urbano, que mantém a percussão à frente, dando o tom com os tambores curimbó e maracás, acompanhados por um banjo artesanal e um saxofone. O ambiente mais acolhedor e quase íntimo, a iluminação e o som reverberando alto ajudavam a tornar o momento ainda melhor.
Um dos momentos mais marcantes do Psica foi a apresentação do veterano Arraial do Pavulagem na noite de abertura. Para quem não é do Pará, o nome pode não significar muita coisa. Pena de quem não conhece. O grupo é meio que uma lenda local, um misto de manifestação cultural, entidade folclórica, grupo musical, projeto social e cortejo popular.
Com mais de 30 anos de existência, foi fundado em 1987 e promove ou, está presente, em alguns dos eventos mais importantes de Belém, seja no Arrastão do Círio de Nazaré, o Cordão do Peixe-Boi, nas prévias do Carnaval e no Arrastão do Pavulagem, que festeja a quadra junina. Levaram ao festival um pouco de tudo isso. Numa formação enxuta, com uma guitarra dando uma sonoridade mais roqueira, apresentaram carimbó, siriá e toadas de boi-bumbá. Tudo numa conexão direta com o público, que instantaneamente dançou, montou coreografias e cantou junto a diversidade paraense.
Tecnobrega no comando
No mesmo palco e noite do Arraial, a banda Fruto Sensual mostrou outra tradição e fenômeno paraense. Com Valéria Paiva à frente, o grupo desfilou seus hits de brega dance, calypso e tecno melodie. No repertório, aclamado do início ao fim pelo público, incluíram os sucessos que marcam as festas de aparelhagens, além de uma versão divertidíssima de “Total Eclipse of the Heart”, clássico dos anos 1980.
Se você nunca esteve numa Aparelhagem e acha que conhece a cultura popular paraense, está totalmente enganado. Quem esteve no Psica teve uma ótima oportunidade de conhecer um pouco mais, mesmo que apenas um aperitivo da grandiosidade que é normalmente. O Gigante Crocodilo Prime levou parte da estrutura e deu uma boa ideia do que são as famosas aparelhagens nas periferias de Belém. Estavam lá as explosões de fogos de artifício, fumaça, papel picado, efeitos, o potente sistema de áudio, luz e iluminação e as dançarinas.
Tudo em torno de um crocodilo metálico gigantesco, que abria e fechava a boca, enquanto DJs se revezavam em cima da estrutura. Eles faziam uma seleção caótica de músicas das mais diversas, melhor, de diversos trechos de músicas de tudo o que você imaginar. Sucessos de brega, batidão, funk, forró, tecnobrega, piseiro, sertanejo, muitas vezes em versões com pitch alterado. Tudo picotado com interferência de gritos, slogans, falas dos DJs, batidas eletrônicas e solos de guitarra, e mais o que você puder imaginar.
Em meio a um hit dos Barões da Pisadinha, os Djs pediam para o público fazer a coreografia da boquinha do animal com as mãos, respondido de imediato pela massa. Em meio a um hit de tecnobrega, desconhecido para a maioria fora do Pará, entrava o solo de “Sweet Child O’Mine” ou o refrão de “B.Y.O.B.”, do System of a Dawn sampleado por Alok, por exemplo. A essência da mistura em estado puro. Tudo recebido com uma euforia impressionante numa enorme pista de dança e o “endoida, caralho” entoado por milhares de pessoas. Uma insanidade saborosa.
Peso antifascista
Duas outras cenas específicas ainda tiveram destaque no Psica. O rock mais pesado, e de certa forma extremo, e o rap. Punk, hardcore, trash e black metal conviveram tranquilamente com tudo que falamos acima. O tom antifascista e de críticas ao presidente Bolsonaro era a tônica. Bandas locais como Inferno Nuclear, de trash metal; Klitores Kaos, hardcore feminista, e Petals Blade, thrash/death da cidade de Castanhal, deram o tom na noite de abertura.
O peso continuou nos dias seguintes com as também locais e veteranas Baixo Calão, num grindcore insano, e a Delinquentes, clássica banda de hardcore. Jayme Katarro e companhia aproveitaram bem a oportunidade, com direito a versão de “Pescador”, do Mestre Lucindo, o Rei do Carimbó de Marapanim, e participação de dois convidados especiais, MC Bruno BO e Sammliz.
Entre os convidados de fora do estado, a Torture Squad mandou seu thrash/death metal com Mayara “Undead” Puertas soltando a voz. Destaque para o Garotos Podres, com seu punk rock antifascista atual e contundente. Com 40 anos de estrada, tendo ainda o vocalista Mao à frente, conseguiu manter o clima de contestação aliado a diversão, abrindo rodas de pogo e agradando o público já crescente do último dia de festival. No repertório, clássicos como “Papai Noel Velho Batuta” e o hino do partido comunista português contra o fascismo, tocado numa homenagem à luta do povo chileno pela democracia, que elegeria naquele dia o novo presidente.
Rap amazônido
A lógica do Psica de promover encontros, que muitas vezes parecem desconexos, é um dos trunfos do festival. O mesmo palco do rock pesado do primeiro dia, por exemplo, recebeu uma sequência de artistas de rap da Amazônia e não soou nada estranho. Kratos + Sumano começou dando o recado, tendo na sequência o encontro de rappers de vários estados da região. Batizado de Rap Amazônia no Ataque, contou com artistas do Pará, Amazonas e Amapá.
No palco, sob as bases do DJ Morcegão, se alternaram no comando nomes como Kurt Sutil (Amazonas), Yanna MC e MC Super Shock (Amapá), e Mc Íra, Navibeatz, Urb4no, Drin Esc e o coletivo DaBruxa Clan, que inclui a rapper trans Yara MC (Pará). Foi uma festa de uma cena que busca ser reconhecida e que mostrou força, com ótima resposta de público e com o recado dado nas rimas.
O rap local apareceu ainda com a ótima Nic Dias, que dividiu o palco com o Vandal num dos palcos do Shopping Bosque Grão-Pará. O baiano fez sua usual apresentação catártica, se jogando no meio do púbico. Direto da periferia de São Paulo, as gêmeas Tasha e Tracie defenderam com louvor seu rap funk com letras feministas. Claramente surpresas com uma receptividade tão positiva longe de casa e num palco grande, mostraram que vieram para ocupar espaço no rap nacional.
Público protagonista
Toda essa diversidade reverberava também no público, com presença dos mais diversos tipos, estilos, tribos, sexualidades, credos e raças. Todos convivendo, curtindo os shows com atenção, sem muita distinção. O importante era estar ali, naquele país possível, se divertir e dançar, de que forma fosse e seja quem estivesse no palco. Em rodas de pogo, cantando junto, nas danças coletivas de carimbó e boi, nas coreografias do tecnobrega, mas também nos gritos de ordem (“Endoida, Caralho” foi quase um hino).
O tempo sem shows nesses quase dois anos devido à pandemia pesou, mas, sem dúvida, a felicidade estampada nos rostos de todos artistas tinha a ver também com aquele público do Psica. O comportamento e o modo como se relacionam com a música e com os artistas era uma atração à parte. Nem importa se resvala num clichê, mas de fato Belém tem um público sedento, que vive os shows como parte dele, nunca como mero espectador. Isso deve ser muito fruto das relações com as festas de carimbó, tecnobrega, aparelhagem e todos os ritmos e gêneros locais, onde o público não assiste, mas é parte fundamental de como elas funcionam.
Um público que reagia, incitava e dava seu show. Participativo, atento e também receptivo ao que era oferecido, fossem os ritmos tradicionais ou os sons mais contemporâneos. Abria os braços com a mesma euforia e respeito as novidades locais, as revelações de fora ou ícones veteranos ou a deusa maior da música brasileira. Os sorrisos e olhares em cima do palco não disfarçavam que a conexão era recíproca.
Um Brasil real, que se refletia tanto na angústia com a realidade política com os gritos politizados, repetidos diversas vezes, quanto nesse convívio com tantos e tão diferentes ritmos, tipos e realidades ao mesmo tempo. Foram dias em que a alegria e espontaneidade da música e das manifestações culturais não abriram mão de postura crítica e do espírito de luta pelas mudanças sociais e políticas. No primeiro festival do “pós pandemia” daqueles dias era impossível que tudo isso não estivesse tão escancarado.
Essa possibilidade de produzir e deglutir de tudo, sem preconceito ou distinção, mostrava um reflexo da própria Belém e do Pará. Uma cidade e um estado ricos, diversos e com uma enorme variedade cultural, da culinária aos ritmos musicais. O Psica apenas escancarou tudo isso e levou as diversas sonoridades para um mesmo ambiente, ocupando um dos espaços mais simbólicos da elite paraense, tão preconceituosa quanto qualquer outra do país.
Local dos dois principais dias do Psica, o shopping Bosque Grão-Pará é um templo da lógica consumista da elite econômica local, que tal qual a brasileira, olha de soslaio para manifestações populares e com preconceito para a cultura, em especial a música vinda das periferias. O festival arrombou a porta e colocou tecnobrega na sala de estar dessa gente, botou funk, carimbó e o som dos terreiros na mesma mesa e esfregou o discurso antifascista e antiracista do punk e do rap na cara, sem nenhum pudor. A cultura periférica em suas diversas formas no playground do consumo supérfluo.
O Psica mostrou muito mais do que parece. Se a música paraense já foi hypada e mostrou vários nomes para o cenário nacional, para ser meio que abandonada pouco depois, agora uma nova leva de artistas locais mostram que o Pará é muito mais do que ritmos tradicionais, gêneros insólitos ou curiosidades regionais. É isso, mas é também sede de uma cena que engloba rap, pop, rock e a tal música brasileira contemporânea com muita qualidade. Uma cena à parte, que se não está mais incensada, cresce internamente, com seu próprio público, suas casas, festas, festivais e uma cultura fortíssima.
É também lá do Norte, um dos lugares que mais sofreu com a pandemia, que vem um grito que toda essa produção é pura resistência. Realidades que se apresentam com toda a diversidade possível, dialogando, estabelecendo conexões, mas também arrombando a porta e mostrando que é possível. Onde a cultura e a música sobrevivem como expressão e como a melhor forma de gritar contra esse outro Brasil que está em evidência, mas vai passar.
* O editor Luciano Matos viajou a convite da produção do Psica.
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